Visita de um sacerdote italiano
Quando vi que a questão estava azedando cada vez mais, dei-me conta de que deveria sondar a Nunciatura Apostólica no Rio, para ver o que o Núncio pensava a respeito de todo esse assunto.
Neste sentido exerceu um papel muito importante um sacerdote, cuja aproximação de nós constituiu um dos episódios mais rocambolescos de todo esse assunto. Refiro-me a um padre jesuíta, italiano de Veneza, chamado Pe. César Dainese.
Certo dia, tendo encerrado meu expediente de advocacia, vi entrar um padre baixinho, com uma carinha muito esperta, uns olhinhos reluzentes. Eu me aproximei dele, nos apresentamos e, ao ouvir o seu nome, lembrei-me tratar-se do Diretor das Congregações Marianas do Rio de Janeiro; mas não nos conhecíamos pessoalmente.
Percebi estar em presença de um homem todo feito de subtileza e de uma espécie de timidez, mas espertíssimo, agilíssimo. Passamos para a minha sala e eu disse:
— Padre, faça o favor, sente-se. O que o senhor deseja?
Durante toda a conversa ele não me fitou, embora eu olhasse para ele naturalmente, como quaisquer pessoas que conversam.
Ele me perguntou:
— O senhor é presidente da Ação Católica em São Paulo, não?
— Sou sim, Pe. Dainese.
— Eu queria saber do senhor uma coisa… O senhor está encontrando dificuldades aqui em São Paulo, não é?
— Estou.
— O senhor quereria me dizer bem exatamente o que tem em mente com a sua atuação desenvolvida à testa da Ação Católica em São Paulo? Porque ela vai criando uma divisão dentro da Ação Católica brasileira inteira, e eu quereria saber qual é o objetivo que o senhor tem em vista.
Pensei: “Esse homem é mandado por outrem. Ele não veio me fazer essa interpelação só da cabeça dele. Mas é muito esperto e experiente. A primeira atitude que devo tomar para este padre me dar apoio é não fazer o papel de bobo e perguntar-lhe quem o mandou falar comigo. Ele vai me dar a entender isso aos poucos.” Entendi que o melhor seria jogar o todo pelo todo e me abrir com ele, e lhe respondi:
— Pe. Dainese, vou ser franco com o senhor. A situação é a seguinte: trata-se de uma corrente com uma doutrina errada, que pretende destruir toda a autoridade eclesiástica, a Moral e as devoções tradicionais da Igreja, e colocar no lugar uma religião feita de pagodeiras, de toda sorte de prazeres, de concessões ao mundo, em última análise, uma religião que reproduz o Modernismo condenado pelo Papa Pio X. Eu me sinto profundamente chocado e luto contra isso. Pode ser que eu seja esmagado nesse embate, mas eu lutarei até o fim porque essa luta é pela Igreja Católica.
Ele foi ouvindo tudo e disse:
— É, o senhor tem toda a razão e merece verdadeiramente apoio. O senhor nunca procurou informar a ninguém?
Então lancei a minha rede:
— Pe. Dainese, eu moro em São Paulo e tenho pouca oportunidade de ir ao Rio. A quem eu dirigiria minhas informações seria o Núncio Apostólico, mas me falta quem sirva de instrumento de ligação com ele.
— Algo eu posso dizer.
— Então, padre, eu poderia fazer para o senhor um relatório e daqui a algum tempo apareço na Nunciatura Apostólica para conversarmos.
— Pois não. Então o senhor faça assim.
Um encontro com o Núncio, patrocinado pelo Pe. Dainese
Dois ou três dias depois, o relatório estava seguindo para o Rio pelo correio. Passado algum tempo veio um recado do Pe. Dainese.
— Olha, aquele personagem gostaria de conversar com o senhor.
— Quando?
— Ele passa essa semana toda aqui no Rio. O senhor pode vir quando quiser.
Foi nessa ocasião que pude conhecer pessoalmente o Núncio Apostólico, D. Benedetto Aloisi Masella1. Com pouco mais de sessenta anos, de família nobre da Itália, homem de altura mediana, claro, com um rosto um pouco quadrado, os traços muito regulares, cabelos já brancos, corado, atitudes muito distintas, sumamente reservado, era um típico diplomata.
Toquei à porta da Nunciatura e me apresentei:
— Sou o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, desejo falar com o Sr. Núncio.
— Ah, ele o espera.
Entrei, havia uma sala de visitas grande, tudo arranjado à maneira de um palácio. O Núncio entrou, muito amável, apresentou-me o anel para beijar, depois me chamou:
— Venha comigo.
E me fez entrar para uma segunda sala de visitas menor, também bem arranjada, feita evidentemente para confidências. Sentou-se no sofá e me perguntou:
— Caro Doutor, o que o senhor tem para me dizer?
Ele me ouviu impassível durante o tempo inteiro. A fisionomia dele não mudou nada. Nem um gesto de aprovação, nem de desaprovação. Um diplomata perfeito.
No final, ele disse:
— É, precisamos rezar muito. O senhor reze muito, eu vou rezar muito também.
Mas o que os lábios não proferiam, os olhos diziam. O olhar era sumamente complacente, amável, como quem me dava a entender, assim meio por debaixo do pano, que ele atuaria.
Voltei para São Paulo e seguiu-se uma série de novos encontros com o Pe. Dainese, com novas informações de minha parte, que iam naturalmente para a Nunciatura.
Nomeação do Côn. Mayer como Vigário Geral
De repente chega a notícia de que estavam tentando destituir o Côn. Mayer da função de assistente eclesiástico da Ação Católica. Derrubando-o, derrubavam a mim. Que eu perdesse o cargo, não tinha importância nenhuma. O católico foi feito para ser despojado. Mas a questão era quem viria no lugar.
Telefonei para o Pe. Dainese. Contei o caso, ele me disse:
— Está bem, vamos ver o que há para fazer.
Algum tempo depois, eu estava dando aula na Faculdade Sedes Sapientiæ2, quando uma freirinha veio me dizer que havia um padre do Rio de Janeiro querendo falar comigo ao telefone, com muita urgência. Fui “voando” ao telefone, e ele, sem dizer seu nome, perguntou:
— Como vai passando?
Percebi bem que ele não queria que desse o nome dele. Eu disse:
— Bem, e o senhor como está?
— Bem. Olhe aqui, se o seu amigo receber um convite para ser promovido, diga que não recuse.
— Pode estar certo de que eu digo para não recusar.
Dois ou três dias depois, o Côn. Mayer me diz:
— Você não imagina que coisa curiosa se passou. O Arcebispo me promoveu. Convidou-me para ser Vigário Geral da Arquidiocese de São Paulo. Segundo as instruções do Dainese, respondi logo que sim.
A Nunciatura, sabendo que D. José ia demitir o Côn. Mayer, mandou-lhe um daqueles recados bonitos, como se faziam naqueles tempos. Provavelmente foi assim:
“Sr. Arcebispo, cumprimentando V. Exa. com todo respeito e afeto, tenho a alegria de felicitar-vos pelo excelente Assistente Geral da Ação Católica que V. Exa., com tanta sabedoria, designou. Uma pergunta me passa pela cabeça: não seria melhor aproveitar esse ótimo auxiliar nomeando-o Vigário Geral?”
Era uma ordem. Porque naquele tempo as coisas funcionavam assim. De maneira que em vez de vir a degringolada, veio a promoção. Era o cargo-chave para eu poder dar a bombarda que eu queria.
Um novo e importante contato: Pe. Walter Mariaux
Outro sacerdote jesuíta de quem recebi importante apoio foi o Pe. Walter Mariaux, alemão da Renânia, descendente de protestantes franceses expulsos da França por Luís XIV, mas que não tinha mais nada do espírito protestante de seus antepassados.
Conhecemo-nos por ocasião de uma conferência católica a que fui convidado. Na saída, aproximaram-se de mim dois sacerdotes amigos meus e me apresentaram o Pe. Mariaux que os acompanhava, dizendo:
— Pe. Walter Mariaux, vindo recentemente de Roma. Foi Diretor Mundial das Congregações Marianas e agora está viajando pela América do Sul à escolha de um lugar para se fixar. E nós estamos fazendo o possível para ele se fixar aqui no Brasil.
Quando ouvi falar de Roma, meus ouvidos se aguçaram e logo pensei: “Aproveitável, porque para essa batalha preciso ter apoio em Roma.”
Cumprimentamo-nos e ele foi me dizendo logo que apreciava muito o Legionário, cujos artigos transcrevia no boletim das Congregações Marianas, quando estava em Roma. E acrescentou:
— Eu vim a São Paulo só para falar com o senhor. Não seria possível termos um encontro em um desses dias?
Vi logo tratar-se de uma relação muito importante para adquirir. Respondi que, claro, era possível nos encontrarmos e marquei o encontro em minha casa.
No dia e hora marcados, ele apareceu e começamos a conversar a respeito de diversos temas relacionados com o liberalismo, erro contra o qual ele era muito alerta. Tratamos sobre Jacques Maritain3, filósofo de esquerda católica, então muito em voga no Brasil, na França e no mundo inteiro, contra quem escrevíamos muitos artigos no Legionário, e o Pe. Mariaux acompanhava tudo isso. Enfim, concordávamos em gênero, número e caso, e ficamos muito amigos.
Repercussões dos relatórios enviados a Roma
Para preparar o lance contra a corrente errada, tive de ler suas publicações e ir, assim, me documentando. Então combinei com o Pe. Mariaux um certo modo de fazer chegar aos mais altos páramos de Roma, ou seja, à mesa do Papa Pio XII, as queixas sobre a situação em São Paulo. De maneira que, além do conduto até a Nunciatura, havia outro até o próprio Papa, e este funcionava mesmo, como atesta o seguinte episódio.
Certo dia recebi um convite de um provincial de uma Ordem Religiosa que me dizia ter chegado da Europa e precisava falar comigo com urgência, mas estava de cama, doente, e não podia vir até mim. Combinamos a hora e fui.
Encontrei-o deitado na cama. Recebeu-me muito amavelmente e eu indaguei pela saúde dele. Depois me disse:
— O senhor sabe, Dr. Plinio, o mundo é pequeno e eu sei de uns relatórios contra este pobre padre provincial; e esses relatórios estão sobre a mesa do Santo Padre…
Ele abriu os braços em forma de cruz e continuou:
— …crucificando o pobrezinho do padre provincial. O senhor acha que foi justo comigo?
Respondi:
— Estou vendo que o senhor leu o relatório. Pergunto ao senhor: tem ali algum argumento dado contra o senhor que seja falso? Algum fato errado? Algo que não esteja bem raciocinado? Se houver, estou disposto a dar a mão à palmatória… Meu caro Padre Provincial, lamento se minha interrogação fizer mal para sua saúde. Eu quero sua saúde, mas amicus Plato, sed magis amica veritas.
É um dito latino: “Platão pode ser nosso amigo, mas a verdade é mais amiga do que Platão.” O que queria dizer: o senhor pode ser meu amigo, mas eu sou mais amigo da verdade do que do senhor.
E continuei:
— No que é que eu errei? No que informei mal? Não era o caso de ter chegado ao conhecimento do Santo Padre aquilo que foi dito no relatório?
— É, Dr. Plinio, nem tudo é lógica, muita coisa na vida é coração.
— Padre Provincial, é exatamente com o que eu não estou de acordo. O coração contra a lógica não vale nada. Um coração contra a lógica é um coração torto e errado. Ou lógica ou nada.
— É, Dr. Plinio, eu lamento. Então nós não podemos nos entender.
Despedimo-nos e nunca mais nos vimos. Mas eu fiquei encantado de ver que o conduto chegava e que Pio XII tinha mandado chamá-lo para prestar contas.
Um livro-denúncia
O terreno estava preparado para desfechar o golpe, o qual se punha no meu espírito da seguinte maneira: eu estava vendo que, com ou sem o Núncio, nossa situação com D. José Gaspar não se sustentaria por muito tempo. Ele era o Arcebispo e o Núncio não poderia manter durante muito tempo essa situação artificial. Caindo nós em São Paulo, os desvios da Ação Católica – que estavam já penetrando torrencialmente em todo o resto do Brasil – encontrariam campo livre.
O único jeito de criar uma atmosfera de resistência a essa corrente era produzir um escândalo que denunciasse todo o mal feito pela Ação Católica e deixasse claro que nós éramos contrários a esses erros. De maneira que nós, quando depostos, fôssemos imolados in odium fidei4 para o Brasil inteiro, e todos que tivessem um pouco de espírito de fé compreendessem o que estava acontecendo e se mantivessem ao nosso lado. Assim, mesmo na oposição, poderíamos continuar a ter uma corrente a nosso favor. Do contrário, ficaríamos completamente isolados.
Eu quis, portanto, aproveitar o cargo e as honras de presidente, enquanto ainda os possuía, para dar um grande golpe antes de cair. E pensei: “Eu faço um livro denunciando toda essa corrente, solto com um prefácio do Núncio e envio para o Santo Padre Pio XII. Vamos ver o que acontece. Ao menos não dou um tiro de louco, mas de um combatente que sabe como e contra quem deve atirar.
1) Benedetto Aloisi Masella (*1879 – †1970), criado Cardeal por Pio XII em 1946, foi Núncio Apostólico no Chile entre 1919 e 1927, e no Brasil entre 1927 e 1954, data na qual foi nomeado Arcipreste da Basílica de São João de Latrão e Prefeito da Congregação para a Disciplina dos Sacramentos. Exerceu também a função de Camerlengo da Santa Igreja Romana desde 1958 até a sua morte.
2) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiæ, pertencente às Cônegas de Santo Agostinho.
3) Filósofo francês (*1882 – †1973).
4) Do latim: por ódio à Fé.