O católico deve ter um espírito ágil e penetrante, sempre de atalaia contra as aparências, só entregando sua confiança a quem mostrar, depois de exame meticuloso e arguto, que é ovelha autêntica. Eis um dos ensinamentos de Dr. Plinio em seu livro Em defesa da Ação Católica.
Temos tido ocasião de citar reiteradamente, no decurso desta nossa exposição, as Sagradas Escrituras, mas o leitor terá notado que as citações do Antigo Testamento têm aparecido com muito mais frequência nesta obra do que as do Novo Testamento.
Este fato decorre do propósito que formamos de reservar para análise dos textos do Novo Testamento um capítulo especial mais amplo, no qual cuidaríamos particularmente da posição em que perante eles se encontram as doutrinas que defendemos. É óbvia a vantagem de um estudo especial neste sentido.
Jesus pregou a misericórdia, porém não a impunidade sistemática do mal
Fazemos a apologia de doutrinas de força, luta pelo bem é certo, e força a serviço da verdade. Mas o romantismo religioso do século passado desfigurou de tal maneira em muitos ambientes a verdadeira noção de Catolicismo, que este aparece aos olhos de um grande número de pessoas, ainda em nossos dias, como uma doutrina muito mais própria “do meigo Rabi da Galileia” de que nos falava Renan1, do taumaturgo um tanto [filantrópico] por seu espírito e por suas obras com que o positivismo pinta blasfemamente Nosso Senhor, parecendo ao mesmo tempo enaltecê-lo, do que do Homem-Deus que nos apresentam os Santos Evangelhos.
Costuma-se afirmar, dentro desta ordem de ideias, que o Novo Testamento instituiu um regime tão suave nas relações entre Deus e o homem, ou entre o homem e o seu próximo, que todo o sentido de luta e de severidade teria desaparecido da Religião. Tornar-se-iam assim obsoletas as advertências e ameaças do Antigo Testamento, e o homem teria ficado emancipado de qualquer obrigação de temor de Deus ou de luta contra os adversários da Igreja.
Sem contestar que realmente na lei da graça tenha havido uma efusão muito mais abundante da misericórdia divina, queremos demonstrar que se dá às vezes a este fato gratíssimo um alcance maior do que na realidade ele tem.
Não há, graças a Deus, católico algum que, por pouco que seja instruído dos Santos Evangelhos, não se lembre do fato narrado por São Lucas que exprime de modo admirável o reinado da misericórdia, mais amplo, mais constante e mais brilhante no Novo Testamento do que no Antigo. O Salvador fora objeto de uma afronta em uma cidade de Samaria. E “vendo isto os seus discípulos, Tiago e João, disseram: ‘Senhor, queres tu que digamos que desça fogo do céu, que os consuma (aos habitantes da cidade)?’ Ele, porém, voltando-se para eles, repreendeu-os dizendo: ‘Vós não sabeis de que espírito sois. O Filho do Homem não veio para perder as almas, mas para as salvar.’ E foram para outra povoação” (9, 50-56).
Que admirável lição de benignidade! E com que consoladora e grande frequência Nosso Senhor repetiu lições como esta! Tenhamo-las gravadas bem fundo em nossos corações, mas aí as gravemos de modo tal que reste lugar para outras lições não menos importantes do Divino Mestre. Ele pregou certamente a misericórdia, mas não pregou a impunidade sistemática do mal.
Não arranquemos ao Santo Evangelho página alguma
No Santo Evangelho, se Ele nos aparece muitas vezes perdoando, aparece-nos também mais de uma vez punindo ou ameaçando. Aprendamos com Ele que há circunstâncias em que é preciso perdoar, e em que seria menos perfeito punir; e também circunstâncias em que é preciso punir, e seria menos perfeito perdoar. Não incidamos em um unilateralismo de que o adorável exemplo do Salvador é uma condenação expressa, já que Ele soube fazer, ora uma, ora outra coisa. Não nos esqueçamos jamais do memorável fato que São Lucas narra no texto acima. E também não nos esqueçamos deste outro, simétrico ao primeiro, e que constitui uma lição de severidade que se ajusta harmonicamente à da benignidade divina, num todo perfeito.
Ouçamos o que de Corazim e Betsaida disse o Senhor e aprendamos com Ele não só a divina arte de perdoar, mas a arte não menos divina de ameaçar e de punir: “Ai de ti Corazim, ai de ti Betsaida, porque se em Tiro ou Sidônia tivessem sido feitos os milagres que se realizaram em vós, há muito tempo que elas teriam feito penitência em cilícios e em cinza. Por isso vos digo que haverá menos rigor para Tiro e Sidônia no dia do juízo, que para vós. E tu, Cafarnaum, elevar-te-ás porventura até o céu? Hás de ser abatida ao inferno, porque se em Sodoma tivessem feito os milagres que se fizeram em ti, talvez existisse ainda hoje. Por isso vos digo que no dia do juízo haverá menos rigor para a terra de Sodoma, que para ti” (Mt 11, 21-23).
Note-se bem: o mesmo Mestre que não quis mandar o raio sobre o vilarejo de que acima falamos, profetizou para Corazim e Betsaida desgraças ainda maiores que as de Sodoma!
Não arranquemos ao Santo Evangelho página alguma e encontremos elemento de edificação e de imitação nas páginas sombrias como nas luminosas, pois que tanto umas quanto outras são salutaríssimos dons de Deus.
Se a misericórdia ampliou no Novo Testamento a efusão das graças, a justiça, por outro lado, encontra na rejeição de graças maiores, crimes maiores a punir. Entrelaçadas intimamente, ambas as virtudes continuam a se apoiar reciprocamente no governo do mundo por Deus. Não é exato, pois, que no Novo Testamento só haja lugar para o perdão e não para o castigo.
Os pecadores antes e depois de Cristo
Mesmo depois da Redenção, continuou a existir o pecado original com o triste cortejo de suas consequências na vontade e na inteligência do homem. Por outro lado, os homens continuaram sujeitos às tentações do demônio. E tudo isto fez com que não desaparecesse da terra o pecado, pelo que a Igreja continua a navegar num mar agitado, no qual a obstinação e a malícia dos pecadores erguem contra ela obstáculos que a todo momento ela deve romper. Basta um lance de olhos, ainda que superficial, na História da Igreja, para dar a esta verdade uma evidência cruel. Mais ainda. A graça santifica os que a aceitam, mas a rejeição à graça fará um homem pior do que ele era antes de a receber. É neste sentido que o Apóstolo escreve que os pagãos convertidos ao Cristianismo e depois arrastados pelas heresias se tornam piores do que eram antes de ser cristãos. O maior criminoso da História não foi certamente o pagão que condenou Jesus Cristo à morte, nem mesmo o sumo sacerdote que dirigiu a trama dos acontecimentos que culminaram com a crucifixão, mas o apóstolo infiel que por trinta dinheiros vendeu seu Mestre. “Quanto maior a altura mais fundo o tombo”, diz um ditado de nossa sabedoria popular. Que profunda e dolorosa consonância com os ensinamentos da Teologia tem esta asserção!
Assim, a Santa Igreja tem de se defrontar no seu caminho com homens tão maus ou ainda piores do que aqueles que, vigente o Antigo Testamento, se insurgiram contra a Lei de Deus. E o Santo Padre Pio XI, na Encíclica Divini Redemptoris2 declara que em nossos dias não só alguns homens, mas “povos inteiros se encontram no perigo de recair em uma barbárie pior que aquela em que jazia a maior parte do mundo ao aparecer o Divino Redentor.”
Portanto, a defesa dos direitos da verdade e do bem exige que com um vigor maior que nunca se dobre a cerviz dos múltiplos inimigos da Igreja. Por isto deve o católico estar pronto a brandir com eficácia todas as armas legítimas, sempre que suas orações e sua cordura não bastarem para reduzir o adversário.
Notemos nos textos seguintes quantos e que admiráveis exemplos de argúcia penetrante, de combatividade infatigável, de franqueza heroica encontramos no Novo Testamento. Veremos assim que Nosso Senhor não foi um doutrinador sentimental, mas o Mestre infalível que, se de um lado soube pregar o amor com palavras e exemplos de uma insuperável e adorável doçura, soube, também pela palavra e pelo exemplo, pregar com insuperável e não menos adorável severidade o dever da vigilância, da argúcia, à luta aberta e rija contra os inimigos da Santa Igreja, que a brandura não puder desarmar.
A “astúcia da serpente”
Comecemos pela virtude da argúcia, ou, em outros termos pela virtude evangélica da astúcia serpentina.
São inúmeros os tópicos em que Nosso Senhor recomenda insistentemente a prudência, inculcando assim aos fiéis que não sejam de uma candura cega e perigosa, mas façam coexistir uma cordura com um amor vivaz e diligente dos dons de Deus; tão vivaz e tão diligente que o fiel possa discernir, por entre mil falsas roupagens, os inimigos que os querem roubar.
Vejamos um texto: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestidos de ovelhas e por dentro são lobos rapaces. Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura, colhem-se uvas dos espinhos ou figos dos abrolhos? Assim toda a árvore boa dá bons frutos e a árvore má dá maus frutos. Não pode uma árvore boa dar maus frutos nem uma árvore má dar bons frutos.
Toda a árvore que não dá bom fruto será cortada e lançada no fogo. Vós os conheceis, pois, pelos seus frutos” (Mt 7, 15-20).
Este texto é um pequeno tratado de argúcia. Começa por afirmar que teremos diante de nós não só adversários de viseira erguida, mas falsos amigos e que, portanto, nossos olhos se devem voltar vigilantes não só contra os lobos que de nós se aproximam com a pele à mostra, mas ainda contra as ovelhas, a fim de ver se em alguma não descobriremos sob a lã alva o pelo ruivo e mal disfarçado de algum lobo astuto. Quer isto dizer em outros termos que o católico deve ter um espírito ágil e penetrante, sempre de atalaia contra as aparências, que só entrega sua confiança a quem mostrar, depois de exame meticuloso e arguto, que é ovelha autêntica.
Mas como discernir a falsa ovelha da verdadeira? “Pelos frutos se conhecerão os falsos profetas.” Nosso Senhor afirma com isto que devemos ter o hábito de analisar atentamente as doutrinas e ações do próximo, a fim de conhecermos estes frutos segundo seu verdadeiro valor e de nos premunirmos contra eles quando maus.
Ai dos dirigentes nos quais a candura faça amortecer o exercício da vigilância
Para todos os fiéis esta obrigação é importante, pois que a repulsa às falsas doutrinas e às seduções dos amigos que nos arrastam ao mal ou que nos retêm na mediocridade é um dever. Mas para os dirigentes de Ação Católica, aos quais incumbe, a título muito mais grave, vigiar por si e vigiar por outrem, e impedir, por sua argúcia e vigilância, que permaneçam entre os fiéis ou subam a cargos de grande responsabilidade homens eventualmente filiados a doutrinas ou seitas hostis à Igreja, este dever é muito maior.
Ai dos dirigentes em que um sentido errado de candura faça amortecer o exercício contínuo da vigilância em torno de si! Perderão com sua desídia maior número de almas do que o fazem muitos adversários declarados do Catolicismo. Incumbidos de, sob a direção da hierarquia, fazer multiplicar os talentos, que são as almas existentes nas fileiras da Ação Católica, não se limitariam eles, entretanto, a enterrar o tesouro, mas permitiriam por sua “boa fé” que ele caísse nas mãos dos ladrões. Se Nosso Senhor foi tão severo para com o ser vo que não fez render o talento, que faria Ele a quem estivesse dormindo enquanto entrava o ladrão?
Mas passemos a outro texto. “Eis que vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, astutos como as serpentes, e simples como as pombas. Acautelai-vos, porém, dos homens, porque vos farão comparecer nos seus tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; e sereis levados por minha causa à presença de governadores e de reis, como testemunhos diante deles e diante dos gentios” (Mt 7, 16-18).
Em geral, tem-se a impressão de que este texto é uma advertência exclusivamente aplicável aos tempos de perseguição religiosa declarada, já que ele só se refere à citação perante tribunais, governadores e reis e à flagelação em sinagogas. À vista do que ocorre no mundo, seria o caso de perguntar se há um só país, hoje em dia, em que se possa ter a certeza de que, de um momento para outro, não se estará em tal caso.
De qualquer maneira, também seria errado supor-se que Nosso Senhor só recomenda tão grande prudência diante de perigos ostensivamente graves e que de modo habitual pode um dirigente de Ação Católica renunciar comodamente à astúcia da serpente e cultivar apenas a candura da pomba. Com efeito, sempre que está em jogo a salvação de uma alma, está em jogo um valor infinito porque pela salvação de cada alma foi derramado o Sangue de Jesus Cristo. Uma alma é um tesouro maior do que o Sol e a sua perda é um mal muito mais grave do que as dores físicas ou morais que possamos sofrer atados à coluna da flagelação ou no banco dos réus.
Assim, tem o dirigente da Ação Católica obrigação absoluta de ter olhos atentos e penetrantes como os da serpente no discernir todas as possíveis tentativas de infiltração nas fileiras da Ação Católica, bem como qualquer risco a que a salvação das almas possa estar exposta no setor a ele confiado.
Vigilância, perspicácia, sagacidade, previdência
A este propósito é muito oportuna a citação de mais um texto. “E respondendo Jesus, disse-lhes: ‘Vede que ninguém vos engane. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; e seduzirão muitos’” (Mt 24, 4-5). É um erro supor que o único risco a que os ambientes católicos possam estar expostos consiste na infiltração de ideias nitidamente errôneas. Assim como o Anticristo procurará inculcar-se como o Cristo verdadeiro, as doutrinas errôneas procurarão embuçar seus princípios em aparências de verdade, revestindo-os dolosamente de uma suposta chancela da Igreja, e assim preconizar uma complacência, uma transigência, uma tolerância que constitui rampa escorregadia por onde facilmente se desliza, aos poucos e quase sem perceber, até o pecado. Há almas tíbias que têm uma verdadeira paixão de se colocar nos confins da ortodoxia, a cavalo sobre o muro que as separa da heresia, e aí sorrir para o mal sem abandonar o bem, ou antes, sorrir para o bem sem abandonar o mal. Infelizmente, cria-se com tudo isso, muitas vezes, um ambiente em que o sensus Christi3 desaparece por completo e em que apenas os rótulos conservam aparência católica. Contra isto deve ser vigilante, perspicaz, sagaz, previdente, infatigavelmente minucio so em suas observações o dirigente da Ação Católica, sempre lembrando de que nem tudo que certos livros ou certos conselheiros apregoam como católico o é na realidade. “Vede que ninguém vos engane: porque muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu; e enganarão muitos” (Mc 13, 5-6).
Discernir o mal mesmo em meio a manifestações de entusiasmo
Outro texto digno de nota é este: “E, estando em Jerusalém pela festa da Páscoa, muitos creram no seu nome, vendo os milagres que fazia. Mas Jesus não se fiava neles, porque os conhecia a todos e porque não necessitava de que lhe dessem testemunho de homem algum, pois sabia por Si mesmo o que havia no (interior do homem)” (Jo 2, 23-25).
Mostra-nos ele claramente que por entre as manifestações por vezes entusiasmáticas que a Santa Igreja possa suscitar, devemos aproveitar todos os nossos recursos para discernir o que pode haver de inconsistente ou de falho. Foi este o exemplo do Mestre. Quando necessário, não recusará Ele ao apóstolo verdadeiramente humilde e desprendido até luzes carismáticas e sobrenaturais, para discernir os verdadeiros e os falsos amigos da Igreja. Com efeito, Ele que nos deu a recomendação expressa de sermos vigilantes não nos recusará as graças necessárias para isto. “Atendei a vós mesmos e a todo o rebanho, sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para governardes a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com seu próprio Sangue. Eu sei que, depois da minha partida, se introduzirão entre vós lobos arrebatadores que não pouparão o rebanho” (At 20, 28-29).
É certo que só se refere diretamente aos Bispos a obrigação de vigilância contida neste texto. Mas na medida em que a Ação Católica é um instrumento da hierarquia, instrumento vivo, inteligente, deve ela também estar de olhos vigilantes contra os lobos arrebatadores.
A fim de não alongar por demais esta exposição, citamos apenas mais alguns textos:
O mesmo São Pedro ainda teve mais este conselho: “Vós, pois, irmãos, estando prevenidos, acautelai-vos, para que não caiais da vossa firmeza, levados pelo erro destes insensatos; mas crescei na graça e no conhecimento do Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A Ele (seja dada) glória, agora e no dia da eternidade. Amém” (2Pd 3, 17-18).
E não se julgue que só um espírito naturalmente inclinado à desconfiança pode praticar sempre tal vigilância. Em São Marcos lemos: “O que eu, pois, digo a vós, digo a todos: ‘Vigiai’” (13, 37). São João aconselha com solicitude amorosa: “Filhinhos, ninguém vos seduza” (1Jo 3, 5-7).
A todos nós, membros da Ação Católica, incumbe, pois, o dever da vigilância arguta e eficaz4.
1) Joseph Ernest Renan (*1823 – †1982). Escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês.
2 ) De 19 de março de 1937, sobre o comunismo ateu.
3) Do latim: senso cristão.
4) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Em defesa da Ação Católica. São Paulo: Artepress, papéis e artes gráficas, LTDA. p. 283-292 (título e subtítulos nossos).