jueves, noviembre 21, 2024

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Autênticos sonhos, perpassados da ação de Deus

Devemos saber interpretar as descrições celestes dos sonhos de São João Bosco de modo a sentir o pulchrum das narrações, porém, sem remover o senso da combatividade e a ideia da batalha, do trágico, instalados no mar imenso e supremo da felicidade eterna.

Vamos juntos passear pelos sonhos de Dom Bosco.

Serão realmente sonhos? Quem os lê percebe bem tratar-se de autênticos sonhos, mas dos quais Deus Se servia para lhe fazer ver uma porção de coisas próprias ao Céu.

Sonhos de significado sobrenatural

Sabemos que no Antigo e no Novo Testamento se deram diversos episódios com sonhos: foi em sonhos que um Anjo apareceu a São José e lhe explicou o mais indecifrável, mais alto, nobre e belo dos mistérios que houve na História.

Por aí podemos compreender que o grande São João Bosco tenha tido comunicações de Deus através de sonhos. Tudo quanto ele narra parece vindo do Céu. E o lusco-fusco da linguagem empregada por ele para transmiti-los a seus filhos espirituais parece traduzir bem a verdadeira situação dele, que não tem visões claras. Mas nota-se que são coisas comunicadas pelo sobrenatural, as quais devem ser tomadas com espírito de fé por aqueles que as leem.

São João Bosco chamava seus filhos espirituais de “birichini”. Eu não conheço a língua italiana e não sei bem o que significa, mas parece-me que quer dizer meninote, rapazola, adolescente.

Flávio Lourenço
Sonho de São José – Museu Diocesano de Brescia, Itália

São João Bosco teve grupos enormes de meninos que passaram e se santificaram sob o seu olhar. Ele foi chamado a educar, sobretudo, as classes mais modestas da população.

Sem a luta, a vida é insípida e sem graça

O sonho sobre a antecâmara do Céu deixou-me numa perplexidade porque, quando comecei a lê-lo, fui me lembrando das fisionomias que, com tanto afeto e tanta estima, tenho diante dos olhos nas reuniões de sábado à noite. Não me lembrava da fisionomia deste ou daquele individualmente, mas do conjunto, da “orquestração” fisionômica. Assim como se pode guardar a lembrança de uma orquestra tocando sem individualizar cada instrumento, do mesmo modo não individualizei ninguém. Mas eu me perguntava que efeito isso produziria nas almas daqueles que me ouviriam.

O sonho descreve um desenrolar de harmonias, de gentilezas, de afabilidades, de esplendores, onde tudo existe e se relaciona de modo magnífico com tudo. Tinha a impressão de que, descrita a cena, à primeira vista ela seria muito bonita, mas que, de outro lado, causaria estranheza e uma sensação de insipidez por não ter o choque, a contradição, não ter a batalha nem a luta e, por isso, produzir a sensação de uma vida não muito apetecível.

Vou dar um exemplo. Nós vivemos vencendo cacofonias. Há pouco, enquanto alguns proclamavam, se naquele momento tivesse passado o caminhão da limpeza pública fazendo seu barulho característico, todos seriam obrigados a fazer uma seleção interna para não prestar atenção naquilo e continuar a ouvir a proclamação. Isso é um esforço subconsciente, mas dolorido, interno, que desmembra da alma uma categoria de impressões rejeitadas e seleciona outra bem-amada. Essa rejeição tem um vigor, uma força e uma varonilidade, tem um quê de áspero, de rude, capaz de conferir aquela forma especial de nostalgia que um velho lobo do mar tinha quando navegava em mares sem tempestades nem acidentes.

Os navegantes dizem que uma coisa é navegar no Oceano Atlântico, no imenso Oceano Pacífico, e outra, no Mediterrâneo. O Atlântico é um mar grande e misterioso, e a todo momento se modifica; depois de deitar os sorrisos mais encantadores e afagar com as placidezes mais atraentes, de repente se transforma, não se sabe como, e cria problemas, fazendo balançar o navio, dando dor de cabeça a todos os tripulantes. E se a viagem é na zona norte, lá aparecem os icebergs; se é na zona do meridiano, são os calores desoladores, desalentadores, desanimadores, arrasadores; mais para o sul, começa de novo a natureza com seus bafos gélidos. Assim o oceano tem suas lutas, seus rangidos, seus problemas.

E um velho lobo do mar que viajasse no Mediterrâneo, muito mais tranquilo, com seu mar azul, com suas belezas mais civilizadas, menos cheias de incógnitas, menos fascinantes e mais proporcionadas ao homem, ele poderia sentir-se navegando insipidamente num barco dentro de uma piscina ou numa dessas represas artificiais e sem graça, que, no fundo, é uma espécie de imensa piscina colocada entre montanhas, onde a água não se move, tem uma placidez sem gosto, sem graça, e em que as pessoas remam e remam. Tem-se vontade de perguntar a esse navegante de represa: “Você não tem com que lutar, não tem com que se entreter! Seu divertimento é estar no meio da água. Você pelo menos sabe apreciá-la? Não sabe? Então, o que você está fazendo aqui? É o que você faz por toda parte, ou seja, nada. Este é você!”

A natureza humana pede a luta

Ora, é legítimo que o lobo do mar sinta saudade das tempestades, sinta a nostalgia da luta. E se lhe propuserem uma viagem na qual se ofereça o seguinte: “Você vai sair de Barcelona e vai parar em Alexandria, na mais tranquila das viagens. O mar vai ser azul e liso, não haverá um vagalhão, nada irá acontecer; você poderá dormir doze horas e o resto é bebericar; tem jogo de dados etc.” É compreensível que ele hesitasse e dissesse: “Vale a pena ir?”

Flávio Lourenço

Há alguma coisa na natureza humana nesta Terra que pede a luta, o ríspido, o choque, a força. E nós devemos saber interpretar de tal maneira os sonhos de São João Bosco com essas descrições celestes, que possamos sentir o pulchrum delas, mas sem remover o senso de nossa combatividade e da ideia da batalha, do trágico, instalados no mar imenso e supremo da felicidade eterna. Sem que essas duas coisas estejam conjugadas, nós não nos sentiremos em casa nem tomaremos o gosto da descrição celeste.

Duas razões para se desejar a luta

Como seria belo nos imaginar navegando num veleiro, num belo dia todo azul, com mar azul, no mês de maio, atravessando o Oceano Atlântico indo para a Europa. Oh! Que coisa agradável! No percurso já iríamos pensando em nossos amigos portugueses nos esperando em Lisboa; nossos amigos espanhóis, em Barcelona; depois, atracaríamos na França e atravessaríamos o doux pays de France para visitar nossos amigos franceses. Em seguida iríamos à Itália e passaríamos para a Áustria e para a Alemanha. Que magnífica viagem seria se todos nós estivéssemos no mesmo transatlântico!

Imaginem um dia azul, temperatura moderada, ventos que são brisas e nós passeando no tombadilho do barco de um lado para o outro, gozando a alegria do mútuo convívio. Temos alegria de estarmos a bordo juntos uns com os outros, sermos um só e sermos muitos. Quando nos encontramos com cada um temos a sensação de ser uma novidade; correm os burburinhos, correm os boatos, mas sem críticas; todo mundo está contente, não há rivalidades entre estados do Brasil, não há zum-zum: “Olha tal estado assim, tal outro, aquele, cuidado!”, mas há uma plena e serena confiança; não há rivalidades entre nações, todos somos um só. Como seria agradável e deleitável esse dia!

Entretanto, é preciso entender bem que a alegria desse dia seria sensível a nós se o gozássemos entre duas tempestades. Quer porque nós fomos concebidos no pecado original e por causa disso nossa natureza range e procura uma consonância com o rangido, e aqui é um defeito; quer porque somos chamados para a luta e nela somos convidados a uma confrontação pela qual sentimos que chegamos ao extremo limite da nossa vocação e da nossa realização. Procuramos e desejamos esse limite porque o homem deve desejar a perfeição. E o extremo limite de um homem é o extremo limite de suas virtudes, o qual se chama santidade. Aí se compreende que um homem possa e deva desejar isso.

Efeitos trágicos da Revolução

Há uma terceira razão, negra como o pecado original, que nos faria também estranhar essas harmonias celestes. É a Revolução. Ela implanta no espírito do homem contemporâneo uma disposição para não gostar do maravilhoso, para gostar do banal, do vulgar; para dizer tudo numa palavra: gostar do chulo. A todo momento, tudo em torno de nós vai se transformando. No fundo, nós todos estamos sendo devorados pela atração do abismo e vamos caminhando para o abismo da negação de toda verdade, através de um relativismo insondável; o abismo da negação de todo bem, através de um permissivismo sem conta; a negação de todo pulchrum, através de uma indiferença indescritível em relação ao que é maravilhoso; quase se diria a preguiça do maravilhoso e do alçar-se até os mais elevados páramos da admiração; e preferimos ficar no banal.

Flávio Lourenço

É preciso lembrar que a Revolução nos conduz aos horrores que conhecemos. Ela nos dá o gosto do feio, do desordenado, do asqueroso, do contraditório, do chocante, e corre-se o risco de as pessoas ficarem habituadas a isso. De maneira que, quando elas vão tomar contato com as coisas celestes, sentem também o desejo, a nostalgia do prazer péssimo, da coisa chocante, contraditória, do errado; a nostalgia de um antegozo do Inferno.

Tendo bastante clara a presença desse fator, poderemos nos situar bem nas descrições do sonho de Dom Bosco. Ele descreve verdadeiras maravilhas, mas para uma “birichinada” que ainda não estava imersa na civilização moderna. Estava na antessala. Na sombria moradia dos horrores, há uma diferença entre a câmara e a antecâmara. E, apesar de tudo, a situação do tempo dele era bem diferente da nossa.

Aquilo que poderia maravilhar e encantar os “birichini” dele, até que ponto aos meus jovens, sem essa introdução, não causaria uma sensação de certa inadaptação e insipidez? Eu os ajudo, então, a detectarem em si as razões explicáveis, legítimas e nobres, que vêm da vocação e do gosto da luta; a razão não culposa, mas lamentável, que é o pecado original: no Paraíso terrestre não havia essas coisas e a razão culpável e péssima da adesão à Revolução. Todas essas coisas se somam para produzir uma espécie de defasagem que eu não queria deixar de acentuar antes de tratar do assunto.

Gabriel K.

Maravilhamento na antecâmara do Céu

Feita esta introdução, descrevo o que se passou.

São João Bosco dorme e é introduzido no Céu Empíreo. É um ambiente material no qual há belezas que o maravilham e o deixam deslumbrado. Ele encontra ali uma coorte enorme de meninos que ele formou e santificou, e dela se destaca, com especial brilho, São Domingos Sávio, um dos discípulos perfeitos que esse santo vitorioso e triunfante teve. O pequeno discípulo entra numa interlocução com São João Bosco e lhe diz: “Eu vou fazer-vos ver mais um pouco, porque mais não aguentareis”, dando a entender que aquela parte do Céu é onde a natureza de quem não morreu ainda aguenta estar – a outra parte é tão bela que o homem ali não aguenta – mas ainda é Céu material. Não é a visão de Deus face a face.

E há um fenômeno qualquer no sonho que é tão empolgante, tão superior à carga emocional do homem, que São João Bosco dá um grito tão alto que acorda o padre que dormia na cela contígua à dele. É um grito de maravilhamento, onde o instinto de conservação dele brada; e ele acorda, vendo-se, então, restituído a esta Terra.

Compilação dos sonhos

Faço duas ressalvas. Em primeiro lugar, os sonhos de São João Bosco são editados pelos padres salesianos e são autênticos, mas nas “Boas-Noites” de Dom Bosco ele contava esses sonhos e havia muitos que tomavam nota. Não havia gravador naquele tempo. Um bom número de anos após a morte dele, creio que vinte anos depois, talvez mais, por determinação dos superiores, um padre salesiano recolheu as anotações de todos, fez uma compilação dos sonhos para colocar num só livro e teve bom resultado. Entretanto, ele fez um desastre: pegou todas as anotações e as queimou. Hoje o original é essa compilação. Ora, quem faz uma compilação, faz uma seleção. Compilar é, até certo ponto, selecionar. Que tudo isso tenha sido sonhado por São João Bosco é certo. Mas, terá sonhado só isso? Com que critério foi feita a seleção? É legítimo que nossa segurança seja bem menor. E, portanto, podemos nos perguntar se o Céu é só isso.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1979

Há ainda uma segunda questão: as coisas que ele via em sonho eram como ele descreve ou eram símbolos de uma realidade mais alta que devemos imaginar? Tudo o que ele viu é material, não há dúvida. As belezas do Céu material simbolizam belezas de alma. Será que as coisas materiais que ele descreveu são como foi descrito ou simbolizam uma matéria diferente? Ainda não encontrei uma elucidação para esse ponto.

Li este sonho com muita atenção e parece-me, ao menos no tocante a ele, que reproduz realidades materiais como ele as viu. Portanto, salvo melhor juízo – talvez os próprios teólogos salesianos tenham elaborado uma explicação para isso –, parece-me que a coisa pode ser entendida materialmente.

Vamos ver a descrição dessa antecâmara do Céu e ver esse silvo, esse corisco, esse relâmpago do que poderíamos chamar o Céu mais alto, que passa num zigue-zague, e vamos fazer a análise de tudo isso, pois é o futuro bem-aventurado para o qual Nossa Senhora nos convida.

Com a devida reverência, podemos entrar no encalço de São João Bosco e de São Domingos Sávio.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 8/9/1979)

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