sábado, septiembre 21, 2024

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A Rainha da História

A axiologia do plano de Deus se cumpriu de modo magnífico em Maria Santíssima. Ela é Mãe de Deus e a criatura perfeita na qual a História se realizou inteiramente. A História seria uma borrasca horrenda e mil vezes mais tenebrosa do que é se não fosse a misericórdia d’Ela.

A posição certa do espírito humano não é de cogitar principalmente nas coisas da Terra para sobreviver, nem de imaginar um Céu desligado desses assuntos, mas excogitar um Paraíso que esteja na fina ponta das coisas que indicam e rumam para o Céu.

Anelo processivo do Céu

Se os homens tivessem sido fiéis a Deus, ao longo da História, como numa bobina uns quadros teriam lentamente se desenrolado dos outros, de modo gradual, e iriam sendo acumulados para as novas gerações. E as gerações que, depois do pecado original, vão morrendo teriam antes as apoteoses.

Esta caminhada indica uma espécie de apetência dos espíritos para isto, aquilo, aquilo outro, que é propriamente o núcleo da História, porque é o impulso do gênero humano.

Apesar das Revoluções, esse impulso vai se dando de tal maneira que uma pessoa, estudando e compreendendo como ele se desenvolve, pode falar ao revolucionário, a qualquer momento, a linguagem que o poria de pé.

Isso ocorre em qualquer período da História. Considerem, por exemplo, um norte-americano da época do far west, o homem mais metido em coisas argentárias e aventuras que se possa imaginar, portanto, aparentemente, o mais distante dessas cogitações. Entretanto, nele há algo que trabalha na linha do que os seus antepassados pensaram, rumo ao que os seus descendentes pensarão e que é o tal impulso, a bobina da humanidade, na qual, pisada, ignorada, o homem não presta atenção, mas ela vai trabalhando em seu interior.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1983

E se uma pessoa, com discernimento exato dos espíritos, souber a que altura aquela bobina se encontra, poderá atingir o fundo da alma daquele indivíduo no que tem de melhor e, com as máximas possibilidades de êxito – o que não significa certeza –, tentar interromper o processo revolucionário nele. Porque a Revolu ção é sensível ao estado em que se encontra a bobina naquele momento.

O espírito humano se volta sucessivamente para coisas diferentes, por uma espécie de mecanismo que vai de pai para filho e que não é mecanismo natural, não são as coisas culturais que ele recebeu. É algo que está por debaixo da cultura. São aspirações profundíssimas do espírito humano, que não fazem senão exprimir algo que se encontra mais no fundo; é um anelo processivo que o homem tem do Céu, sob os modos pelos quais ele o concebe sem saber que é o Paraíso.

Impulso propulsor da História

Dou um exemplo muito pessoal. Por mais que eu tivesse união de alma com minha mãe, notava que algo em mim tinha avançado por causa da diferença dos tempos, os quais não fizeram senão decair… Mas no que eu retive de Dona Lucilia, andei mais do que ela, simplesmente por ser seu filho. Não me refiro a virtudes. O correr da bobina, com o tempo, vai fazendo com que dentro dos homens, por mais que decaiam, haja algo acessível a um chamado mais alto.

Isto é contínuo de geração para geração, numa progressão. Como a sucessão harmônica entre o Antigo e o Novo Testamento, assim também estaria a sucessão deste apelo, desta tendência que Deus pôs no fundo dos homens e que caminha para o apogeu. É um caminhar necessário, não depende da vontade do homem, porque se dependesse ele faria besteira. É Deus que vai lhe apresentando sucessivamente as coisas.

Por vezes, isso se passa até em relação aos monumentos. Por exemplo, um veneziano dos antigos tempos, se fosse retratar Veneza – digamos, Canaletto1 –, não seria capaz de pegar os aspectos da cidade que determinados fotógrafos contemporâneos colheram. Porque nestes o espírito humano já deu uns tantos “giros” – estou imaginando a bobina de uma máquina de escrever –, que fizeram com que fossem capazes de captar ali algo que os antigos não conseguiram.

Pensei nisso ao ver um postal comum, mas bonito, do Louvre. O fotógrafo pôs ali alguma coisa que o monumento, de si, não tem, mas a foto pôde mostrar e que corresponde à aspiração existente na geração do fotógrafo para algo de belo, o qual ainda não estava presente na concepção de quem construiu o Louvre.

Flávio Lourenço
Padre Francisco Suárez, S.J. – Museu da Universidade de Valladolid, Espanha

Considerando o mesmo fenômeno por outro aspecto, podemos afirmar que a era dos príncipes terminou com a Revolução Francesa, mas o mito feito a respeito do príncipe depois dela é mais alto do que o príncipe era antes. E, apesar de tudo, representou uma exigência do espírito humano de um tipo de principado que a humanidade ainda não tinha concebido no tempo da Revolução Francesa. Assim, para uma pessoa do Ancien Régime2 um príncipe e uma princesa constituíam uma figura exquise3, mas não eram os personagens de conto de fadas que hoje significam para nós.

Também a infalibilidade pontifícia. Trata-se de um carisma instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo em favor do Papado, nos termos em que a Igreja o define. Entretanto, não há dúvida de que, naquele oceano de imundície e incredulidade do século XIX, as almas dos fiéis reagiam caminhando decididamente para a necessidade de ver definida a infalibilidade.

Analisando personagens históricos como Metternich4, Maria Stuart5 e outros, vemos que não foram tanto quanto se nos afiguram, embora tivessem algo que rumava para isso. Quando se concebe a História assim – nisto está o papel da cultura –, nascem de futuro os homens que realizarão o que sonhamos. Este é o impulso propulsor da História.

Dicotomia de impulsos: alternativa entre Revolução e Contra-Revolução

Outro elemento constitutivo dessa bobina: a necessidade do instinto de sociabilidade de tomar contato com seres que estão acima daqueles que conhecemos neste degredo, leva o homem a pensar em convívios que na realidade não existirão nesta Terra. O convívio com os Anjos, os Santos, mas também com seres hipotéticos, imaginários, apresentados pela poesia, arte, literatura, de algum modo cantam as saudades que temos do Paraíso Terrestre, no qual nós não nascemos, e do Céu para onde vamos.

Gabriel K.
À esquerda, vista de Veneza. À direita, Basílica de São João e São Paulo, Veneza, por Canaletto – Royal Collection, Palácio de Buckingham

Canaletto (CC3.0)

Contudo, à maneira de uma sombra, vai caminhando paralelamente a isso um impulso para o mal.

Como é a bobina do mal? É semelhante ao impulso com que os demônios, tendo entrado nos porcos, se jogaram no lago, conforme narra o Evangelho (cf. Mc 5, 13). Este é o impulso pelo qual o mal vai para o extremo de si mesmo. Essa dicotomia de impulsos é, no fundo, a alternativa Revolução e Contra-Revolução.

Eis a razão pela qual durante a Idade Média, tão venerada por nós, as heresias surgidas eram piores do que as dos tempos dos romanos. Em parte, porque a apostasia é pior do que a gentilidade, mas também porque a bobina do mal vai correndo ao longo dos tempos.

Axiologia do plano de Deus

Aplicando essa doutrina a Nossa Senhora, vemos ser Ela a Rainha da História neste sentido muito especial da palavra: n’Ela a axiologia6 do plano de Deus se realizou inteiramente.

Galleria Nazionale d’Arte Antica (CC3.0)
São Gregório Magno – Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma

Maria Santíssima é Rainha da História neste ponto: Ela basta para que a História seja justificada, porque alguém deu certo. E depois, nas encostas de montanha, uns deram mais certo, outros menos.

Poder-se-ia objetar que a Humanidade Santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo é mais ainda. É verdade. Mas, sendo Ele o Homem-Deus, transcende. Das meras criaturas, quem deu certo foi Ela. A Virgem Maria tem o direito de governar a História porque é Aquela que deu certo.

Compreende-se, assim, o ódio do demônio contra Ela.

Ademais, no fundo – eu acho que isto estaria no Segredo de Maria explicar –, quando se tem essa devoção a Nossa Senhora é porque se sente atraído a esse cúmulo de perfeições que n’Ela se realiza de um modo inefável e inteiramente certo. E isso produz, se se pudesse dizer numa palavra, a inocência.

Ordem do realizado e ordem do possível

E a misericórdia é o por onde Ela faz aproximar de um plano A de Deus a pessoa que, de fato, não realizou tanto quanto possível o plano B, ou C, ou X. É claro que Nossa Senhora consegue isso porque é Mãe de Deus, mas também por ser a criatura mais perfeita. A História seria uma borrasca horrorosa e mil vezes mais tenebrosa do que é se não fosse a misericórdia d’Ela.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1983

Na ordem do ser, o possível é menos nobre do que aquilo que está realizado. E como Maria Santíssima é o que há de mais nobre na ordem do realizado, Ela tem, enquanto tal, uma preeminência sobre a ordem do possível e, de algum modo misterioso, simboliza todo o reino do possível. Considerem que é inconcebível o reino do possível, mas Nossa Senhora o simboliza, não só enquanto está no plano sobrenatural, mas também na humanidade d’Ela.

Digamos assim: Deus quer que todos os seres criados por Ele tenham uma relação entre si; daí o relacionamento entre Anjos, homens. Nessa perspectiva, era conveniente que houvesse uma relação entre os possíveis de Deus e os homens, e que o mais alto dos homens simbolizasse, de algum modo, os possíveis de maneira que, criando esse homem, Deus de algum modo criasse todos os possíveis.

Esse ser humano é Maria Santíssima. Ela é o auge da bobina porque, em determinado momento, o Verbo Se encarnou e habitou entre nós. Ou seja, a bobina foi levada a um ponto-chave tal que dividiu a História em dois, sem que a bobina perdesse sua continuidade.

Gabriel K.
Altar de São João Batista (detalhe) – Igreja de São Florian, Cracóvia

Isso se encaixa inteiramente e é muitíssimo atinente ao Segredo de Maria.

(Extraído de conferência de 30/3/1983)

1) Giovanni Antonio Canal (*1697 – †1768), conhecido como Canaletto.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do francês: preciosa, requintada.

4) Klemens Wenzel von Metternich (*1773 – †1859), diplomata e homem de Estado austríaco.

5) Maria Stuart (*1542 – †1587), Rainha da Escócia, martirizada pela Rainha da Inglaterra, Elizabeth I, por ódio à Fé Católica.

6) Axiologia provém do latim axis, is, eixo. Assim, na concepção de Dr. Plinio, a palavra axiologia e os seus derivados fazem sempre referência ao “eixo” que deve nortear a vida da pessoa, isto é, o fim para o qual o homem é criado e sua vocação específica, em torno do que devem girar todas suas ideias, volições e atividades.

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