jueves, noviembre 21, 2024

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Perambular incerto do trono à guilhotina

Tendo sua mentalidade e seu caráter deformados por má orientação desde a infância, faltaram a Luís XVI a sabedoria, a sagacidade e a força necessárias para detectar e exterminar, desde a nascente, os germes da Revolução que o levaria ao cadafalso.

No dia 13 de julho de 1789, um dia antes da queda da Bastilha, Luís XVI escreveu uma carta a seu irmão, o Conde de Artois1, na qual dizia:

Querido irmão! Eu havia cedido a vossos conselhos e às reflexões de alguns fiéis vassalos. Recentemente, entretanto, fiz úteis meditações. No presente momento, opor resistência [à Revolução nascente] equivaleria a expor-nos a perder a monarquia; e lançar-nos todos à ruína. Retratei as ordens que havia dado; minhas tropas sairão de Paris e eu empregarei meios mais suaves. Não me faleis mais de golpe de autoridade ou de ato de poder. Considero mais prudente contemporizar, ceder à tormenta e tudo esperar do tempo, do despertar da boa gente e do amor dos franceses a seu rei…

Flávio Lourenço
Luís XVI dando instruções a La Pérouse, 29 de junho de 1785 Palácio de Versailles

A França no tempo de Luís XVI

Para formarmos um quadro completo das consequências trágicas dessa política, convém tomar em consi deração o porquê desse erro na mente de Luís XVI. Vou utilizar um exemplo muito prosaico, mas útil para compreendermos como, debaixo de certo ponto de vista, a História se repete.

Quando um empregado prepara um banho de imersão, ele pode realizar essa tarefa de dois modos diferentes: com cuidado, de maneira a manter a água numa temperatura uniforme, ou soltando a água quente e a fria de forma distraída, sem a preocupação de obter uma temperatura homogênea. Neste caso, quando o infortunado proprietário da banheira vai entrar, percebe várias camadas frias e quentes que não se misturaram e acaba tomando, por assim dizer, vários banhos simultâneos em superfícies diferentes de sua cútis.

Flávio Lourenço
Detalhe de uma das salas do Castelo de Vaux le Vicomte, Maincy, França

A situação dessa água que não se mistura, mas que se justapõe em massas de temperaturas diversas, dá bem a ideia da França do tempo de Luís XVI.

Salões e Enciclopédia, sementes da Revolução

A Revolução procedia toda do seguinte ponto: havia em Paris os famosos salões, reuniões de pessoas de importância social e, em geral, membros da nobreza. Quando não da nobreza de espada, pelo menos da nobreza togada, a dos magistrados e professores universitários, altos políticos, cujas senhoras tinham dom para manter um salão.

O salão – às vezes eram várias salas – estava composto de móveis dourados, com mesas com tampo de mármore, cortinas de damasco, altos espelhos, paredes revestidas também de damascos; ora tapetes vindos da China, da Pérsia ou da Índia, ora fabricados na Savonnerie da França2 ou nos Gobelins3. Um verdadeiro ambiente de luxo, mas de um luxo alegre, porque todas essas peças eram vivas, brilhantes, impregnavam de glória o local.

Ali se reunia toda a alta sociedade num convívio onde era lançada a última moda em matéria de trajes e, sobretudo, de maneiras refinadas, e se difundiam os últimos boatos ou notícias interessantes, como também as últimas ideias provenientes de um pequeno clã, seguido com fervor por essa elite.

Esse clã era dos enciclopedistas – Voltaire4, d’Alembert5, Diderot6, por exemplo –, conhecidos assim porque estavam preparando, ou já tinham preparado, uma Enciclopédia7, a primeira do gênero no Ocidente. Esta continha um conjunto de conhecimentos à maneira do Larousse de hoje, mas de apresentação material muito superior, de caracteres muito bonitos e grandes, encadernada com couro de qualidade muito fina, em cuja capa era gravado o brasão de armas do nobre que a adquiria.

Os enciclopedistas constituíram um clã ateu, liberal, livre-pensador, cético e libertino, que favorecia toda espécie de imoralidade. Liberal e libertino, duas palavras que giram em torno de um mesmo conceito errado de liberdade. Eles continuamente punham em circulação ideias, doutrinas e modos de apreciar os acontecimentos, preparan do a Revolução Francesa. E, portanto, dominavam a opinião pública de Paris, a qual era o coração do reino. Mas, em quase todas as cidades importantes da França se formava um clubezinho, um salão relacionado com algum grande salão de Paris. De maneira que, quando alguém de uma província ia à capital, acabava frequentando um, dois ou três salões que conhecia.

Flávio Lourenço
De baixo para cima: Denis Diderot, Jean le Rond d’Alembert e Voltaire

Catherine Lusurier (CC3.0)
Vivant Denon (CC3.0)

Do mesmo modo, quando alguém de Paris ia para uma província, no seu trajeto parava nos lugares onde havia salões. Então, o amigo chegado da capital trazia as novidades. Era tanto mais festejado quanto naquele tempo a imprensa – chamo de imprensa não a tipografia, mas o jornal – era raquítica, o jornalismo estava apenas começando e tinha, portanto, poucas notícias. E as informações que vinham da capital do reino eram orais.

Assim, quem saía de Paris e percorria o interior fazia o papel de televisão ambulante nos salões que frequentava. Com isso se formava uma espécie de rede de difusão de notícias, de modas, de impressões, de estados de espírito, de comentários que, de algum modo, cobria o reino da França.

Fenômeno das gotas de tinta no copo d’água

Para ter uma ideia exata de como era uma organização dessas, aconselho fazer uma experiência que, em meio ao tédio do meu longínquo curso secundário, fiz várias vezes.

As canetas-tinteiro que estavam em uso naquele tempo não eram, nem de longe, as lapiseiras ou as esferográficas de hoje. A caneta mais usada era a suíça, chamada Montblanc. Ela estava composta por uma espécie de bomba que, ao apertá-la dentro do tinteiro, sugava tinta suficiente para escrever durante algum tempo, uns dois ou três dias.

Nas minhas horas de tédio na escola, durante as aulas de Física, Química, História Natural, Geografia ou o pesadelo das Matemáticas, eu trabalhava sempre com um copo d’água diante de mim e uma jarra de água para ir enchendo-o. E, de vez em quando, para me distrair, eu abria a bomba da minha caneta Montblanc e fazia pingar uma, duas ou três gotas dentro do copo, pois gostava de ver como estas de difundiam dentro d’água.

Quando caía a gota, ao invés de formar uma superfície azul-clara proveniente da diluição da tinta na água, da gota central partiam pequenas canalizações que abriam seu caminho dentro da massa líquida e desfechavam na formação de outras gotinhas menores. Essas gotinhas, logo que constituídas, formavam outras por meio do mesmo sistema, até que o copo se enchia dessa rede de gotinhas de tinta que penetravam dentro do copo, mas não se misturavam com a água. Se alguém quisesse fazer a experiência, podia introduzir um canudinho num copo com bastante tinta e chupar a água pura, porque o lugar aonde chegava a ponta do canudo ainda não tinha tinta misturada.

Assim era a morfologia da difusão das opiniões da França daquele tempo, bem representada por esses salões. Essa difusão de opiniões se espalhava por todo o copo, mas não o enchia por inteiro. E as “massas de água” não contaminadas envolviam essa espécie de chuveirinho de “gotas de tinta” que se difundia pelo “copo”.

Todo esse maquinismo de salão, tão imponente, dava a impressão de uma verdadeira potência da opinião pública – e o foi até certo ponto –, mas também completado por outro mecanismo do qual falarei daqui a pouco. Isso se apresentava legitimamente aos olhos do rei com uma disparidade: se ele adentrasse o canudo no lugar onde só havia tinta, diria que o copo estava cheio de tinta; mas, se pusesse o tubo onde não havia tinta, ele diria que o copo estava cheio de água pura.

Imaginem um homem imerso na escuridão que fosse obrigado a di zer qual a natureza do líquido existente no copo, de acordo com o que lhe chegasse pela boca através do tubo; ele poderia ter as sensações mais contraditórias e, no fundo, não saberia dizer grande coisa do conteúdo do copo que tinha diante de si.

Esses salões formavam elites de “preciosos”8, que estavam mais ou menos tão isolados do público no qual viviam quanto diante de certa sociedade internacional contemporânea está o jet set9. Era, mais ou menos, uma série de “Christinas Onassis”10 que se relacionavam com outras “Christinas Onassis” de outros países, formando uma espécie de roda internacional, que por um lado está no píncaro, mas por outro não é nada, porque é tudo artificial, não vale nada. Do mesmo modo, a Enciclopédia era, de um lado, uma potência com todo esse organismo. Mas, se um rei agisse com força, com facilidade poderia suprimir essa “potência” artificial.

Gabriel François Doyen (CC3.0)
Luís XVI em Reims, 13 de junho de 1775 – Palácio de Versailles

Imaginem que a tinta espalhada no copo não fosse uma rede líquida dentro da água, líquida também, mas fosse uma rede de barbante. Seria necessário pegar a parte mais alta do rolo e puxar para retirar tudo e depois jogá-lo fora; o copo ficava limpo.

Ora, completava esse mecanismo uma estrutura chamada de “sociedade secreta”, a qual conspirava ativamente uma revolução dentro da França. Já não eram intelectuais que se preocupavam em espalhar ideias, mas eram conspiradores que se reuniam para arranjar capatazes e toda espécie de revolucionários para, no momento oportuno, montarem o assalto ao trono e ao altar.

Atuação das “sociedades de pensamento”

E havia uma terceira coisa que ficava entre as sociedades secretas e o mecanismo dos salões: as chamadas “sociedades de pensamento”. Eram associações de nível mais burguês, pequenas, porém em maior número que as demais e que espalhavam as mesmas ideias. Constituíam um sistema assim: numa cidadezinha, um homem qualquer, que pertencia aos salões ou a uma sociedade secreta, ou como mais frequentemente ocorria, pertencente a ambas as instituições, bancando o mecenas, doava à pequena cidade uma biblioteca. Abria-se o chamado “gabinete de leitura”, numa época em que os livros ainda não eram frequentes como em nossos dias. Hoje há muitos livros e poucos leitores. Naquele tempo havia muitos leitores e poucos livros.

Então, ele constituía uma biblioteca pública, cujo pequeno funcionalismo e despesas de instalação, eram custeadas pelo doador. Ele ali punha livros da Enciclopédia à disposição de quem quisesse. As pessoas que desejavam se instruir frequentavam essas sociedades de pensamento, formando-se ali um ponto de encontro e também de propaganda das mesmas ideias da Enciclopédia. Isso ocorria em cidades pequenas, onde a ramificação ainda não tinha chegado, e com a peculiaridade de que os de uma cidade escreviam para os da outra.

Alguém, por exemplo, escrevia para um amigo ou um parente que morava a cinquenta quilômetros: “Meu caro fulano! Ouvi dizer que em sua cidade se abriu um gabinete de leitu ra pela liberalidade do Senhor Conde – ou do Senhor Marquês ou do Monsieur tal, um rico industrial ou um rico comerciante que morava na cidade. Eu não posso deixar de manifestar minha satisfação ao saber que uma localidade como a sua goza de um importante melhoramento como esse. E, conhecendo sua inteligência e seu desejo de adquirir luzes, não duvido que você frequente muito esses lugares.

Flávio Lourenço
Salão literário de Madame Geoffrin – Museu de Belas Artes de Rouen, França

“Com certeza, você tem amigos com quem troca ideias sobre esses problemas. E também, como seu espírito é largo – espírito largo, espírito iluminado, era o vocabulário que se empregava naquele tempo para designar os bandidos do pensamento; ideias fortes também – com certeza você quereria saber as ideias que circulam entre nós, os que frequentamos a biblioteca aqui instalada. Então, eu vou lhe contar…”

E assim se estabelecia uma rede de carteio que, por sua vez, fazia uma outra trança, percorrendo a França inteira. Eram, portanto, três sistemas de difusão de níveis diversos, à maneira da gota de tinta dentro do copo.

Mas, sem embargo disso, acabava sendo real que a água de fora dessa rede de difusão permanecia incontaminada. De onde havia ainda muitos católicos, muitos monarquistas e muita gente tradicional que não tinham noção das aberrações postas em circulação pela Enciclopédia.

Consequências de uma educação mole e otimista

Consideremos, em presença disso, um rei educado como Luís XVI o foi. A mãe dele era uma alemã de Saxe, Saxônia11; o pai era um bom homem, evidentemente francês; eram um bom casal. Entretanto, a mãe dele era dessas alemãs otimistas, bonachonas, pesadas; não era o tipo de alemão guerreiro. Ela transmitiu essa índole ao filho.

Flávio Lourenço
Jean-Jacques Rousseau – Museu da Revolução Francesa, Domaine de Vizille, França

O pai era um homem católico, mas morreu cedo, sem muita possibilidade de formar o filho. Por causa disso, a formação de Luís XVI, enquanto Delfim, foi entregue a um homem chamado Fénelon12, Arcebispo-príncipe de Cambrai, na França. Homem muito doce, suave e gentil, de uma literatura muito delicada. Se ele fosse pintor, pintaria paisagens num azul-claro, as águas em tonalidades suaves, sempre muito delicado, quase aristocrático.

Por influência da Enciclopédia, esse Arcebispo Fénelon imaginava os homens como sendo todos muito bons, pois Rousseau13 afirmava que o homem era naturalmente bom, mas a civilização e a sociedade o corrompiam. O pecado original não existia. Todos os vícios e crimes nascidos entre os homens eram fruto de uma sociedade desorganizada e imprestável. Se tirados da civilização, os homens voltariam ao seu estado normal e seriam amáveis, gentis, agradáveis.

Educado com as ideias de Fénelon, Luís XVI foi posto no trono da França e, ao tentar resolver a charada de extinguir a Revolução que ia penetrando na nação como as ramificações de tinta na água, ele não agia quando era preciso tomar medidas de urgência, mas mitigava a situação ao ver outros sinais tranquilizadores, não querendo agir com rapidez.

Quando existe uma hipótese má e uma boa como pontos terminais pos síveis para um caminho, sempre é preciso prestar mais atenção na hipótese má e não na boa, pois esta última, se for real, acaba se resolvendo. Se for a má, é preciso preparar um porrete. Ora, se Luís XVI fosse um homem forte, entenderia que o mal é mais provável do que o bem e por isso é preciso preparar a espada com uma longa antecedência, para poder atacar o inimigo quando ainda é pequeno e esmagá-lo como quem esmaga um verme.

Anne Baptiste Nivelon (CC3.0)

Museum Boijmans van Beuningen (CC3.0)
Luís, Delfim de França e Maria Josefa da Saxônia, Delfina da França, pais de Luís XVI

Entretanto, Luís XVI, bonachão, preferia ver a situação apenas de forma suave. Algumas vezes chamavam-lhe a atenção: “Veja como está isto, como está aquilo, é preciso tomar providências!” Ele tomava alguma providência tímida. Mas os revolucionários conheciam o feitio do rei e respondiam ferozmente. O monarca assustado, pensava: “Quem sabe se não teria sido melhor não ter feito o que fiz.” De repente, acontecia algo pior, e a esposa ou os irmãos diziam: “É preciso intervir! Passaram da conta!” O rei mandava intervir com outro golpe mole.

Isso é o que não se deve fazer nessa situação. Ou se espanca para liquidar ou tenta-se uma política de conciliação, por mais louca que essa política seja. Mas uma alternativa de golpes moles e de concessões é o que não se deve fazer. Foi esse o programa escolhido por Luís XVI.

Se ele tivesse clara compreensão da situação, dar-se-ia conta de que era preciso extirpar aquela tinta de dentro d’água ou, se não fosse possível, deveria pegar o copo d’água e jogá-lo ao chão.

Um rei forte pensaria o seguinte: “O pior que pode acontecer à França não é ficar depauperada, mas se tornar revolucionária. Portanto, para evitar o pior, eu vou empregar o meio mais drástico, mais enérgico! Se quebrar, os pedaços que restarem dela ainda estarão limpos da lepra da Revolução. Depois veremos o que fazer, vamos primeiro curar essa lepra.”

Ora, nós vimos o que fez Luís XVI pela carta dele ao irmão. Diante dos excessos da Revolução, resolveu tomar uma atitude forte, mas depois percebeu os uivos dos revolucionários muito mais fortes do que ele imaginava e decidiu voltar atrás. Qual foi o resultado que isso produziu? Esse vai-e-vem incerto, com pancadas moles e recuos enormes, caracterizou o itinerário de Luís XVI do trono até a guilhotina.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 19/7/1989)

1) Charles-Philippe de Bourbon (*1757 – †1836). Futuro Carlos X, rei de França de 1824 até sua abdicação, em 1830.

2) A manufatura de tapetes se iniciou na França numa oficina nas galerias do Louvre. Mais tarde foi instalada uma nova oficina nos edifícios de uma antiga fábrica de sabão, por isso o nome de Savonnerie. Essa fábrica, em 1825, passou a fazer parte da Manufacture des Gobelins.

3) Histórica fábrica de tapetes em Paris.

4) François-Marie Arouet (*1694 – †1778).

5) Jean le Rond d’Alembert (*1717 – †1783).

6) Denis Diderot (*1713 – †1784).

7) Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers – Enciclopédia, ou dicionário racional das ciências, artes e profissões.

8) Por volta de 1680, surgiram, na França, dois grupos: as “Preciosas” e os “Libertinos”. Eram, respectivamente, as mulheres e os homens da nobreza que estavam envolvidos em atividades novas, que mudariam a sociedade. Ambos lutaram pela liberdade de pensamento contra a Igreja.

9) Do inglês: comunidade internacional de pessoas de posse que têm o hábito de frequentar lugares exclusivos da própria classe.

10) Aludindo a Christina Onassis (*1950 – †1988), filha do magnata grego, Aristóteles Onassis.

11) Marie Josèphe Caroline Éléonore Françoise Xavière (*1731 – †1767).

12) François de Salignac de La Mothe-Fénelon (*1651 – †1715).

13) Jean-Jacques Rousseau (*1712 – †1778).

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