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A mirra austera e odorífera do princípio de contradição

Há verdades que aos homens impressionam como o ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso. Entretanto, dos brasileiros, Nossa Senhora deseja apresentar ao Divino Infante o odor agradável e austero da mirra, que no campo ideológico é representada pelo princípio de contradição, pelo qual o sim é sim e o não é não.

Quem poderá dizer quantas pessoas, neste Natal, se ajoelharão diante de um presépio? Quem poderá enumerar os homens de todas as raças, em todas as latitudes, que se acercarão do berço do Menino-Deus a fim de Lhe implorar graças particularmente ricas e abundantes, nesse dia em que se abrem em toda a sua largueza as portas da misericórdia divina?

A graça nada faz de incompleto

Também nós nos preparamos para acercar-nos do santo presépio. Queremos meditar as lições que dele decorrem, robustecer nossas vontades nas graças que dele promanam, alentar nossos corações na alegria de que é ele fonte imperecível.

Belvedere, Wien (CC3.0)
Comitiva dos Reis Magos – Museu de História da Arte, Viena

Quis a Providência que o Menino Jesus recebesse a visita de três sábios, os quais, segundo uma venerável tradição eram também reis, e alguns pastores. Precisamente os dois extremos da escala humana dos valores. Pois o rei está de direito no ápice do prestígio social, da autoridade política e do poder econômico. O sábio é a mais alta expressão da capacidade intelectual. O pastor se encontra, em matéria de prestígio, poder e ciência, no grau mínimo.

Ora, a graça divina, que chamou ao presépio os Reis Magos do fundo de seus longínquos países, chamou também os pastores do fundo de sua ignorância. A graça nada faz de errado ou incompleto. Se ela os chamou e lhes mostrou como ir, há de lhes ter ensinado também como apresentar-se ante o Filho de Deus.

Diante do Divino Infante, apresentar-se sem disfarces

E como se apresentaram eles? Bem caracteristicamente como eram. Os pastores lá foram levando seu gado, sem passar antes por Belém para uma toilette que disfarçasse sua condição humilde. Os Magos se apresentaram com seus tesouros, ouro, incenso e mirra, sem procurar ocultar sua grandeza a fim de não destoar do ambiente supremamente humilde em que se encontrava o Divino Infante.

A piedade cristã, expressa numa iconografia abundantíssima, entendeu durante séculos, e ainda entende, que os Reis Magos se dirigiram para a Gruta com todas as suas insígnias. Quer isto dizer que, ao pé do presépio, cada qual deve se apresentar tal qual é, sem disfarces nem atenuações. Pois há lugar para todos, grandes e pequenos, fortes e fracos, sábios e ignorantes. É questão, apenas, para cada qual, de conhecer-se, para saber onde se pôr junto de Jesus.

Admirável variedade de obras

Sabemos que, no Céu, os Anjos, distribuídos nos nove Coros, con templam diretamente a essência divina, em cuja riqueza infinita cada qual vê mais nitidamente certas perfeições.

Na Igreja, dá-se um fato análogo. As Ordens e Congregações Religiosas têm, em geral, seu espírito próprio, seu feitio, sua escola de santificação. E por isto cada qual contempla e imita mais especialmente certas perfeições do Divino Redentor.

Hannes Ecker - Stadtmarketing Steyr (CC3.0)

Esse fato tem sua repercussão na vida espiritual dos fiéis. Percorrido pelas mais variadas e fecundas correntes de espiritualidade, nascidas de ordens religiosas ou de Santos dos mais variados estados, distribui-se o laicato em grandes famílias espirituais, de contornos mais precisos ou menos, cuja vitalidade se identifica com a própria vitalidade religiosa de um povo. De fato, o espírito de Santo Inácio, como o de São Domingos, São Bento, São Francisco, São João Bosco e dos demais Santos, sopra ainda muito mais largamente em toda a Cristandade, dotando-a de uma diversidade maravilhosamente harmoniosa.

Os fatos espirituais, por sua vez, geram consequências no terreno do apostolado. E assim vemos na Igreja militante uma admirável variedade de obras apostólicas que agem cada qual com meios peculiares, falam aos homens uma linguagem própria e se articulam explícita ou tacitamente com as demais, para a realização do reinado de Jesus Cristo sobre a Terra.

Era necessário que assim fosse. Pois os homens, Deus os cria muito diversos entre si, com necessidades, aspirações e vias muito pessoais. As verdades que mais tocam a uns não são sempre as que mais facilmente movem ou esclarecem os outros.

Como um imenso carrilhão

Assim, poderíamos comparar o conjunto das obras católicas de um país a um imenso carrilhão, em que cada sino emite um som próprio, seja ele grave, solene, possante, seja cristalino, álacre, juvenil. Do fato de tocarem todos, resulta a harmonia do conjunto.

No imenso carrilhão das obras de apostolado do Brasil, qual o nosso papel?

Há verdades que aos homens impressionam como o ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso.

GeoTrinity (CC3.0)
Mirra

Quanto à mirra, é mais modesta. A raiz etimológica dessa palavra se relaciona com um vocábulo que, em árabe, quer dizer “amargo”. Os especialistas descrevem a mirra como uma resina gomosa, em forma de lágrima, dotada de gosto amargo, aromática, vermelha, semitransparente, frágil e brilhante. Seu odor é agradável, mas um pouco penetrante. Como se vê, tem ela a beleza discreta, austera, forte, do sangue. E seu perfume é o da disciplina e da sobriedade.

Diríamos que no campo ideológico a grande verdade representada pela mirra é o princípio de contradição, pelo qual o sim é sim e o não é não. Todas as outras são ouro e incenso, mas só valem se apreciadas num ambiente perfumado pela mirra.

Psicologia do povo brasileiro

E é desta mirra que larga, muito, muito largamente necessita o Brasil.

Não se confunda o princípio de contradição, que é a quintessênciada lógica, da coerência, da objetividade, com o espírito de contradição. Este é um vício que resulta do prazer jactancioso de contrariar o próximo: é volúvel, e faz do sim, não e do não, sim, conforme convenha à posição arbitrariamente tomada de momento.

Somos um povo que tem o defeito de suas qualidades. Propensos habitualmente a tudo que é bom, infelizmente não somos ao mesmo tempo infensos a tudo quanto é mau. Em geral, os outros povos, quando amam uma verdade, odeiam o erro que lhe é contrário. E reciprocamente, quando amam o erro detestam a verdade que a ele se contrapõe. Em última análise, é pelo jogo desse princípio que se explicam as grandes fidelidades, como as grandes apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e declarado à verdade e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos da Terra. Mas, quando se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem uma atitude militante contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se dá porque o princípio de contradição é antipático à pacatez brasileira. Uma expressão muito conhecida exprime em linguagem popular o princípio de contradição: “pão, pão; queijo, queijo”. Mas, em inúmeros casos, confundimos pão com queijo.

Jean-Baptiste Debret(CC3.0)
À esquerda, Dom João VI – Museu de Belas Artes, Rio de Janeiro. À direita, Marechal Deodoro – Museu da República, Rio de Janeiro

Museu da República/IPHAN/Minc(CC3.0)

Esta tendência de espírito se reflete em muitos aspectos da nossa mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto, em nenhum lugar o monarca destronado e a monarquia deixaram mais saudades. Separamo-nos de Portugal numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em que a antiga Metrópole reconhecia nossa independência asseguramos a D. João VI até o fim de seus dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e por assim dizer oficial do Marechal Deodoro, proclamador da República, apresenta-o com o peito constelado com as insígnias do Império que derrubou. Expulsamos em 1930 o Presidente Washington Luiz. Restaurado o regime constitucional, regressou ele ao Brasil num ambiente de respeito e de simpatia tão gerais que, com exceção de D. Pedro II, nenhum homem público reuniu em torno de si unanimidade maior. Por que então foi destituído? Dessas pitorescas contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista.

Talvez, à vista destas reflexões, algum leitor sorria, pois não deixa de ter algo de simpático e tranquilizador um tal cúmulo de bonomia.

Soluções intermediárias: fruto do amortecimento do princípio de contradição

Mas estudemos este assunto no terreno da moral. Trata-se de analisar esta tendência psicológica, para ver se é conforme à Lei de Deus. E não é com meros sorrisos, mas com muita seriedade que se resolvem os problemas morais.

Aquele que veio ao mundo para pregar as bem-aventuranças nos deixou por preceito que fôssemos fiéis ao princípio de contradição: “Seja vossa linguagem sim, sim; não, não” (Mt 5, 37). E se tal deve ser nossa linguagem, tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de moral, mais do que em qualquer outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de qualidades tão simpáticas quanto a bonomia e a suavidade de trato. E um mal que conforme o caso pode tornar-se muito grave.

Exemplifiquemos. No terreno religioso, não é bem verdade que o amortecimento do princípio de contradição nos conduz com muita frequência a atitudes lamentáveis? Quantos são os católicos que se julgam no direito de discordar da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com isto, embora se ufanem de católicos, pecam contra a fé. Por quê? Simplesmente porque imaginam possível um tertium genus entre ser católico e não ser.

Samuel Holanda
Jesus discute com os fariseus – Catedral de Saint-Gatien, Tours, França

O mesmo se diga da naturalidade com que se admite entre nós uma categoria de católicos “não praticantes”! Claro que os há no mundo inteiro. Mas parece-nos que em nenhum país eles têm tão pouca consciência do que seu estado apresenta de cacofônico, de antitético, em uma palavra, de contraditório. Por fim, mais um exemplo: quantas famílias temos, modelarmente constituídas! Por que progridem tanto as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a virtude, são por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes casos o que nos falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente definido por Nosso Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o “sim” e o “não”.

Não resisto, entretanto, ao desejo de indicar outro exemplo. Todos se queixam da anemia de nossa vida partidária, de nossa atonia em matéria de ideologia política e do predomínio das questões pessoais em nossa vida pública. Uma das causas desse fato está na carência do princípio de contradição. Pois se em face de uma ideia que temos por certa não nos arregimentamos para a defender resolutamente contra as que lhe são opostas, como pode haver partidos de verdadeiro conteúdo ideológico?

O amortecimento do princípio de contradição gera o gosto, a mania das soluções intermediárias, eu quase diria a servidão às soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio, o que não é carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria. Ora, se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro, também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a Sabedoria as condena formalmente: “Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, nem frio nem quente, começarei a vomitar-te de minha boca” (Ap 3, 15-16).

A pessoa viciada nas soluções intermediárias é a vítima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem, ele repudiaria.

Os hereges são useiros e vezeiros em velhacarias desta natureza. Rejeitado o pelagianismo, obtiveram eles a adesão de inúmeros ingênuos por meio do semipelagianismo. Condenado o arianismo, puseram eles em circulação o semi-arianismo. Fulminado o protestantismo, inventaram o baianismo e o jansenismo. Condenados o comunismo e o socialismo fabricam um “socialismo mitigado”, que em última análise não é senão comunismo velado. E assim por diante.

Que essa tática é particularmente desenvolvida em nosso tempo, nada mais notório. Uma das formas mais hábeis de solapar os meios católicos é esta.

No momento, nada mais perigoso para o Brasil

Sailko (CC3.0)
Adoração dos Reis Magos – Castel Vecchio, Verona, Itália

E assim nada mais perigoso para o Brasil, nesta hora, do que o amortecimento do princípio de contradição. E nada mais necessário do que trabalhar para que, em nosso país, este princípio tome mais força, mais cor, mais eficiência em toda a vida mental.

Não sei se um leitor não brasileiro compreenderá bem toda esta problemática. Duvido bastante. Mas para um brasileiro isto é bem mais inteligível. Sobretudo para Vós, Senhor Jesus, que, deitado num berço rústico, sondais, entretanto, até o fundo as almas e os corações. Para Vós que, sendo a Sabedoria incriada e tendo nascido d’Aquela que é a Sede da Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo, a todos amais, a todos quereis santificar. Para Vós, que desde toda a eternidade tão particularmente amastes o povo brasileiro e o predestinastes a uma grandeza que encherá a História de amanhã.

Nossa obra é principalmente de mirra. Queremos que os católicos militantes e praticantes Vos amem sem mescla de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que sejam cada qual em seu coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada pode o inimigo. Que não olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã de semear não se esqueçam de arrancar a erva daninha.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em janeiro de 1956

De certo modo, os católicos militantes e praticantes são, também eles, sal da terra e luz do mundo. Em parte depende da cooperação deles que o mundo não se corrompa, nem caia nas trevas. Queremos que eles sejam um sal muito e muito salgado, uma luz posta no mais alto da montanha e muito brilhante. Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação. Este é o presente de Natal que acumulamos durante o ano inteiro para vos oferecer. Outros vos darão o incenso de suas inúmeras obras, capazes de um bem inapreciável. Nós nos inserimos nessa grande obra, queimando em abundância, no solo bem amado do Brasil, a mirra austera, mas odorífera do “sim, sim; não, não”.

Que Maria Santíssima aceite essa mirra em suas mãos indizivelmente santas e vo-las ofereça. Ela terá para Vós então o encanto do ouro e do incenso, com alguma coisa a mais: e isto lhe virá do suor, do sangue de alma e das lágrimas de um apostolado que tem suas horas muito amargas… Mas na Cruz está a luz. E neste amargor o melhor da alegria e da beleza de nosso apostolado.

(Extraído de Catolicismo n. 60, dezembro de 1955)

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