sábado, septiembre 21, 2024

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Um filho engendrado na extrema velhice

Durante décadas, na sobriedade e no silêncio de sua alma, Dr. Plinio guardava toda veneração que tinha por Dona Lucilia. Até que o afeto entusiasmado de um filho, gerado segundo a lei do espírito, soube discernir o lumen da alma dela e tornar-se o porta-estandarte de sua figura.

Há na História almas especialmente amadas por Deus a quem Ele pede grandes sacrifícios, um dos quais é morrerem sem terem visto o resultado daquilo que fizeram.

A essas almas, sujeitas a tão longas esperas e a tão grandes perplexidades, Nossa Senhora por vezes obtém de Deus favores que as consolem, à maneira de pressentimentos proféticos.

Numa expectativa serena…

Via-se que Dona Lucilia esperava algo da vida, não na ordem do prazer nem do realce pessoal, mas uma certa reciprocidade de mentalidades, de afinidade de pensamentos, de temperamentos, de modos de ser. Seu temperamento era ávido de abarcar um largo afeto, uma ampla consonância com um número enorme de pessoas. Porém, a Providência não lhe deu isso.

Mamãe tinha o desejo de fazer bem a incontáveis jovens, a quem, por diversas razões, ela não conhecia. Esse amor se concentrava muito em mim, em minha irmã, na neta e no bisneto, mas com algo que ia muito mais longe.

Fotos: Arquivo Revista
Quarto de Dr. Plinio. Acima, Dr. Plinio em 1967

Fotos: Arquivo Revista

Ela chegou ao último extremo de uma longa velhice nessa expectativa, calma, um tanto tristonha, mas de uma tristeza luminosa, nobre, sem agitações, sem histerias nem angústias. Ia caminhando para dentro das sombras da morte com toda a serenidade e com um fundo de certeza de que isso um dia viria.

…sustentada por uma confiança

Devido às circunstâncias inerentes a uma família pouco numerosa, cujos membros estavam absorvidos pelas preocupações contemporâneas, minha mãe, no fim de sua vida, passava longos períodos de solidão, sobretudo depois da morte de meu pai.

Quando sofri a crise vertiginosa de diabetes1 e a consequente cirurgia no pé com início de gangrena, deu-se um desabar de minhas resistências, minadas pela doença, mas também por aborrecimentos e problemas transcendentes esmagadores. Tudo isso me deixava em um estado de acentuado cansaço, tornando muito difícil para mim manter prosas mais longas; e a conversa com ela exigia um grande esforço, porque ela estava com a audição e a visão muito prejudicadas.

Compreende-se que eu não pudesse fazer-lhe companhia. Por isso, durante a minha convalescença, eu só consentia que ela entrasse em meu quarto uma vez por dia, à noite, pouco antes de ela se recolher. Nessas ocasiões, tão logo ela chegava, eu a cumulava, inundava de agrados, de gentilezas.

Ela estava entregue a uma enfermeira, a qual desempenhava de modo competente o mero serviço profissional, mas sem o carinho, sem o afeto de um filho.

Durante o dia minha mãe passava horas na sala de jantar, sozinha, tomando sol. Não conseguindo ler um livro nem ouvir música, pode-se imaginar seus solilóquios. Devia ser um fim de vida muito triste, de quem realmente sofria a solidão, caminhando contra o vento durante 92 anos.

Fotos: Arquivo Revista

Até mesmo nessa hora extrema ela foi sustentada por uma heroica confiança, fazendo com que ela não perdesse a certeza de alcançar o que almejava. Por isso, no fundo, em meio a esse sofrimento, mamãe tinha esta ideia: “No fim, algo se realizará.” Tenho a impressão de ela pressentir que os filhos viriam em grande quantidade. De fato, vieram depois de sua morte, mas ela os esperava em vida e isso a animava.

Olhar no qual transparecia a constância de uma vida

Tudo isso eu notava no olhar dela. Sou muito sensível aos olhares, pois eles dizem mais do que as palavras. Assim, várias vezes, neles eu a contemplava ora acolhedora, ora risonha; séria, pensativa em tal circunstância; afável, acariciante em outra. O olhar dela sofrido era uma síntese de todos os outros e o que mais especialmente me comovia.

Quantas vezes o comparei a uma chama de lamparina, cuja labareda discreta se mostra em proporções variadas, à maneira de expressões fisionômicas. Ora é triunfante, atingindo a plenitude de si mesma; ora se encolhe e fica quase tão pequena que se tem vontade de alertá-la: “Presta atenção, vais-te apagar!” Mas renasce mais adiante e se apresenta tranquila, estável, normal, ao longo de toda a noite. De vez em quando, um estalido. É uma “dor”, um “sofrimento” engendrando uma fagulha com uma vida efêmera, elevando-se pelo ar e desaparecendo. A chama continua impávida na sua prisão e no seu trono, na sua glória e na sua dor, no seu círculo rubro de vidro dentro do qual ela brilha junto ao azeite, que é o afeto do qual ela se abastece.

Fotos: Arquivo Revista
Rosário e livro de orações de Dona Lucilia

Fotos: Arquivo Revista

Com efeito, como a lamparina ardendo junto ao Coração Eucarístico de Jesus presente no tabernáculo, assim foi mamãe aos pés das imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora das Graças. E no turbilhão de minha vida, ela era, dentro do escuro, a chama que não se apagava, uma luz contínua a brilhar, sempre ela mesma.

Eu pensava: “Conheci tudo isso, mas não sei se saberei descrever a alguém, porque quem não viu não sabe bem o que é, e não há uma descrição que possa dar disso uma ideia exata.”

Seus amigos têm para comigo uma atenção e uma consideração!

Não me ocorria a ideia de que ela fosse chamada a desempenhar uma missão post-mortem2 junto aos membros do nosso Movimento. Embora vários deles tivessem para com ela atenções e obséquios, deixando entrever terem notado nela algo do que eu via, a atitude de outros levava-me a supor que ela morreria sem ver seus anseios maternos atendidos.

Nos últimos meses de sua vida, minha casa começou a ser muito frequentada pelos membros mais jovens do Grupo que vinham me visitar em minha convalescença. Assim, ela começou a tomar contato com eles, recebendo-os na sala de visitas, o “Salão Azul”, onde conversavam.

Não acompanhei essas visitas muito de perto porque eu estava de cama e o meu quarto fica longe da sala de visitas. Eu tinha noção da presença de alguns desses rapazes ali que, indo me visitar, cumprimentavam-na. Mas eu pensava tratar-se apenas dessas saudações formais, antigas – “Minha senhora, boa tarde, como está passando?” Portanto, não dei maior importância ao fato.

Entretanto, chamava-me a atenção ver como, ao passar na cadeira de rodas pelo corredor para vir falar comigo e depois continuar para se recolher em seus aposentos, ela estava com o corpo mais teso e muito mais animada do que antes. Eu pensava: “Talvez seja por saber que estou fora de perigo e isso lhe dá alívio, um certo ânimo.”

Mais tarde tomei conhecimento da imensidade dos agrados feitos a ela, das flores que lhe levavam, das conversas mantidas, de como ela os convidava para tomar chá e de tudo quanto lhes contava sobre o meu passado. Quando vemos as fotografias dela tiradas naquele tempo, por exemplo, a que deu origem ao Quadrinho3, embora se note certa tristeza, ela está mais animada e alegre.

Mais de uma vez mamãe me disse, muito comprazida: “Seus amigos têm para comigo uma atenção e uma consideração como ninguém.” Eu via que esses encontros lhe causavam um contentamento muito grande, pois, embora ela não tivesse a força de expressão necessária para explicitar, ela notava atuar neles um fator no sentido daquilo que ela sempre esperou na vida, o qual não encontrava nas outras pessoas.

Eu não podia imaginar que a fonte de onde brotaria o apostolado dela estava nesse ponto onde tudo parecia tender para o fim.

Enquanto minha atitude era de uma sobriedade total, guardando tudo dentro de minha alma, com muita veneração, mas no silêncio, sem comentar nada, ali estava borbulhando algo do futuro.

O afeto entusiasmado de um filho

De fato, naquelas ocasiões minha mãe conheceu alguém que foi o primeiro a levantar – com a liberdade que um filho não tem – o estandarte da figura dela: o meu João4. Eu não fazia ideia, absolutamente, até que ponto ele tinha sido o elemento motor do movimento de carinho, de respeito em torno dela nos seus últimos meses de vida, durante a minha doença. Era o afeto entusiasmado de um filho que, segundo a lei da carne ela não teve, mas segundo a lei do espírito ela engendrou na sua extrema velhice.

Fotos: Arquivo Revista
“Salão Azul” e, ao fundo, sala de jantar do apartamento de Dr. Plinio

Fotos: Arquivo Revista
Sr. João Clá em 1967

O João contava-me que ele conhecera mamãe e se enlevara muito, recebendo benefícios espirituais no trato com ela, dos quais ele procurava fazer participar outros membros de nosso Movimento. Certo dia ele teve a curiosidade de ver qual era a atitude dela em seu isolamento, se teria alguma expressão que significasse um desfalecimento ou algo semelhante.

Junto à sala de jantar fica o “Salão Azul” e, separando os dois ambientes, há uma porta com vidro transparente coberto por uma dessas cortininhas chamadas brise-bise. O João foi, pé ante pé, até a porta e abriu um pouquinho o brise-bise, sem minha mãe perceber. Ficou observando-a enquanto ela rezava o Rosário. Mamãe estava sentada na cadeira de rodas com muita compostura e, em determinado momento, fez uso de um lenço, dobrando-o de um modo tão ordenado, colocando-o em cima do colo com tanta distinção, que esse gesto, de si tão simples, o empolgou. Na solidão e na provação, tudo era feito com a dignidade pela qual uma pessoa deixa sentir o seu aroma espiritual indicando, dentro da aridez, a verticalidade de uma alma reta.

O João discerniu isso nela e soube vê-la com os olhos com que eu a via, percebendo o lumen da alma dela que outros não notavam. Por essa razão ele foi, ainda em vida de Dona Lucilia, o animador do movimento em torno dela. E isso se deve a um passado de fidelidades que outros não tiveram.

Algum tempo depois, esses perfumes acumulados na alma do meu João começaram a se espalhar, como incenso, e a aromatizar o ambiente.

Com efeito, ele foi o grande fotógrafo dos últimos meses de mamãe e o responsável pela multiplicação e difusão das fotografias dela.

Aurora que confirmava as esperanças

Relacionando com tudo quanto se passou depois, fico com a impressão de que antes de cerrar os olhos ela mais ou menos pressentiu o que viria, e daí aquele contentamento que precedeu de pouco sua morte.

Nos últimos dias de sua vida mamãe pôde ver um pouco da aurora de algo que se prolongaria depois. E assim ela recebeu uma confirmação de que não tinha se enganado.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio e Sr. João Clá no início da década de 1970

Ao fechar os olhos para esta vida e abri-los para a eternidade, Dona Lucilia entendeu que aqueles – eu falo no plural para ser discreto – conhecidos por ela no fim de sua vida haveriam de trazer-lhe o objeto de sua espera.

Tive uma amostra disso em um episódio para mim inesquecível. Eu pedira a Nossa Senhora, em consideração à dedicação devotada à minha mãe, a graça de receber um sinal qualquer de ter ela saído do Purgatório. E, na Missa de sétimo dia, de modo graciosíssimo, isso me foi dado: um raio de luz incidiu numa orquídea iluminando-a por inteiro, depois afastou-se. Dava-me a ideia de mamãe percorrendo o corredor do meu apartamento, chegando perto de mim e depois continuando, para não me interromper.

Creio ter sido esse fato um modo de ela dar-me a entender, depois da morte, que vira o triunfo e agradecia.

Assim, sem que ninguém pudesse imaginar, sua missão começaria na sepultura, junto à qual iniciou-se o convívio pessoal dela com cada um dos que iam visitá-la para pedir-lhe graças. E, uma vez mais, é o João o grande “culpado” pelo fato de acorrerem tantas pessoas ali, a suplicar a intercessão dela. Ele, portanto, no momento desse agradecimento, ocupa um papel especial, pois tudo quanto ela esperou se constituiu magnificamente.

Socorro em circunstâncias inimagináveis

Desde então, a ação dela veio se tornando intensa, significando muito em relação ao futuro, porque uma coisa não nasce de tão pouco para se expandir até onde se expandiu, sem tender a muito mais.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio durante visita ao túmulo de sua mãe, em agosto de 1987

A meu ver, Dona Lucilia é para meus discípulos o que é para mim, ou seja, uma espécie de redução a um tamanho mínimo – porque tudo em comparação com Nossa Senhora é mínimo – de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Um socorro em tudo, de todas as formas, agindo inesperadamente, dos modos mais inimagináveis, discreto e com um estilo todo dela, que era sua forma de convívio em vida. À medida que as provações aumentarem também aumentarão as nossas ocasiões de pedir a intercessão dela, tendendo ao muito insigne. É como eu vejo.

Podemos dizer ter havido três fases na vida de mamãe: uma pré-história, na qual a ação dela era percebida e sentida só por mim em toda a amplitude; depois a ação dela sentida nos últimos anos da vida pelo João Clá e por alguns outros; por fim, a expansão que se realizou com amplitude no Cemitério da Consolação onde, nas horas mais diversas, sempre se vê alguém parado junto à sua sepultura. Está rezando? Não se sabe. É certo que está se acalmando, porque mamãe, evidentemente por ordem de Nossa Senhora, por meio de quem passam todas as graças e a partir de Nosso Senhor Jesus Cristo, fonte da graça, exer ce uma ação temperamental sobre quem recorre a ela.

Ali se faz sentir a mesma ação dulcificante, alentadora dos temperamentos, orientadora das maneiras de ser, dando confiança, estímulo, e que, em vida, me fez um bem enorme! Eu encontrava uma conexão entre o Sagrado Coração de Jesus, do qual ela era devotíssima, e essa disposição, esse feitio de alma dela.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em visita ao Êremo de São Bento, em fevereiro de 1994, cuja sala principal fora recém-decorada com as últimas fotografias de Dona Lucilia

Ultrapassando os umbrais da morte

Em determinado momento, senti algo que não sei definir, mas era como se, por cima dos umbrais da morte e de tudo quanto se punha para tapar aquela lamparina prestes a entrar para uma sepultura até o dia do Juízo, ela ainda brilhasse para mim, e compreendi que ela me acompanhava. Depois, que alegria ao ver, no fundo de um grande olhar andaluz, vivaz5 – e de tantos olhares nascidos desse –, estar ela viva também! Eu noto nele o mesmo crepitar, a mesma movimentação de uma lamparina e percebo bem como se ateia um incêndio, não de chamas destrutivas, mas de lamparinas durante a noite, até o momento de atear fogo ao mundo.

Que Nossa Senhora estabeleça a hora na qual as lamparinas – e eu aqui não considero apenas os jovens olhos que se abriram há alguns anos para tanta luz, mas todos aqueles que me acompanham nessa vereda – ateiem esse fogo para que possamos dizer: “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terræ!6

Minha Mãe, mandai o vosso Esposo, o Divino Espírito Santo, naquilo que Ele tem de tão sublimemente coruscante, o espírito posto por Ele em Vós, como vosso Esposo, e todas as coisas serão recriadas. Então, ó Mãe, Vós reinareis e será renovada a face da Terra!

(Compilação de conferências de 1979 a 1993)

1) Em fins de 1967, permanecendo em convalescença até março de 1968.

2)Do latim: Depois da morte.

3) Quadro a óleo que muito agradou Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

4) Mons. João Scognamiglio Clá Dias, E.P., fiel discípulo e secretário pessoal de Dr. Plinio durante mais de quatro décadas; à epoca, leigo.

5) Idem.

6) Do latim: “Enviai o vosso Espírito criador e renovareis a face da Terra” (Sl 103, 30).

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