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Magistral arte de parabolizar princípios

Relacionar doutrinas e princípios teóricos a objetos, personagens e fatos históricos, eis a chave para a admiração. Analisando os excepcionais dons que Nossa Senhora depositou em sua alma, Dr. Plinio descreve seu natural, profundo e sincero espírito admirativo.

Todos nós tivemos fugazes admirações ao longo dos nossos cursos de catecismo, bem como ao longo da vida, com aquilo que aprendemos.

De vez em quando, um ou outro aspecto passa diante de nosso espírito, achamos bonito, mas depois aquilo fica depositado. É uma admiração de caráter doutrinário, diante da qual o homem comum não se sustenta por muito tempo, porque sendo apenas doutrinário, falta-lhe o necessário para se escorar.

Capacidade de relacionar as criaturas

Como minha posição admirativa perante esses princípios teve um pouco mais de longevidade do que em outros?

De um lado, é porque Nossa Senhora deu-me uma certa profundidade de espírito; de outro – talvez mais importante e pouco desenvolvido – pela facilidade em perceber os estados de alma de pessoas que eu conheci ou de outras a respeito das quais apenas li ou ouvir falar.

Também, pela capacidade de analisar e relacionar todas as coisas, desde interiores de casas, aspectos de fachadas, paisagens, plantas, animais. É uma “fabulação”, isto é, uma transformação do princípio na fábula, ou melhor, uma “parabolização”.

Conclusão-síntese, símbolo do holocausto

Falo a meu respeito porque me conheço mais intimamente do que a outros e toda a vida eu fui muito sensível. Dou um exemplo característico: sempre tive desinteresse por calicezinhos de licor, pequenos e bonitinhos, mas que não me dizem nada; os cálices maiores, de um tipo que se deixou de usar já no século XIX, estes me interessam mais.

Gabriel K.

Havia na Idade Média taças em forma de cálice, pesadas, com cabos cheios de pedras preciosas para facilitar o uso, nas quais se punha um vinho generoso e abundante. Beber naquilo parece-me nobre, algo que dá alento ao homem e confere circulação à vida; a natureza se torna mais robusta. Sobretudo se o cálice é de um cristal grosso, quase uma rocha dentro da qual se cavou um cálice, ou se é feito para ser utilizado por algum par de Carlos Magno. É muito convidativo.

Vejo nesse recipiente o símbolo da mentalidade humana enquanto realizando a síntese do pensamento. Ele contém algo à maneira de conclusão geral, conclusão-síntese no ponto onde encosta na base.

Já os cálices utilizados nas Missas sempre me falaram enormemente. É o holocausto por várias razões considerado, que se fecha efetivamente no propósito do martírio e no martírio. O momento da elevação do cálice, sempre e até hoje, produz em mim muito efeito. Porque eu sei, a Fé me ensina, que ali está o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo; e o holocausto renovado na Missa se simboliza muito para mim pelo cálice. Levantar aquilo… um ouro! É de toute beauté1!

Vejo, portanto, o cálice como um objeto a serviço de uma verdade de Fé. Daí eu ter uma facilidade muito grande em guardar os princípios, por causa de um objeto que fixa a “parábola” do princípio, e que dá ao princípio uma espécie de vida que, para o meu modo de ser – para um indivíduo mais intelectual talvez não seja assim –, é absolutamente indispensável.

Em geral, isto não se perde num esparramar de parábolas, no meio das quais eu nem sei como me mover depois, mas cunha considerações que perduram.

Simbolismo da lamparina, encanto com os mármores

Um objeto que produz em meu espírito um efeito análogo ao do cálice é a lamparina. Havia antigamente muitas, bonitas, bem arranjadas, nas quais ardia aquela chamazinha, de valor extraordinário e aspecto simbólico de fácil compreensão.

Eu tenho, graças a Nossa Senhora, facilidade em relacionar, por exemplo, a lamparina com a vigília noturna ao Santíssimo Sacramento. A série de considerações doutrinárias que se pode fazer sobre a vigília pousa sobre a lamparina e toma-a como símbolo, dá proporção humana àquela consideração teórica.

Isso reservo para meu uso pessoal, para o qual significa muito. E que dão, então, ao princípio do catecismo, um complemento, uma facilidade em admirar.

Outro exemplo são os mármores das igrejas, por vezes, igrejinhas paroquiais da São Paulinho que eu conheci e diante das quais eu me extasiei a justo título. A Igreja de Santa Cecília, por exemplo, tem uma capela do Santíssimo Sacramento com bons mármores de Carrara, da Itália, que representam desenhos geométricos. Eu fiquei encantado com aquilo!

Aqueles princípios geométricos se assimilaram em meu espírito a uma certa lógica e pujança, a uma coerência, que a força conferida pelo Santíssimo, pela Comunhão, dá à alma e, ao mesmo tempo, exige da alma.

Quando a igreja fica conatural com o Céu

O incenso é também fenomenal! É a representação da alma humana, sacrificada, dolorida, que, por assim dizer, está “queimando” e faz subir a Deus uma oração de agradável odor. É também a homenagem respeitosa, nobre, aristocrática, que sobe até o trono de Deus.

Depois de o incenso se difundir pela igreja, tem-se a impressão de que as nuvens do céu vieram povoá-la e ela ficou meio conatural com o Céu.

JP Ramos
Capela do Santíssimo – Igreja de Santa Cecília, São Paulo

Gabriel K.

E assim são mil coisas, uma multidão de coisas da vida, que me falam muito agudamente; toda vida relacionei-as com realidades correlatas, o que me facilita a admiração pelos princípios.

Porque a admiração em nós não é uma operação de Anjos, mas de homens, nos quais os princípios precisam estar associados, conjugados, relacionados, para de fato estarem bem e desabrocharem na admiração. No meu curso de catecismo não se ensinava isso. Até, pelo contrário, pelo absoluto silêncio sobre esse aspecto das coisas, ficava meio insinuado que não era assim.

Aspectos nobres da alma humana

Enquanto faço esta exposição, meus olhos caíram sobre o quadrinho que está ali, representando uma caravela saindo da laguna de Veneza e demandando o mar. Não pretendo que seja um grande quadro; é bonito, não é uma maravilha. Mas tenho uma facilidade muito grande em admirá-lo.

As velas enfunadas me dizem uma porção de coisas. Elas exprimem o desígnio humano de navegar, alentado pela boa esperança da navegação bem-sucedida e da alegria da viagem, da mudança, do lucro e do risco.

A água está apresentada num colorido muito matinal, uma espécie de azul esverdeado – azul de mar –, que parece quase uma pedra preciosa.

Por detrás, em contraste com a serenidade matutina, há uma acumulação de nuvens, ainda luminosas, que para mim expressam um porvir borrascoso para a nau. A tripulação, por sua vez, toda enlevada com a água, parece embarcar inconsciente do perigo.

Não me refiro ao quadro enquanto tal, mas da paisagem nele representada. Teria mais valor ainda se eu visse a cena não numa tela, mas na realidade. O valor dela represen ta mil aspectos nobres da alma humana, os quais passo a definir.

WGA (CC3.0)
A entrada para o Grande Canal, Veneza – Museu de Belas Artes de Houston

Um é uma espécie de mobilidade leve e decidida rumo ao desconhecido; é o passo da coragem, do destemor. De outro lado, uma certa altaneria, porque a vela e o mastro central parecem desafiar o mar, com uma atitude ligeiramente de grand-seigneur2 como quem diz: “Eu te vejo de cima e tu não me engolirás.”

No entanto, de outro lado, de outro lado… as saudades pesam em algo. O barco não sai depressa, ele parece dizer um discreto adeus à terra que fica.

Por fim, a borrasca representada atrás demonstra que os navegantes lá estão com a alma decidida ao risco. Tudo evoca estados de alma muito bonitos. Por detrás estão os princípios, os quais ficam mais fáceis de serem amados quando analisados sob estas correlações. Daí nasce a admiração. Porque assim é fácil admirar.

Imaginem que se oferecesse a alguém um tratadinho intitulado: “Das virtudes do navegante”. Poderia ser muito verdadeiro e apreciável, gostaria inclusive de tê-lo para ordenar e dar o sentido profundo às impressões causadas pela cena. Mas, na beleza da admiração, a impressão tem seu papel.

Superioridade e doçura que atraem

O Sagrado Coração de Jesus, por exemplo, que impressão me causa? É o seu aspecto afável e doce, enquanto sendo a própria perfeição, com uma superioridade infinita em relação a qualquer pessoa que se Lhe achegue! Só o homem de pedra não se surpreende com o Sagrado Coração de Jesus. A esta surpresa, segue uma enorme atração.

É a grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando, e não enquanto superioridade que põe o indivíduo no lugar para dar uma lição de hierarquia. A lição de hierarquia está presente. Impossível olhar para Nosso Senhor sem cair de joelhos. Em qualquer leitura do Evangelho, queiramos ou não, fazemos uma imagem mental de Nosso Senhor, a qual nos leva a nos pormos de joelhos. E se O imaginamos com o Coração à mostra, o ímpeto de nos ajoelharmos nos vem de forma ainda mais veemente.

Jesus dorme na barca…

Tomemos as várias cenas do Evangelho que estão na linha do Sagrado Coração de Jesus. Nosso Senhor dormindo no barco, durante a tempestade. É a cena mais comum que possa haver. Um marzinho, um barquinho ordinário, e um Homem com uma túnica pobre – mas ela era inconsútil e crescia com Ele! –, deitado e dormindo. Mas… o sono do Sagrado Coração de Jesus! Que harmonia, que doçura, que perfeição! Quanta reflexão dentro deste sono, que elevação neste repouso!

Luis C.R. Abreu
Sagrado Coração de Jesus – Catedral da Cidade do México

O mérito santíssimo daquele cansaço que assim se desprendia d’Ele e subia como holocausto até o Céu; o contágio do repouso d’Ele para quem O olhasse, da paz d’Ele para quem O visse! Nunca seria possível aproximar-se d’Ele e vê-Lo dormindo, sem imediatamente se ajoelhar.

Eu teria uma vontade enorme de tocar n’Ele e uma falta de coragem! Como é possível tocá-Lo?! Nem na orla do manto em que tocou aquela mulher eu ousaria tocar. O lugar onde se soubesse que Ele tivesse pousado os pés, se não deixou marca, ali ousaria oscular. Se deixou, não ousaria, porque é Deus!

Podemos imaginar como os cabelos d’Ele, durante o sono, se dispunham em torno dos ombros… com certa naturalidade, não ornamental; que efeitos produziriam? Os olhos baixos d’Ele, a respiração perfeitíssima do sono n’Ele, exalando amor àquele que de olhos fechados Ele via! O que se passava durante o sono d’Ele… qual o significado do sono d’Ele? Incontestavelmente dormia. Mas, não é como o nosso sono. Não será que Ele rezava enquanto dormia, falando com o Padre Eterno? A natureza divina d’Ele sem dúvida, e o que falava?

E será que não teria conhecimento de que estávamos lá perto? Não estaria nos comunicando graças e, ao mesmo tempo, dormindo?

Creio que a única coisa que poderia distrair um homem diante de Nosso Senhor seria a ideia de haver assassinos ali perto, do lado oposto do lago, que tramassem a morte d’Ele. “Eu vou arranjá-los de la plus belle façon3. Acontecerá qualquer coisa, menos que toquem n’Ele. Bandidos!”

Ainda nisso entraria uma admiração sem limites!

Como é maravilhoso admirar! Sentir-se pequeno, que coisa maravilhosa! Aqui entraria toda uma teoria da admiração.

Flávio Lourenço
Jesus dormindo na barca – Oratório de São Felipe Neri, Cidade do México

Na grande casa de modas de São Paulo

Lembro-me de certas cenas, quando menino. Por exemplo, quando se tratava de fazer para mim uma roupa nova. As senhoras conversavam entre si: “Você acha que iria bem aqui tal ornato ou não? Esta parte aqui deve ser azul ou verde? Fica bem um pouco de amarelo?”

Depois de feito o plano, era levado à costureira. A grande casa de modas em São Paulo, era “Les Saisons de l’Année”, onde se faziam vestidos para senhoras de acordo com a estação do ano. A loja não era francesa, devia pertencer a uma “Da. Francisquinha”, uma “francesosa”. Ela parecia entender do métier4, e sabia, sobretudo, ganhar dinheiro, fazer fortuna, ponderava muito bem como agradar senhoras ricas, e na perfeição!

Chegavam à Da. Francisquinha com um pimpolho chamado Plinio pela mão, desolado de ter que entrar naquela casa… Achava uma caceteação sem nome! Tanto mais que a cliente e a dona da loja esqueciam que o pimpolho existia e embarcavam lá em suas elaborações infindas.

Da. Francisquinha fazia a crítica, mas quão amável e respeitosa devia ser, para não perder a freguesa; à crítica, novas sugestões. As vendedoras traziam pilhas de revistas, colocavam-nas sobre a mesa, debatiam. De passagem ainda comentavam este ou aquele vestido que não iriam fazer. De maneira que uma sessão com a Da. Francisquinha, o mínimo que se levava era uma meia hora. Para um menino, equivalia a meia hora sem ar…

Tudo isso na São Paulinho pequena daquele tempo, sempre muito rica e totalmente europeizada. A influência francesa que havia aqui, eu a hauri de todos os jeitos, a plenos pulmões e de todos os modos.

Encantos com a floricultura

Havia uma casa de flores chamada “La Rose de France” que, como tantas outras floriculturas possuía uma grande vitrine. Em dado momento, esta loja resolveu instalar um sistema de umectar o local, a fim de conservar melhor as flores. Não sei como eles faziam, mas jorravam sem parar, da vitrine, jatos de água em pequenos arcos, que caíam compondo filas. Formava-se uma espécie de cortina de água transparente, um babadozinho, uma coisa linda!

Lembro-me de que, indo ao colégio de bonde, passava em frente a essa loja. Eu a via, como um menino pode olhar para uma casa de flores à sua passagem. Quando notei a modificação, aquilo repercu tiu no meu interior: “Ah! Que maravilha! Se eu pudesse, desceria para olhar lá em frente. Não posso, não vou descer. Mas que coisa estupenda!” Encantei-me, admirei enormemente!

Por quê? Porque há uma porção de estados de espíritos no homem que me sugerem “cortinas” desse gênero, e a água assim disposta me sugere ainda mais. Donde uma admiração, pela relação que as coisas têm com a alma humana, com aspectos e situações históricas. Donde também a admiração ser muito mais fácil a assuntos doutrinários que se reportam a isto; e, enfim, a facilidade em encontrar para tudo exemplos, por causa desse relacionamento fácil.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1984

Estado de alma oposto à Revolução

Será que um simples tratado de Teologia, para quem é insensível a essas realidades, dá à alma todos os elementos para a admiração? Eu não creio. Estou longe de menosprezá-los; creio, inclusive, serem muito mais importantes do que tudo quanto descrevi, porque contêm a verdade expressa.

Mas sustento que a alma humana não deve estar dissociada desse estado de espírito admirativo, porque para isso Deus criou todas as coisas. O próprio vocabulário humano é constituído para exprimir tais realidades. Não é criado só para isto, mas também para isto, numa função que a meu ver é altamente conveniente e necessária.

A expressão “Santa Igreja”, por exemplo, diz que a Igreja é santa. No intelecto se compreende o que é a santidade, e que Ela seja santa, qualquer um entende. Mas há uma beleza na expressão “Santa Igreja” que faz reluzir esta verdade; para mim tem qualquer coisa de celeste, de divino! A “Santa Igreja Católica Apostólica Romana”, a própria cadência dos adjetivos é de uma beleza extraordinária!

Agora, considerando o lado prático, eu me pergunto se nós todos não poderíamos adquirir, se quiséssemos, essa disposição de alma.

A Revolução incutiu nos espíritos a ideia de que se devem estancar os surtos de alma que vão neste sentido, porque formam um homem fantasioso, inútil em suas elucubrações e desviado.

Ora, em sua Carta aos Romanos, São Paulo recrimina justamente os que não tinham o desejo de amar assim as criaturas e, por isso, caíram na imoralidade (Cf. Rm 1, 20-28).

A meu ver, esta disposição de espírito de admiração é uma defesa da pureza!

(Extraído de conferência de 6/10/1984)

1) Do francês: de toda beleza.

2) Do francês: grande senhor.

3) Do francês: da forma mais bela.

4) Do francês: profissão.

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