O Colóquio de Óstia, uma das mais célebres passagens das Confissões de Santo Agostinho, abre os horizontes para os grandes luzeiros da hagiografia e da Doutrina Católica. Nele transparece o cântico de dois corações abertos para receber de Deus tudo quanto nesta vida terrena se possa haurir a respeito das alegrias do Céu.
No dia 28 de agosto comemora-se a festa de Santo Agostinho e, nesta ocasião, podemos comentar um trecho famoso de sua biografia. Aliás, recomendo muito este livro: as Confissões, desde que a pessoa saiba lê-lo, pois tem algumas descrições filosóficas não muito compreensíveis para qualquer um. A parte biográfica, porém, está ao alcance de todo leitor piedoso e é estupenda!
O último lance da vida de Santa Mônica
Nas Confissões há um trecho verdadeiramente magnífico, muito famoso, e é chamado o “Êxtase de Óstia” ou “Colóquio de Óstia”. O episódio é o seguinte: Santa Mônica passou trinta anos ou mais chorando e pedindo a Deus a conversão de Santo Agostinho. Entretanto, parecia que quanto mais ela rezava, tanto mais esta conversão se tornava longínqua. De desatino em desatino, Santo Agostinho acabou comendo as bolotas dos porcos e, então, começou um processo de conversão que fez dele o grande Doutor da Igreja.
Depois da conversão, Santo Agostinho resolveu voltar com Santa Mônica para a África do Norte, de onde eles eram naturais, a fim de ali residirem. Naquele tempo, esta região era romana.
No trajeto para a África, eles percorreram parte da Itália até um porto pequeno perto de Roma, que tinha naquele tempo uma certa importância, situado na cidade de Óstia. Lá tomariam o navio e seguiriam para Tagaste.
Enquanto estavam na hospedaria de Óstia, encostados junto a uma janela, começaram a conversar. E, ao longo desta conversa a respeito de Deus e das coisas do Céu, os dois juntos tiveram um êxtase.
Santo Agostinho retrata esse colóquio extraordinário na hospedaria de Óstia e é um dos trechos mais famosos das Confissões.
Poucos dias depois, ainda na cidade de Óstia, Santa Mônica morreu. Sua missão na Terra estava cumprida e Nosso Senhor Jesus Cristo a chamou ao Céu para gozar do prêmio que ela merecia. O último lance de sua vida foi a alegria de ter com o filho esse colóquio, o qual era um prenúncio, um antegozo da visão beatífica.
Dois santos conversando sobre a vida eterna
Resolvi trazer o colóquio diretamente do livro Confissões de Santo Agostinho, porque é uma página célebre e abre os nossos horizontes para os grandes luzeiros da hagiografia e da Doutrina Católica.
Próximo já do dia em que ela ia sair desta vida – dia que Vós conhecíeis e nós ignorávamos…
Essas interpelações diretas de Santo Agostinho a Deus são magníficas! Os Solilóquios que ele escreveu, por exemplo, têm qualquer coisa de absolutamente estupendo!
…sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos secretos desígnios, que nos encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o jardim da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para embarcarmos.
Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo o passado e dilatando-nos para o futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, “…que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou.”
Que beleza dois santos conversando sobre a vida eterna! E a alegria de Santa Mônica em sentir aquele filho, outrora perdido, incendiado agora de desejos do Céu. É uma verdadeira maravilha!
Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da nossa fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.
Faço notar a maravilha da expressão “os lábios do coração”, quer dizer, aquilo por onde o coração bebe, sorve, estavam abertos para receber de Deus tudo quanto nesta vida terrena se possa haurir a respeito das alegrias do Céu.
A procura do Absoluto
Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, de onde o Sol, a Lua e as estrelas iluminam a Terra.
É uma verdadeira procura do Absoluto.
Eles, primeiro, consideraram as coisas da Terra que lisonjeiam os sentidos, porque estavam no Império Romano decadente, onde havia fortunas fabulosas e pessoas que, para deleitar os sentidos, gastavam quantias assombrosas. Então, o primeiro confronto é entre a felicidade celeste e a dos homens tidos em conta de felizes.
Das coisas materiais ao êxtase
Diante da resposta de que todo terreno não é nada, eles começam a percorrer os céus, a imaginar, com os dados do céu material e visível, como seria o paraíso celeste material, mas invisível, e como se goza a glória da visão beatífica nesse paraíso.
Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por Quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que Ela própria Se crie a Si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há n’Ela ter sido, nem haver de ser, pois simplesmente “é”, por ser eterna.
Depois de considerarem todas as coisas materiais, eles percorrem as espirituais e chegam até a alma como elemento para se ter alguma ideia da beleza e da perfeição de Deus. Finalmente, os espíritos de ambos se detêm no ápice de tudo isto: a Sabedoria Eterna e Incriada, que sempre foi, é e sempre será, fim e explicação de todas as coisas. Como isto é diferente de uma meditação heresia branca!
Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num vislumbre completo do nosso coração.
É o êxtase. Ou seja, enquanto eles falavam a respeito dessas coisas, conduzidos pela graça, a Sabedoria Se revelou e eles viram a Deus, numa visão, num fenômeno místico.
São dois santos conversando, uma conversa que é uma oração e que vai subindo de voo, de ponto em ponto e, quando chega no seu ápice – tudo com tanta simplicidade, numa janela de uma hospedaria de Óstia, nos quartos dos fundos dando para um jardim – lhes aparece Nosso Senhor como a Sabedoria Eterna.
As palavras são coisas vazias à vista do que Deus revelou de Si mesmo
Suspiramos e deixamos lá agarradas “as primícias do nosso espírito”.
O que havia de melhor neles ficou na visão, não voltou para a Terra.
…Voltamos ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá esta, meu Deus, comparar-se ao vosso Verbo que subsiste por Si mesmo, nunca envelhecendo e tudo renovando?
Aqui está uma insinuação de que Deus lhes disse uma palavra sobre a própria Sabedoria d’Ele. E era algo tão elevado que qualquer tentativa de transmissão seria um balbucio. A visão cessou e as palavras deles eram vazias à vista do que Deus tinha revelado de Si mesmo.
Um vislumbre paradisíaco e inefável
Ele imagina uma alma sem cogitar de nada mais criado, que consegue abstrair de tudo e, de repente, ouve uma palavra de Deus a respeito de Si próprio.
Dizíamos pois: suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs imaginações da terra, da água, do ar e do céu.
Suponhamos que ela guarde silêncio consigo mesma, que passe para além de si, nem sequer pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.
Imaginemos que nessa mesma alma exista o silêncio completo, porque, se ainda pode ouvir, todos os seres lhe dizem: não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que permanece eternamente. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Ele sozinho fala, não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de um Anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.
Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim como nós acabávamos de experimentar, atingindo, num voo de pensamento, a Eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre todos os seres.
Se essa contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem muito diferente cessassem, se unicamente essa arrebentasse a alma e a absorvesse, de modo que a vida eterna fosse semelhante a esse vislumbre intuitivo, …
É a visão beatífica.
…pelo qual suspiramos não seria isso a realização do “entra no gozo do Senhor”? E quando sucederá isso? Será quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?
Ele afirma que, se uma alma pudesse ficar eternamente apenas naquele vislumbre, já teria um prazer paradisíaco inefável, extraordinário.
Santa Mônica não queria o filho para si, mas para Deus
Ainda que isto dizíamos não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo bem sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis naquele dia quando assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: “Meu filho, quanto a mim, já nenhuma coisa me dá gosto, nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem porque ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só motivo desejava prolongar um pouco a minha vida: para ver-te cristão e católico antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente, pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”
Dias depois ela morreu. Nessa visão ela teve o prenúncio da própria morte e compreendeu que não tinha nada mais para fazer.
Que diferença entre uma mãe santa e uma mãe piegas! Esta diria: “Agora que meu filho está convertido, começou para mim a vida. Ouvirei os sermões e as obras dele, vou viver com ele uma vida gostosinha na casa episcopal, admirando a virtude e o talento daquele que eu gerei para a vida natural e arranquei, pelas minhas orações, à morte eterna para dar um grande santo. Agora é que está bom!”
Santa Mônica não queria ver o filho dela para nada disso, mas sim para Deus. Quando ela sentiu que Santo Agostinho estava nas mãos de Deus, não quis perder mais tempo na Terra. Poucos dias depois ela expirou. É uma santa e o último grande lance de sua vida está contado por um grande santo.
(Extraído de conferência de 31/8/1965)