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Permuta de influências passadas rumo a um futuro de síntese

Dr. Plinio recebeu de Dona Lucila uma formação pautada no estilo da São Paulo de outrora, baseado no intercâmbio de influências com as nações estrangeiras. Desenvolvendo-se neste ambiente e favorecido por especial discernimento, ele desvendou aspectos peculiares da alma brasileira.

Sou brasileiro por todos os lados. Não tenho em minhas veias outro sangue além do português, umas três ou quatro longínquas gotas de sangue espanhol e um pouquinho de índio.

Fazer o papel de verniz em relação à madeira

Meu pai era sobrinho do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, em cujas memórias consta que seis ou oito gerações passaram-se em Pernambuco depois de o primeiro português da estirpe haver chegado ao Brasil. Era, portanto, o brasileiro em sua própria raiz.

Arquivo Revista
Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira

Minha mãe era uma autêntica brasileira. O antepassado português mais próximo era seu bisavô, o Alferes Joaquim Ribeiro dos Santos, primeiro da família a vir ao Brasil, por linha masculina. A ancestralidade materna dela era composta de paulistas, cuja linhagem se perdia nos primeiros tempos do Brasil colônia. De maneira que mamãe era uma paulista, ao pé da letra, e brasileira a cem por cento.

Assim, analisando minha própria família, é de se perguntar: correspondemos à noção habitual de “brasileiro”? O objetivo não é tratar de mamãe nem de seu filho, a não ser para tomar uma certa ideia corrente e ver até que ponto ela confere ou não com a realidade. Como e o que é um brasileiro?

É preciso especificar dois pontos: em primeiro lugar, mamãe e eu somos católicos, apostólicos, romanos. E como todo bom brasileiro ou todo bom membro de qualquer povo, chega-se ao mais característico de sua pátria quando se é inteiramente católico, pois é próprio à nossa Religião dar brilho aos caracteres nacionais, fazendo o papel de verniz em relação à madeira.

O piso da Sala dos Alardos, na Sede do Reino de Maria, por exemplo, é composto de madeiras brasileiras e o thau1 do leão é feito do famoso pau-brasil, o qual deu o nome à nossa nação. Ora, não se poderia elogiar este parquet, sem enaltecer o verniz que o recobre, porque a madeira como que só realiza sua própria fisionomia depois de coberta de verniz.

Envernizada, ela fica diferente, como também o verniz quando está no balde. Ninguém, conhecendo só a madeira ou só o verniz, poderia imaginar que a junção de ambos ficasse tão bonita.

Pois bem, isso é o que a Religião Católica faz com as várias nações. Ela – cujo foco de irradiação é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana –, é feita para ser vivida entre os homens, os quais, por sua natureza, constituem as nações. Assim, o “líquido” sagrado da Igreja passado sobre a “alma” de cada nação produz o efeito do verniz na madeira: ressalta todas as suas características e toda a sua beleza.

Eis, portanto, o primeiro ponto a especificar: não tratarmos do Brasil visto ao natural, mas dele enquanto “envernizado”.

Arquivo Revista
Sala dos Alardos, na Sede do Reino de Maria, São Paulo

Viajando por diversos Estados do Brasil

A segunda especificação é a seguinte:

Certa ocasião, durante uma conferência para cerca de duzentas e cinquenta pessoas, pedi que levantassem o braço aqueles que estivessem seguros de não possuírem nenhum outro sangue a não ser o brasileiro, pelo menos até o trisavô. O resultado foi menos de dez por cento do auditório… Os demais tinham proporções de sangue estrangeiro; entretanto, todos se consideravam brasileiros.

Assim sendo, o que é o Brasil e o que é ser brasileiro?

Sem dúvida, há zonas do Brasil muito brasileiras: o Norte, o Nordeste, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso quase não têm imigrações. Já o Rio de Janeiro e São Paulo são muito mais cosmopolitas.

No Sul, à medida que nos distanciamos de São Paulo, o fator alemão vai preponderando. No Rio Grande do Sul encontramos uma imigração italiana considerável e um tipo de brasileiro sobre cuja pele já sopram os ventos dos pampas. O gaúcho é ligeiramente espanholado em suas maneiras.

Quantas vezes, viajando por diversos Estados do Brasil, comprazia-me em olhar o movimento da rua pela janela do hotel, analisar como as pessoas se encontravam, conversavam, e eu estabelecia as comparações.

Por exemplo, estando em Belo Horizonte, via os mineiros se cumprimentarem. Eles visavam a amizade, mas com discrição, sem chamar a atenção; o encontro era cordial, mas pouco teatral, com as mãos que se apertavam e o tom baixo de voz: “Como vai passando?” E se tivessem uma política a fazer, já saía ali mesmo…

No Rio Grande do Sul o teor de alma era diferente. Os gaúchos, ao se avistarem, já vinham de longe conversando, com os braços abertos: “Oh, caro amigo!”, e abraçavam-se de ressoarem os tórax.

Elemento fundamental da brasilidade: permutar influências

Entretanto, por cima disso, há uma característica da alma do brasileiro que não tenho visto ser comentada.

José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP (CC3.0)
Fundação de São Vicente – Museu Paulista, São Paulo

Diz-se que o brasileiro tem a mania da imitação e vive com os olhos postos no que se faz fora. Isso tem sua boa parcela de verdade. Mas, o que ocorre é um intercâmbio. Ao mesmo tempo em que recebe uma influência, exerce outra: amolda seu interlocutor, de maneira a este se deixar abrasileirar sem o perceber. Ele tem tanto gosto em imitar quanto em influenciar. E o que ele dá penetra mais ou com tanta profundidade na alma quanto aquilo que recebe.

Essa prodigiosa capacidade de intercambiar, de permutar influências é um elemento fundamental da brasilidade, a qual exercemos de modo subconsciente, e corresponde, de um modo providencial, às circunstâncias de nosso território: tão imenso que a pura estirpe descendente de Portugal não chegaria a encher, a não ser ao longo de séculos e séculos.

Era bom, portanto, que o primeiro povo que viesse se estabelecer aqui fosse o organizador do local e desse as notas iniciais a partir das quais a “música” do país prosseguiria. Mas que, depois, todos os povos da Terra fossem fraternalmente convidados a vir habitar aqui, desde que continuassem na linha iniciada. Era o compromisso da hospitalidade: “Venham para serem dos nossos, não para serem heterogêneos. Tragam suas riquezas, suas características. Estamos dispostos a recebê-los, e com quanta simpatia e boa vontade! Entretanto, há uma condição: nós também temos o que dar. Recebam!”

Não há quem não julgue isso muito equitativo.

Essas explicitações ajudam os brasileiros a se compreenderem face à imigração, e aos filhos de imigrantes a se entenderem e sentirem-se face ao Brasil, para quererem sentir-se influenciados. Ajudam de igual modo os estrangeiros, que para alegria nossa moram no Brasil, a fazerem esta operação, estando neste país por tempo indeterminado.

Em todos – e isso é típico do brasileiro – já estava acertado de maneira subconsciente. Não é proposto como contrato a ninguém, não é um pacto explícito. É um modo de ser tão implícito que levei tempo para explicitá-lo por inteiro.

Como ponto de partida da inocência e da história mental deste povo, temos essa característica que possui suas raízes na mentalidade e na psicologia portuguesas. Tudo isso é nascido de Portugal e nos alegramos que seja assim. Olhamos para a Torre de Belém, por exemplo, e encontramos ali nossas ressonâncias e consonâncias.

Penetração do governo do azeite

Menciono agora outro traço do brasileiro.

Eu considero o negro e o mestiço de negro, como também o índio e quem dele descende, autenticamente brasileiros. Ora, este povo, cujas raízes nativas são tão próximas em alguns de seus filões, não tem relacionamento grosseiro consigo nem com os outros, e quando vê ou sente um trato agressivo, fica chocado. De maneira que, se quiserem cristalizar um brasileiro, basta empregar a brutalidade.

O trato deles é suave, manso, cordial. Mas… circulem por onde tenha mão, não se metam na contramão, porque tudo se enguiça! É como pentear o cabelo do lado errado. Tomem cuidado!

Benedito Calixto (CC3.0)
São José de Anchieta e Pe. Manuel da Nóbrega na cabana de Pindobuçu Acervo da Fundação Reginaldo e Beth Bertholino, São Paulo

Qual é a raiz portuguesa neste aspecto?

No século XIX, reputavam como verdadeiro império colonial, o britânico. A Inglaterra possuía bancos, igrejas protestantes, políticos e militares acocorados em todas suas colônias, em pontos estratégicos e fazendo comércio; se houvesse encrenca, saía briga. Era a força do “leão” britânico colocada para garantir o bom andamento. O império era estabilizado? Sim, porque o “leão” era sólido. No entanto, foi só ele abrir suas garras, que as suas colônias quiserem ser independentes.

Já o colonialismo português não compunha um império, era apenas meia dúzia de colônias, dando a impressão de algo fraco, nação decadente. A monarquia e, mais tarde, a república portuguesa, mandava governadores que, de modo patriarcal, regiam as colônias e ninguém sequer tinha conhecimento exato do que eles faziam ou não. Cada colônia crescia como uma flor ou uma couve-flor.

Se não fosse a influência russa2, as colônias portuguesas não se teriam tornado independentes por esforço próprio, porque os colonizados amavam seus colonizadores. Qual a razão?

A colonização dos portugueses era feita à maneira da ação que o Brasil exerce sobre os não brasileiros. Com os africanos, com os indianos, em Macau, por toda parte, eles penetravam como o azeite: deita a gota, o azeite não rasga e não dilacera a folha de papel; torna-a apenas transparente e se estende em toda a sua capacidade de extensão.

Esse era o colonialismo de Portugal: a penetração do governo do azeite. No fundo, qual foi o mais forte? Não foi o do leão e sim o do azeite!

Alguém perguntará: “Dr. Plinio, e o Brasil? Se é assim, por que não ficou ligado a Portugal?”

Limito-me a dizer uma coisa: bem mais de cem anos depois da independência, o Brasil restabeleceu uma situação na qual o cidadão português tem todos os direitos do brasileiro, e este, todos os direitos do português. É algo que os que proclamaram a independência não entenderiam.

Ou seja, por cima das rivalidades próprias à independência, prevaleceu um senso de união tal que se tem a impressão de aumentar com o passar do tempo. Creio não existir, no mundo inteiro, uma ex-colônia tão amiga da ex-metrópole como o Brasil de Portugal. É o dom desse intercâmbio, é um estilo, um modo especial de ser, de arranjar.

Quem admira, assimila e lucra mais

Qual é o fundamento desse intercâmbio?

A alma nacional é admirativa, por isso capaz de assimilar; quem de bom grado admira o que os outros têm, assimila e lucra mais.

O que o brasileiro mais procura encontrar são afinidades. Quando ele entra em contato com almas com as quais consona para poderem juntos comentar as coisas, para sentirem e pensarem a mesma coisa, sobretudo, para juntos admirarem, é o que mais lhe dá felicidade.

Comentando sobre meu próprio país, faço-o com admiração como há pouco e tantas vezes tenho discorrido sobre outros países. Falo como brasileiro, propício até a admirar o que Deus fez no próprio brasileiro. Esse gosto em ter afinidades na admiração e de intercambiar é o próprio bem-estar do brasileiro. É o ponto por onde ele se sente realizado.

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Dona Lucilia durante uma conferência de Dr. Plinio no auditório da FIESP

Em outros povos, tenho notado o seguinte movimento de alma: “Você é diferente e eu não sinto alegria pelo que você é; vou me diferenciar de você o quanto possível.”

Em briga de galos vê-se isto. Antes de entrarem em conflito, começam a dar voltas e a se olharem, desafiando-se, como se dissesse um ao outro: “Não queira passar em minha frente nem ser superior a mim, nem se apossar do que é meu, porque eu reajo como uma fera. Olhe lá!”

Esta não é a posição brasileira, de modo algum: “Essa qualidade é minha e não sua, e eu fico alegre com isso.” Não. É o contrário: “Veja, vamos admirar, intercambiar? Como é agradável admirar juntos! Como eu gosto que você tenha essa qualidade. Mas eu também tenho tal outra assim, você não gosta? Gosta também? Que bom! Amemos a Deus que criou tudo isso.”

Isto forma o que o ambiente nacional tem para construir com nota brasileira, num território novo, um mundo novo feito de contribuições de toda espécie de passados, para um futuro de síntese. Aqui está o Brasil.

Tal realidade explica como Dona Lucilia, sendo tão brasileira como era, percorria os horizontes da história do passado a partir dos vernizes franceses que a educação dada em São Paulo daquele tempo imprimira sobre sua personalidade. E que, sem a menor ilusão de ser uma francesa, tinha muito de afrancesado em seu modo de ser; isto se nota inclusive nos móveis da casa dela.

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Dr. Plinio em novembro de 1979

Mamãe me ensinou essa capacidade, essa tendência a admirar e a ver em tudo o que há de maravilhoso, não como a atitude de um tolo que vê prodígios onde não os há. Tratava-se da posição de saber apreciar as maravilhas, alegrar-se e satisfazer-se com elas, assimilando de todos os lados.

Essa senhora afrancesada contratou para os filhos uma governanta alemã, mas quis que aprendessem também inglês e soubessem bem o português. Daí se originou uma formação não inventada por ela, mas própria ao ambiente no qual fora criada.

Ela realizava tudo isso com sonoridades, ecos que, para meu coração de filho, só ela possuía. Contudo, era um estilo geral da São Paulo nascente, que começava a receber os estrangeiros com um abraço, com um sorriso, sendo influenciado e influenciando catolicamente.v

(Extraído de conferência de 3/11/1979)

1) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir em favor da Igreja e da implantação do Reino de Maria.

2) Dr. Plinio se refere às colônias portuguesas que, em meados do século XX, sofreram a influência soviética.

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