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Mãe incomparável, consertadora de temperamentos

Apenas transposto o limiar da eternidade, desvaneceram-se certas barreiras estabelecidas pela prática exímia da humildade no convívio entre mãe e filho, fazendo com que Dr. Plinio compreendesse aspectos novos da ação de Dona Lucilia sobre as almas.

Minha posição de alma com relação a mamãe foi de uma consonância enorme e completa; mas, de outro lado, sempre ligada à preocupação de evitar qualquer movimento de amor-próprio ou algo que pudesse girar em torno de mim mesmo. Enquanto ela estava viva, eu nunca ousei meditar e fazer grandes reflexões a respeito dela, com receio de redundar em grandes considerações a meu respeito.

Incomparável dama, envolta em mistérios

Eu estava para com mamãe muito mais como diante de um sol que me enchia do que de algo que eu precisasse analisar. Debaixo de um certo ponto de vista, ela era para mim um mistério.

Recordo-me de me fazer muitas vezes esta pergunta: “Ela não será uma pessoa inteiramente incomparável? Não há no interior dela um mistério que eu não consigo, não ouso e nem devo desvendar? Na medida em que ele existe, qual é esse mistério?” E eu mesmo parava no limiar dessas considerações…

Minha admiração para com ela foi crescendo cada vez mais, sobretudo nos últimos tempos da vida dela, os dois ou três anos que precederam minha crise de diabetes em 19671.

Desfeita a união entre mãe e filho, que restará da Contra-Revolução?

Lembro-me de uma reflexão que fiz quando, depois da amputação dos artelhos2, eu já conseguia ir de muletas até a sala de jantar para estar um pouco com ela durante as refeições. Naquela situação eu pensava:

“Coitada, ela está chegando a este fim que vejo e eu estou nestas condições em que me encontro. Há um binômio: aqui estão dois a quem Nossa Senhora amou muito e que, por sua vez, amaram muito a Ela também. Ora, sobre estes se descarrega de repente essa série de golpes: sobre mim, as pancadas que eu sinto; sobre ela, um fim que se aproxima. E o que parecia ser uma conjunção de almas que Nossa Senhora tinha desejado e que Deus tinha criado para O amarem de um modo tão especial, a própria iniciativa d’Ele parece desconjuntar e no que isto vai dar? Inteira consonância comigo só ela tem e mais ninguém. Desfeito isso, o que vai resultar?

Fotos: Arquivo Revista

Fotos: Arquivo Revista
Aspectos da fazenda em Amparo.
Fotos: Arquivo Revista
Em destaque, Dr. Plinio no mesmo local, em agosto de 1968

“Mas, meu Deus, ela, este filho dela e todo o ambiente criado por ela existem para Vós. Vós os suscitastes, Vós os articulastes, Vós os ordenastes e Vós fareis o que quiserdes. Mas, tenho a impressão de que se Vós desfizerdes isto, destruireis a Contra-Revolução e, se a destruirdes, será o fim do mundo. Ora, historicamente ele não deve chegar agora. O que fareis, meu Deus?

“Fico diante de um mistério, o qual aceito, nem seria preciso dizer; aceitaria inclusive a minha própria morte e o que fosse da intenção de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Mas não compreendo o que está se passando; vou continuar para a frente!”

Narro isto a fim de exprimir até que ponto eu a admirava e era consonante com ela, e assim não parecer inexplicável que eu me tenha, entretanto, atrevido tão pouco a analisá-la e a formar uma teoria a respeito dela.

Início de uma pós-história

Ora, com os acontecimentos e a atuação dela post mortem, muito da grandeza e do esplendor de sua alma foi-se revelando. Notei que ela começou a atuar a seu modo, por si mesma e quase à minha margem, agindo de um modo extraordinário e começando uma post história. Foi então que compreendi a necessidade de analisá-la, não para conhecer algo de novo, mas para explicitar aquilo que correspondia à minha admiração, cujo limiar não ousara transpor enquanto ela estava viva.

Isto deu-se a partir de algumas graças que recebi por meio dela e de outras que ela, sem interferência minha, começou a dispensar a outros. Porque disso todos são testemunhas: eu nunca impulsionei uma devoção a ela; sempre dei minha aquiescência, mas nunca a incentivei.

A primeira dessas graças insignes recebidas dela depois de seu falecimento foi de eu senti-la falar à minha alma, sem eu saber o modo como isso se dava. Eu, que nunca tive visão ou revelação! Falar para a minha alma como?

“Meu filho, ele voltará”

O primeiro fato no qual este fenômeno se deu foi a propósito de um rapaz que havia se afastado de nosso Movimento. Lembro de ter sido em semanas posteriores à morte de mamãe, quando me encontrava em repouso em uma fazenda.

Fotos: Arquivo Revista
Visitas de Dr. Plinio ao túmulo de Dona Lucilia no Cemitério da Consolação
Fotos: Arquivo RevistaFotos: Arquivo RevistaFotos: Arquivo Revista

Eu estava deitado quando me veio ao espírito a lembrança dessa pessoa, e eu senti como se minha mãe me sorrisse, com um sorriso iluminado, generoso, cheio de felicidade, e me dissesse: “Meu filho, ele voltará e o caso dele não está perdido, ele continuará o caminho.”

Eu pensei com os meus botões: “É para mim evidente que é uma comunicação dela e que isto vai dar-se. No entanto, pela contenção que eu devo pôr-me a mim mesmo, não darei a menor importância ao que aconteceu.” E assim o fiz, tanto é que não comentei com ninguém.

Ora, depois os fatos confirmaram, e de modo maravilhoso, a intervenção dela no caso.

Apesar da admiração enorme, da veneração, do afeto, respeito que eu tinha por ela, a minha posição foi de estabelecer uma espécie de dúvida metódica diante daquilo que eu havia sentido. E não só dúvida, mas de relegar o fato, ignorá-lo, embora desejando, como podem imaginar, que aquela promessa se realizasse.

Ela mesma como que, afetuosamente, carinhosamente, forçou a barreira metódica que eu tinha estabelecido, mostrando-me que, de fato, ela ocupava um lugar que o meu temor, a minha vigilância impediam de afirmar, como também de negar. Eu fizera tábula rasa a respeito disso.

Barreiras simétricas, santamente estabelecidas

Depois houve um outro caso, mais pessoal e relativo à minha saúde, no qual também ela falou claramente e os fatos se cumpriram conforme havia dito.

Eu não sei explicar como, mas é um falar não falando, um dizer não dizendo, com muito sorriso, e cujo sentido profundo me preparava para admitir como autênticas as graças que ela tem dispensado junto à sua sepultura e cuja autenticidade eu não poderia negar. Porque, para quem tem um pingo de discernimento dos espíritos, constituem uma tal evidência, que eu não poderia negar.

Para dizer logo tudo de uma vez, a barreira que eu coloquei na consideração da pessoa dela era talvez a mesma que ela havia posto na consideração de minha pessoa. Quer dizer, talvez fossem barreiras simétricas, estabelecidas por ela e por mim, vindas da mesma preocupação. Eu não tenho certeza, mas era bem possível.

No entanto, ela passou por cima da barreira que eu aprendi dela a traçar, tanto no que diz respeito a ela, como no que diz respeito a mim; ela entrou e abriu.

E isso me leva então a reestudar o assunto da pessoa dela, sem algumas limitações que eu mesmo me julgara obrigado a estabelecer outrora.

Ao fim da vida, ela me transmitia alguns pensamentos, não à maneira de quem vai pronunciar ditos sublimes supondo que vai morrer, mas eram coisas que lhe escapavam por acaso; e eu fui interpretando depois, com mais profundidade, algumas ideias que eu tinha desde o tempo de minha infância, reconstituindo uma porção de impressões que ela me dava.

Uma alma à espera de outros filhos

Uns vinte anos antes de ela morrer, comecei a prestar atenção nela e pensava: “Mamãe foi uma filha excelente, uma irmã ótima, uma esposa pacientíssima e dedicadíssima; mas ela, principalmente é mãe, e não quero dizer que ela seja sobretudo minha mãe.”

No decurso do tempo, passei a notar nela uma atitude de alguém que possui uma alma de mãe para ter uma quantidade de filhos que ela não teve e dir-se-ia ser uma alma à espera de outros filhos que ela não teria, tanto mais que eu não haveria de me casar. Como é que se explicava isto que ficava em suspense?

Mais tarde eu comecei a perceber que ela apresentava uma atitude de mãe em relação a todos os meus amigos que se aproximavam dela. Veio-me à mente essa pergunta: “Será que um dia ela vai ser mãe de todos aqueles que são meus filhos espirituais e que toda a TFP, que deve crescer ainda muito mais, vai ser um Movimento de filhos dela?”

Com efeito, o modo de ela agir com os que vão rezar junto ao túmulo é assim: ela toma um por um como filho, estabelecendo um vínculo materno e, mais do que atender à graça, ela faz sentir àquele a cujo pedido diz “sim” que, a partir daquele momento, providamente toma conta dele; toda a série de outros pedidos que ele fizer, ela atenderá como uma mãe faz com aquele o qual, de fato, toma como filho.

Fotos: Arquivo RevistaFotos: Arquivo Revista

Impulsar, fazer com que cada um seja filho dela é, vamos dizer, o objetivo dessas relações que ela estabelece no Cemitério da Consolação.

Um múnus materno para recompor almas órfãs

Isso tem uma reversão em outra realidade.

Muitas vezes, comparando-a com outras mães que eu conhecia, tinha uma sensação curiosa e pensava: “Tenho a impressão de ser ela a última mãe sobre a Terra, porque mãe como ela é – com tal plenitude da maternidade –, eu não conheço ninguém, excetuando, como é evidente, Nossa Senhora.

As mães vão morrendo sobre a face da Terra. Há restos disso nesta, naquela e naquela outra, mas com esta totalidade de predicados não vejo ninguém. Creio que haverá uma época na qual o relacionamento entre mãe e filho vai desaparecer.”

E eu tenho a impressão de que Dona Lucilia entra nesse cenário e toma um cuidado especial dos que são mais órfãos, daqueles cuja mãe foi menos mãe. A esses ela pacifica, apazigua, entretém, enfim, realiza um trabalho como só ela poderia fazer, e o faz de um modo esplêndido, excelente, com afagos, revelando-lhes o que é ter uma mãe.

Desse modo, a axiologia que ela recompõe carinhosamente corresponde ao sentido de orfandade. Um órfão que nunca teve mãe ou quem nem sequer conheceu uma boa mãe, este fica com a axiologia trincada.

Ora, dar axiologia é próprio ao múnus materno e é o que Nossa Senhora faz. O universo não teria sentido e seria uma sucessão de cóleras ininterruptas de Deus se não fosse Nossa Senhora intervindo, unindo, consertando. E o que a Santíssima Virgem realiza de um modo universal, mamãe parece ter a incumbência d’Ela para fazer de um modo mais particular, preciso, pequenino.

Durante a vida, eu via mamãe com muitas interrogações e, desde a eternidade, ela parece respondê-las por inteiro. Com o fato do raio de luz sobre as orquídeas3 e pelos acontecimentos que sucederam, se me fixou esta ideia de uma missão dela post mortem.

Consertadora dos temperamentos, cuja bondade forma para a luta

Algo no qual também entra a ação de Dona Lucilia é na questão dos temperamentos.

Ora, o temperamento das gerações que viriam seria marcado por uma espécie de incapacidade para as grandes asceses, por causa de um minguamento da natureza. E ela, a senhora do Quadrinho, com sua forma de carinho, de acessibilidade, resolve inclusive o problema temperamental, cujo reflexo pode-se ver no próprio modo de eu me portar diante da virtude dela.

Quando era de se esperar que as almas não teriam mais acesso a isso, nasce uma forma nova de ascese, de axiologia, toda feita da bondade dela, da misericórdia, de uma suavidade recomponente, que tem isto de curioso: refeito por ela, dá para o combate; sem ser refeito por ela, não dá para nenhuma luta.

E mais ainda: aqueles que não são capazes de maiores esforços ela os apresenta aos olhos de Deus com uma aparência de ascese; não consigo exprimir bem, mas seria algo dessa natureza. Ela como que consegue, com o sorriso e uma ação na alma, o que a grandeza dos séculos passados – que eu admiro e procuro representar –, de si, não causaria. Desperta admiração, mas não move à imitação. Ela, no entanto, vê, preenche, completa e faz andar.

Complemento de suavidade e doçura à ação de Dr. Plinio

Há aqui uma espécie de cruzar de ações: em certo sentido, eu represento o futuro e ela o passado; em outro sentido, eu represento o passado que se levanta esbravejando, de garras diante da Revolução, e ela representa o futuro.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1985

Há, por exemplo, casos de pessoas que se aproximam de mim com desejos de me seguir, mas com dificuldades temperamentais. Mamãe, a seu modo, alisa o temperamento, o põe em ordem. Onde eu não poderia chegar, ela, pelo sorriso, encaminha a alma. É um ponto por onde eu a sinto completar-me magnificamente.

Certa vez, eu estava conversando com um rapaz; estávamos cada qual em cadeiras de vime, lado a lado. Depois de eu lhe haver apontado certos deveres a cumprir, ele respondeu-me: “Para isto, eu não tenho força nem coragem, e é inútil o senhor pedir de mim, porque não consigo.”

Aos meus lábios veio o desejo da increpação: “Como pode ser isto? Você tem a graça de Deus como eu tenho e tem obrigação de exigir de si mesmo o que eu exijo de mim. E o que não for isto é, de sua parte, um amolecimento e uma insinceridade…”

Quando eu olhei para ele, percebi que teria o seu propósito eu dizer-lhe isto; mas seria, ao mesmo tempo, uma ação tão descabida, que eu não deveria fazer. Engoli a censura e deixei correr o marfim.

Anos depois, esse rapaz mencionou-me uma ação de mamãe sobre sua alma – creio que ela já havia morrido – que era o de consertar o temperamento. Eu compreendi que aquela minha atitude teria sido, de fato, fora de propósito, porque ela arranjou o que eu não teria obtido. Esse jovem teria admirado meu “rugido”, mas a repreensão não teria consertado o temperamento dele.

Há algo por onde ela me completa com doçura e suavidade, alcançando o que eu não conseguiria. E eu, muito agradecido e enternecido, não tendo nem sequer palavras para dizer quanto sou grato, registro estes fatos. Isso é assim!

(Conferência de 30/10/1977)

1) Em fins do ano de 1967, como resultado de um esgotamento físico, Dr. Plinio foi acometido por uma grave crise de diabetes.

2) Devido à gangrena ocasionada por uma infecção no pé direito, foram-lhe amputados quatro artelhos.

3) No momento da Consagração da Missa de sétimo dia de Dona Lucilia, celebrada na Igreja de Santa Teresinha, um raio de luz incidiu repentinamente sobre as orquídeas, que constituíam o centro da cruz floral que se encontrava junto à mesa de Comunhão.

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