jueves, noviembre 21, 2024

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Os Anjos da Guarda e a ordem do universo

A criança inocente sente o desejo de conhecer grandezas extraordinárias. Instintivamente ela faz um exercício de transcendência, pelo qual considera que todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador. O papel do Anjo é ajudar o espírito humano a ter cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, a Deus.

Para tratar da relação entre o estado de inocência, a ordem do universo e os Anjos, começo por mencionar uma dificuldade encontrada naquilo que costumamos chamar de exercício de transcendência.

Operação natural para a alma inocente

Até certo ponto, esse exercício dá a muitos a impressão de um ser um esforço hercúleo do pensamento para destacar-se das coisinhas corriqueiras a fim de elevar-se às realidades transcendentes. Mais ou menos como uma pessoa que ache atraente fazer alpinismo, porém não conseguiria passar a vida inteira subindo e descendo montanhas.

Os pesos de alma que tal dificuldade denuncia servem para contrastar melhor o que o estado de espírito da inocência tem de angélico com aquilo que se chama o “homem carnal”.

Eu sustento que esta operação, tão penosa depois das influências que degradam a alma – pecados, egoísmos, ingratidões, etc. –, é natural para a alma inocente. A primeira impostação da alma, embora concebida no pecado original e, portanto, com tendência para se resvalar, é o exercício de transcendência. Entretanto, há uma ação calculada para desviá-la, logo nos primeiros reflexos e levá-la para outro lado.

Esse exercício não seria feito propriamente de baixo para cima, peça por peça, mas de um modo diferente. Eu quero descrever para evitar ideias erradas.

Flávio Lourenço
Parque Rural de Anaga, Canárias, Espanha

Francisco Barros
Anjo da Guarda – Paróquia São Pedro Apóstolo, Montreal, Canadá

Por exemplo, é justo, e respeito muito, que se faça uma distinção entre a introspecção e a extroversão. Mas isso é bom na medida em que não nos leve a perder de vista a seguinte verdade originária, a qual se encontra no estado da inocência: a alma vê a si mesma e o mundo fora com o mesmo olhar primeiro. Pode-se distinguir como alguém que, conversando com duas pessoas em uma sala, vê ambas sentadas em um sofá. Distingue-se uma da outra, mas essa distinção não impede que, com o mesmo olhar, esteja vendo as duas.

Assim também, na noção do ser entra o conhecimento do mundo exterior e do interior no mesmo olhar, e abarca a ideia de que eu sou e os outros são. Estas noções entram distintas, não separadas. Isto proporciona que o gáudio da inocência flua logo nos primeiros instantes da vida, e a transcendência se faça como um homem dotado de constituição física normal respira.

Ação angélica no indivíduo, na História

A criança inocente sente dentro de sua alma o desejo de grandezas extraordinárias a conhecer, de uma zona etérea e magnífica da realidade com a qual ela quer se relacionar e para a qual voa. Não sente o tempo inteiro, mas vai tomando conhecimento disso junto com o chocalho, a mamadeira, tudo misturado; entretanto, esse é o fundo de quadro que de vez em quando renasce e de algum modo está sempre presente, e à luz do qual a criança vai vendo as várias coisas com que toma contato.

Portanto, não é um pequeno filósofo, com as pernas trançadas no berço, mãozinha no queixo e pensando: cogito, ergo sum1. Absolutamente não é isso: a criança esperneia, tem vagidos, dorme fora de hora… Quando começa a tomar conhecimento, fá-lo nessa natural desordem: ora é o rosto da mãe, ora é o barulho da rua, ora o chocalho, ora o berço…

Não obstante, o fundo da própria alma que a criança conhece junto com as outras coisas vai orientando-a para o lado das grandezas e, de vez em quando, ela faz uma sucessão de imagens pela qual compara o que está conhecendo com aquilo para que sua alma tende. Assim, esses anseios da alma vão se robustecendo no mais alto e ela vai fazendo a transcendência de cima para baixo. É quase um exercício de descendência.

Mas, às vezes, a criança encontra coisas externas magníficas que despertam nela aquilo que a sua alma deseja. Por esta ação mútua, feita sem esforço no próprio viver e respirar, é que ela vai se tornando uma viajante, peregrina rumo às magnificências.

E aqui entra o lado angélico.

A meu ver, quando e na medida em que faz isto, o homem torna-se como que o irmão mais moço, o caçula do Anjo da Guarda que o toma, o ajuda nesta trajetória mais importante e delicada do que todas as outras. E assim a alma vai caminhando nessa direção com uma regularidade e naturalidade inteiras porque esse é o viver dela. Ela poderá ter, em certos momentos, tentações, são as provas do caminho. No entanto, o mais importante não são as provas e sim o traçado da estrada. As provas, com a ajuda de Nossa Senhora, serão vencidas uma a uma quando se apresentarem, mas o traçado do caminho é a grande questão, e este corre por aí, de tal maneira que cem outras faculdades da alma afloram sob essa luz.

Também a ação angélica na História, embora seja extrínseca, não exclui afinidades, inter-relacionamentos possantes. Admitir a ação angélica como tão extrínseca que cada uma é quase como um milagre de Lourdes, o qual ocorre de vez em quando deixando as pessoas pasmas, também é errado. Por certo, há intervenções angélicas muito palpáveis, visíveis, notórias que são assim, mas tenho a impressão de que a ação real é uma espécie de quase atuação de irmão a irmão, porque o Anjo está junto de nós e nós juntos dele, ele se nos comunica e nós nos comunicamos a ele.

Flávio Lourenço
O sonho do cavalheiro – Museu Diocesano, Badajoz, Espanha

Interpenetração entre o mundo exterior e o interior…

Há em nós uma relação entre a nossa alma e a ação externa que praticamos. De maneira que, quando nossa alma deliberou por um determinado ato, ela gradua todas as suas energias, suas disposições para a efetivação daquela ação; entretanto a qualidade do ato – não me refiro apenas à qualidade moral, mas também à metafísica – de algum modo se reflete sobre a alma, porque o homem, ao praticar a ação, põe-se numa certa clave e fica passageiramente com esses reflexos. Isso faz parte dessa interpenetração entre o mundo exterior e o interior.

Julgo que nos Anjos isso é muito mais vigoroso, e que não só eles são chamados para ministérios especialmente adequados à natureza de cada um, mas ao realizarem as várias ações do seu ministério todos eles refulgem e vibram – se pudéssemos dizer “vibrar” de um ser espiritual – de um determinado modo.

De maneira que quando um Anjo tem aquele refulgir, todos os espíritos angélicos que estão participando com ele daquela ação possuem isso entre si, em coro; e depois os outros do Céu recebem, há um reluzir recíproco.

Também uma pessoa devota de um determinado Anjo recebe essa refulgência ou ao menos pode receber. Mas como o Anjo é muito mais possante do que o homem, ele comunica a jorros o que nós transmitimos a conta-gotas; a natureza dele se enche com as graças esplêndidas que ele recebe e se comunicam a nós de cheio.

A inocência leva a ter comunhão com os Anjos. E o estado normal do batizado é ter esta comunhão, embora subconsciente.

…o natural e o sobrenatural

Entre o sobrenatural e o angélico há uma distinção. Um dos modos de a graça agir é através dos Anjos, e a pessoa pode ter um certo discernimento do sobrenatural em si sem perceber que é angélico. No mais das vezes, as coisas se interpenetram de tal maneira que não creio que uma pessoa consiga distinguir.

Aliás, devemos considerar que o natural e o sobrenatural não formam gavetas no ser humano. São campos distintos para a cogitação científica do homem; em quem tem ambas as coisas psicologicamente elas não formam gavetas, mas se interpenetram a todo momento como o sangue na carne.

Sou propenso a achar – salvo ensinamento em sentido contrário da Igreja – que se os homens tiverem noção clara dessa interpenetração angélica, e esta for uma verdade bem realçada por ocasião do Reino de Maria, haverá uma grande elevação, e a ideia desta ação dos Anjos na inocência produzirá um fulgor e um esplendor incalculáveis.

Uma pergunta que se põe é a seguinte: Se o universo criado e ordenado por Deus é tão perfeito, por que existe Anjo da Guarda? Este evita, de fato, coisas ruins que aconteceriam e, portanto, o universo é imperfeito?

Gabriel K.
Caridade – Museu de Belas Artes, Montreal

Alguém dirá: “Tem a imperfeição humana.” Entretanto é preciso andar com cuidado. Nossa Senhora tinha milhões de Anjos da Guarda. Para quê, se Ela fazia tudo perfeito?

Então, a perfeição específica do universo não é a de uma máquina, como o comum das pessoas imagina. Tenho a impressão de que o universo não funcionaria sem Anjos da Guarda e, portanto, eles não são superfluidades. Por certo, intercorrem muitos fatores que não conhecemos, os quais poderiam perturbar a ordem do universo, e que os Anjos da Guarda evitam. Ademais, eles não apenas evitam o mal, mas promovem o bem.

Estalactite e estalagmite

Contudo, a respeito do papel do Anjo da Guarda no universo e junto às almas, há um elemento que me parece importante. Para o normal progresso da inocência são necessárias duas circunstâncias: de um lado, o isolamento interior, de outro, a comunicação.

Na medida em que a alma é fiel a essa impostação primeira, é fácil para ela fazer exercícios de transcendência, talvez à maneira de estalactite e estalagmite, ou seja, a pessoa vai relacionando as coisas que vê com o que vem de cima, encantando-se e se endireitando em função disso, e notando na coisa inferior um símile do que está em cima.

Por exemplo, antigamente era normal um menino gostar de espada. Gostava por ver nela um modo de dar corpo a uma porção de impressões, desejos, ideias, estados de espírito que vibravam na sua inocência, mas que ele precisava de algo material para simbolizar.

Flávio Lourenço
Assalto à diligência – Castelo de Chapultepes, Cidade de México

Isso corresponde a uma disposição de alma vinda do olhar conjunto que a pessoa tem sobre si e o universo; olhar inspirado pelo senso do ser e por meio do qual, na linha metafísica e sobrenatural, a alma é apetente de grandes coisas e nelas cogita.

No menino cuja alma esteja nessas condições e a quem tudo quanto se refira ao heroísmo diz muito, a espada desencadeia o processo e a relação simbólica que dá corpo àquilo que ainda não atingira toda a maturação humana porque faltava um símbolo. Ao encontrar o símbolo, o processo mental e da inocência dele se encerra com gáudio.

Assim, a criança vai vendo uma série de coisas de cima para baixo, porque o analogado primário2 do símbolo existe vivo no espírito dela, por onde tende a ver de modo simbólico uma quantidade incontável de criaturas.

Seria um movimento natural do senso do ser, portanto metafísico, no qual a graça penetra e atua muitas vezes pelo Anjo. A semelhança do Anjo com o seu protegido, a afinidade existente entre eles desempenha o seu papel na moção que o Anjo exerce sobre o homem.

Flávio Lourenço
Anjo da Guarda – Paróquia de Almenno San Salvatore, Bergamo, Itália

Mesmo porque, sendo o homem sociável por natureza, o é com os Anjos também. O instinto de sociabilidade seria incompleto se o considerássemos existente apenas entre os homens. Dessa analogia entre o Anjo da Guarda e seu custodiado, este instinto toma misteriosamente um movimento do qual Deus se serve para a realização de seus planos.

Reino de Maria e devoção aos Anjos

Estou tratando de um processo que conheço melhor em mim do que num outro. Por isso, ao falar do processo humano, tenho que dar o meu depoimento. Sustento que esse processo se dá com todos os homens, uns mais outros menos, mas todos têm meios e graças para isso. Aliás, a própria noção do Reino de Maria vem da retidão desse processo em todos os homens, criando as condições para esse Reino.

Nesta perspectiva, o acender o amor a Deus na alma humana não pode ser concebido sem a assistência dos Anjos. O papel próprio do Anjo é ajudar o espírito humano a ter aquelas cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, Deus.

Então, o exercício de transcendência, pelo qual todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador e, portanto, a visualização do universo enquanto caminho para Deus, parece impossível sem o ministério dos Anjos.

Flávio Lourenço
Dr. Plinio em 1980

Há uma ação santificante da Igreja Católica que é o vaso espiritual no qual se derrama, para as almas subirem até Deus, a ação angélica exercida por cima do Magistério eclesiástico, nunca em desacordo com ele, pois este é infalível. Assim, com uma vida que o mero ensino não tem, a graça faz germinar no homem os impulsos para a elevação suprema. Portanto, a missão santificante da Igreja, que nos une a Deus através dos sacramentos, acende em nós o amor a Deus com o ministério dos Anjos.

Estas verdades suporiam para o Reino de Maria uma intensidade extremamente grande da devoção aos Anjos.

(Extraído de conferência de 27/11/1980)

1) Do latim: penso, logo existo.

2) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

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