Peculiaridades de um tipo humano modelado pelas mais diversas e contraditórias influências, cujo feitio, por vezes incompreendido, comportava importantes traços contrarrevolucionários.
Talvez se pudesse sustentar que a imigração aristocrática portuguesa era mais numerosa do que a plebeia. Quer dizer, tomando o número de plebeus de Portugal – é a massa da população – e o de aristocratas, estes eram proporcionalmente mais numerosos. Por que os aristocratas portugueses vinham parar aqui?
Força de absorção exercida pelo Brasil
As famílias do Portugal antigo, bem diferente das de nossos dias, tinham dez, doze, quinze filhos. Se os pais pertenciam à plebe, os filhos iam trabalhar no cais ou em algo do gênero. Mas o trabalho manual era proibido aos nobres, inclusive para não fazer concorrência com os outros. Eles só tinham uma saída: ir para a guerra. Os filhos primogênitos ficavam, em geral, administrando o patrimônio da família.
Os mais moços se engajavam na guerra. A maior parte dos oficiais e até dos soldados dos batalhões eram nobres, os quais sabiam que, lutando na guerra e se destacando, podiam morrer, ficar aleijados. Se perdessem a vida, morreriam com o sinal da Cruz. Se permanecessem aleijados, tinham melhor do que o Instituto de Aposentadoria e Pensões: no castelo, nas terras da família, receberiam pensão, tudo estava garantido para eles e seus filhos. De maneira que podiam arrojar-se. Tinham um colchão sobre o qual cair.
Quando foram feitos os descobrimentos, a alternativa deixou de ser a guerra ou a ruína e a decadência. Passou a haver as navegações. Então, os nobres de Portugal vinham para cá com a esperança de ficarem ricos, se casarem com caipiras abastadas daqui e depois voltarem para Portugal, onde levariam um estadão de vida, com dinheiro proveniente do Brasil.
Frequentemente faziam isso, mas às vezes não. O homem viajava para cá e ficava como que dentro da goma arábica. Na hora de sair, a cola o prendia. E essa é a força de absorção que o Brasil exercia sobre os portugueses. Alguns deles eram nobres, ficavam aqui e tinham descendência.
Padrão europeu com bafo do sertão
As famílias paulistas nobres davam educação de bom quilate a seus filhos. Eles eram muito mais bem educados do que ricos, e nas suas casas havia mais boas maneiras do que bons móveis. Estes não vinham a não ser de Portugal, porque só essa nação comerciava com o Brasil. As casas brasileiras eram cheias de porcelanas da Índia, da China, conseguidas pelas navegações portuguesas no Oriente, tecidos preciosos vindos de Portugal. As pratarias eram procedentes de Minas Gerais, os objetos de madeira feitos por artistas locais, que eram entalhadores de primeira ordem. E assim ia se constituindo aos poucos, com uma educação boa, um tipo físico bom e uma mentalidade especial, que descreverei em seguida.
Essa gente, como era educada?
Com a arrière pensée1 tendente quanto possível a imitar o padrão português. Portugal era a janela através da qual eles viam a Europa inteira. Portanto, continuamente procurando elevar-se segundo o padrão europeu, mas recebendo no rosto todo o bafo do sertão.
O que entendo aqui como “bafo do sertão”? Um mato duro, rebarbativo, onde, para se entrar, abrir picada e se manter, era preciso enfrentar uma natureza linda, mas hostil. Por exemplo, andando de um lado para outro, via-se uma joia viva, a arara, mas, aos pés, uma serpente; ouvia-se o rugido de uma onça. Havia as doenças, os desastres, os impaludismos, coisas de toda ordem.
O moço criado no ambiente de São Paulo, tocando viola durante as noites pelas ruas românticas da cidade, alimentado com literatura portuguesa e também francesa, dado, na relatividade caipira das coisas, à janota, sabia que, quando se formasse na Faculdade de Direito, seus pais lhe dariam umas terras no fundo do sertão e ele teria que suar para chegar até lá e se estabelecer. E seria ao mesmo tempo, em geral, advogado – ou juiz de Direito, ou tabelião – e fazendeiro, o pioneiro numa zona duríssima, com crimes, política violenta, dirigindo levas de escravos, muitos dos quais às vezes se revoltavam, e ali permaneceria, imerso na mata, na poeira, na caipirada, até se tornar um homem maduro.
Quando completasse cinquenta anos de idade, estava com a vida feita. Era um grande senhor com imenso cafezal, toda a zona estava civilizada e ordenada. Ele vinha montar um palacete na cidade de São Paulo para educar os seus filhos.
Poder-se-ia fazer – forçando um pouco, porque a realidade não é tão geométrica quanto vou dizer – uma regra de três: o Brasil era o sertão de Portugal, Portugal estava para o Brasil como São Paulo para o sertão. Era uma zona, então, de um desbravamento feroz.
Esses senhores e essas senhoras vinham depois morar na São Paulo já mais desenvolvida, mais citadina. Enquanto eles estiveram fora, a cidade cresceu, construíram-se novos prédios, abriu-se mais para o comércio exterior, europeizou-se mais, tomou mais ares do que quando foram para o sertão. Quando eles vinham se estabelecer aqui, traziam atrás de si tragédias. O homem, para abrir a sua fazenda, teve que enfrentar muitas vezes a morte.
Pequenos fatos que dão o sabor da vida de outrora
Certa vez, visitei uma velha fazenda muito grande em Ribeirão Preto, chamada “Fazenda das Flores”, nome até poético, de parentes meus. Essa fazenda pertenceu durante muito tempo a uma pessoa estranha de quem eles compraram. Fora o antro de um famoso assassino, Dioguinho, que era o terror do sertão paulista e matara muitas pessoas. Far West puro.
Conheci uma velha senhora, em sua casa na Av. Higienópolis – que foi, mais do que a Av. Paulista, o foco do bairro, depois que deixaram os Campos Elíseos –, que era fazendeira, matriarca, muito rica, e contava este fato:
Um dia chegou à fazenda do marido dela um homem bem moço, agradável de trato, gentil, e disse aos escravos que queria falar com o dono. Tendo eles informado que o dono não estava, o jovem afirmou que desejava conversar com sua senhora. Pensando que fosse algum conhecido, ela se dirigiu à sala de espera, carregando nas mãos uma bandeja com licores para servir. Quando entrou, viu se tratar de um estranho, cumprimentou-o atenciosamente, fê-lo sentar e ofereceu-lhe a bebida. O homem disse-lhe com amabilidade:
— Minha senhora, eu sou Dioguinho.
Ela:
— Ai! – e deixou a bandeja cair no chão.
— Sente-se, faz favor.
Notando que ela estava com medo, julgando que ele quereria matá-la, o homem sorriu e disse:
— Eu vim aqui trazer um recado ao seu marido.
Depois de transmiti-lo, ele disse “até logo” e foi-se embora.
Outro fato semelhante ocorreu com meu avô. Durante uma noite de trabalho em sua casa, foi interrompido por umas pedrinhas que jogavam de fora. Ele foi ver e notou que era um outro assassino célebre, chamado Chico Tanoeiro.
Esse homem era afilhado de meu avô. Naquele tempo tomava-se muito mais a sério o assunto afilhado do que hoje, sobretudo afilhado de Batismo.
Chico Tanoeiro disse: “Estou fugindo da polícia, arranja-me um cavalo, meu padrinho!”
Meu avô indicou um cavalo, ele montou e saiu galopando.
Depois minha avó ficou sabendo que Chico Tanoeiro estivera em casa dela.
As senhoras paulistas
Essas senhoras da Belle Époque2 – entre 1900 e 1913, por exemplo – eram ricas, estabelecidas, vestiam-se com modas vindas de Paris, tinham móveis provenientes da Europa, moravam nos Campos Elíseos, em Higienópolis. Possuíam bonitas carruagens – algumas tinham automóveis – e muitas vezes já haviam feito duas, três, quatro viagens à Europa, na idade madura, depois de terem passado por todos esses traumas da vida dificílima que as senhoras levavam naquele tempo.
Quem visse, na casa onde eu residia, o quadro de minha avó nunca diria que ela morou na primeira residência de Pirassununga que teve vidraças; o chão era de terra batida e não de assoalho. Mas era a melhor casa da cidade. E minha avó passou por cem coisas desse gênero.
Olha-se para o quadro e se verifica que ela, já velha, tem alguma coisa de uma pessoa muito bonita, de categoria; mas, de outro lado, algo da senhora dominadora que assistiu ao lado do marido ao drama todo da vida, da ereção de um patrimônio, da fundação de uma estirpe, e que possui, portanto, qualquer coisa de discretamente senhoril e patriarcal.
Isso modelou a forma de ser dos paulistas pelas décadas adentro. E daí decorreu um modo de ser paulista, misturando a severidade, a habilidade, com algo de austero, capaz de meter medo. Não é a habilidade pela qual se sobe do grau zero para cima, mas aquela por onde do grau de cima se fabrica um grau maior. É uma outra escola de habilidade, a qual começa por utilizar o senhoril.
Fazem parte dessa gênese especial da sociedade de São Paulo as famílias de descendentes dos Bandeirantes, que eram feras humanas e heróis, os quais caminharam a pé até o Oceano Pacífico para lavar as mãos… E nas suas gerações sucessivas foram dando nos fazendeiros, nos desbravadores e depois nos capitalistas da grande cidade que é a São Paulo de hoje.
Falta de compreensão dos demais estados brasileiros
Meu pai era pernambucano. Portanto, posso dizer isso sem nenhum parti pris3 e com a possibilidade de compreender bem todo o papel do nordestino, do carioca, do mineiro, do gaúcho e dos outros vários estados do Brasil. Estou mencionando alguns, pois não posso fazer aqui a ladainha dos vinte e um estados. Sei que com certas coisas preciso tomar muito cuidado e uma delas é o regionalismo.
O fato concreto é que os outros estados do Brasil não compreenderam bem isso. Por exemplo, o carioca amável, risonho, prazenteiro, que via o paulista passar férias no Rio de Janeiro. Conheço menos a história do Estado do Rio do que a de São Paulo. Desconfio que os cariocas enfrentaram matos muito menos bravios, feras menos ferozes, enfim, as Bandeiras eles não fizeram. Nesse conjunto harmônico chamado Brasil, Deus pedia a eles outra forma de atração: o charme, o encanto, a ligação, o modo de resolver as coisas no sorriso. Tudo isso Ele deu aos cariocas e não aos paulistas.
Naquele tempo não se ia ao Rio de Janeiro de avião nem de automóvel. Chega o trem da Central do Brasil na estação D. Pedro II e, dos vagões de luxo, desciam os paulistas, todos sérios, com caras de mando, ultra cuidadosamente bem vestidos e com um olhar comparativo em relação a todo mundo, porque o mando testa em quem ele pode mandar.
Eles se hospedavam, por exemplo, num dos melhores hotéis, o Palace Hotel, no centro do Rio de Janeiro, que também a voragem levou. Um paulista caminhava pelas ruas com ares de conquistador de terras. Assim como para sua fazenda e seus cafezais, ele olhava para os cariocas que passavam alegres, prazenteiros, despreocupados e brincalhões. O paulista, sócio do Jockey Clube de São Paulo, ia almoçar no Rio de Janeiro e encontrava a brincadeira, a amabilidade…
Devo dizer que senti isto na minha própria pele. Habituado ao modo de ser de São Paulo, ninguém me preveniu de que o Rio de Janeiro era tão diferente. Quando cheguei lá e me deparei com o ambiente carioca, percebi como eles olhavam o paulista e senti uma diferenciação fabulosa.
Ao primeiro paulista que encontrei, perguntei:
— Diga-me uma coisa: como é este lugar aqui?
— É um lugar muito agradável e o povo também. Venho aqui para me distrair um pouco, eles são divertidos; e depois volto para São Paulo.
Pode dar implicância, mas estou descrevendo um equívoco. O paulista passaria por seco, fechado, reservado. O carioca logo convida o paulista para a casa dele. Para ser convidado para a residência de um paulista, era um problema. Eles só se convidavam numa rodinha muito íntima, pequena.
Aliança entre charme e dignidade propulsora
Entretanto, não chegaram a entender que entre o charme e a prevalência de uma certa dignidade forte e propulsora deveria haver uma aliança, uma compreensão, rumo a um Brasil total.
Um estado não era excludente do outro. Uma pessoa que tivesse a visão de conjunto deveria notar uma reversibilidade entre os predicados dos vários estados, e aí se formaria verdadeiramente um Brasil total.
Esse Brasil não existiu porque o paulista meio fechado, rico, com um porto dando diretamente para a Europa, que era Santos, ali embarcava e ia para Paris. Regressando a São Paulo, ele formava um gênero meio luso, meio afrancesado, com a força do domador do interior, com algo de feudal do dono de fazendas que eram províncias. Constituía algo que era diferente do aristocratismo agradável, atraente da cidade que no Império se chamava corte e que na República passou a ser a capital federal, sede do corpo diplomático, dos grandes corpos de estado, da Academia Brasileira de Letras, dos melhores literatos, dos grandes jornais e da vida intelectual do país. São duas coisas diferentes.
Naturalmente, para pintar o quadro dessa São Paulo que descrevo não estou pondo os matizes, mas vinquei muito. Esses vincos existiram assim, mas haveria também uma porção de contrapesos, de conformes que se eu fosse mencionar não acabaríamos mais. Optei por seguir este conselho típico da São Paulo de antigamente: “Quando você falar em público, entenda bem que precisa falar menos do que tem vontade, pois os ouvintes sempre acharão que você falou demais.”
Um dos mais interessantes museus, que não existiu…
Quando vi essa São Paulo se transformar, pensei no seguinte: “Não vai ficar documentação do que ela foi. Eu deveria discretamente, em horas noturnas quando ninguém vê, tirar fotografias daquilo que sei que deixará de existir. E fazer não só um álbum fotográfico, mas um museu de uma porção de objetos que vão sair de uso e agora são correntes. Seria um dos museus mais interessantes. Nesse museu muitas coisas vão mudar de fisionomia. Hoje parecem revolucionárias e as detesto. Quando a Revolução tiver ido mais adiante, verei nelas aspectos contrarrevolucionários dos quais terei saudades.”
Como seria interessante se tivéssemos um espaço desses, para eu comentar com os aqui presentes objeto por objeto e comparar depois com a São Paulo do caos dos últimos dias!
Não fiz isso por duas razões.
A primeira era que, se me vissem colecionando tantos objetos para um futuro museu, julgariam uma coisa completamente despropositada, porque ninguém previa que São Paulo daria a guinada fabulosa que deu e que aqueles objetos passariam a ser históricos. Pareceria uma mania e então diriam que minhas ideias provinham dela. Eu não podia, para carregar o peso do passado, comprometer a luta do futuro.
Em segundo lugar, tive sempre inabilidade para máquina de fotografia. Nunca fiz uma tentativa de fotografar nada. Percebia que aquilo não era comigo e não tinha absolutamente ninguém que pudesse fazer isso para mim, porque não compreenderiam que eu quisesse tirar fotos daqueles objetos. Então, esse museu não existe.
(Extraído de conferência de 16/4/1983)
1) Do francês: intenção, projeto.
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.
3) Do francês: parcialidade.