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Maldição da ambiguidade, choque entre mentalidade e princípio – II

Toda mentalidade encarna uma doutrina, a qual muitas vezes não é confessada e permanece oculta por detrás de princípios que a pessoa diz ter, mas não ousa praticar. Este choque entre princípios e mentalidade produz um abalo na personalidade.

Aprofundemos no tema sobre doutrina e mentalidade.

A mentalidade enquanto encarnação da doutrina

Nós nos perguntamos: por detrás dessa poesia1, há uma mentalidade? Há uma doutrina? Que diferença há entre uma e outra? O que é doutrina e o que é mentalidade?

Há pessoas, neste atual mundo de confusão, que julgam que o estudo da mera doutrina forma um homem e que não há necessidade de estudar a mentalidade. Outras têm a ilusão em sentido contrário, de que uma vez tomado conhecimento da mentalidade, não é preciso ser conhecedor da doutrina.

Sabendo das relações entre ambas realidades, percebemos como uma completa a outra e como se deve ter as duas coisas. Porque toda mentalidade é, sob certo ponto de vista, a encarnação, a redução a sinais sensíveis de uma determinada doutrina.

Qual é a doutrina que está posta nesse soneto? É a do comum de um gozador da vida, que fez o cálculo de prazer para seus dias.

Flávio Lourenço

Gozadores da vida em oposição à mentalidade católica

Exporei as doutrinas sobre a vida e a felicidade que convergem na mentalidade de um gozador.

Viver consiste em ser feliz. Ora, se as grandes emoções são uma desventura, logo, a felicidade consiste em não as ter. Deve-se preparar para uma vida calma, em que o correr das horas sem emoção confere a própria felicidade. Isso é uma doutrina.

Há outros gozadores que concebem o contrário: a felicidade está nas grandes emoções. Assim sendo, têm-se a necessidade das grandes aventuras, de sair correndo, galopar, imaginar. Quando as grandes emoções cessam, o indivíduo para de viver.

Se fôssemos dizer a um desses indivíduos: “Você nega a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo?” Ele responderá: “Absolutamente não! Eu tenho um lindo crucifixo dourado em minha casa e, às Sextas-Feiras Santas, vou sempre à paróquia com a minha mulher e meus filhos. Todos osculamos a Santa Cruz. E até a mendiga a quem dou espórtulas me elogia: ‘Que beleza ver toda sua família aos pés da cruz!’ Eu comentei com minha mulher: ‘Aos pés da cruz, aos pés da cruz… que bonito!’”

Jaan Künnap(CC3.0)

No entanto, esses homens constituem os dois tipos de almas mundanas, cuja doutrina é diametralmente oposta à que São Luís Grignion de Montfort denomina como a mentalidade e a doutrina dos amigos da Cruz.

Ao verdadeiro católico não importa gozar, importa servir. Ele está nos antípodas dos dois gozadores, porque guia-se pela verdadeira doutrina de viver para amar, louvar e servir a Deus nesta Terra e dar-Lhe glória por toda a eternidade no Céu.

A felicidade sem nuvens não existe para o homem neste vale de lágrimas e não seriam as grandes nem as pequenas emoções que lha confeririam. A única existência que não é insuportável é a do católico, que tem sua vida lançada a tudo quanto a Providência permite e dispõe. Será uma grande ou uma pequena emoção, será o acontecimento que for, ele cumpre com seu dever e, tendo-o cumprido, ele viveu.

E o que vem a ser mentalidade? Qual é a diferença que há entre ela e a doutrina?

O homem é um colecionador de símbolos de sua mentalidade

Mentalidade é o estado de um homem que ajustou toda a sua pessoa à doutrina que sustenta: todo o sentir, o modo de ser, tudo quanto faz, o ambiente que cria. Ele é um símbolo vivo de sua doutrina, é um colecionador de símbolos e constitui em torno de si um ambiente-símbolo, e canta depois aquilo que simbolizou… Esse é o homem que tem mentalidade.

No caso do poeta, ele tem uma convicção doutrinária que deixa transparecer. Ora, não se trata apenas de uma explicação verbal, mas todo seu ser, todo seu temperamen to, sua sensibilidade, seu estilo de vida e todos seus hábitos transmitem uma doutrina e estão ajustados a ela. Cercado dos símbolos, ele compõe ainda uma poesia a fim de fazer outros sentirem a gostosura do que ele experimenta.

Samuel Holanda
Mosteiro da Batalha, Portugal

O espírito humano precisa conhecer a verdade e a virtude inteiras dentro da doutrina, mas esta deve ser tornada para ele cognoscível em todos seus aspectos, de modo a que toda sua pessoa assimile a doutrina quando, por exemplo, ele entra num ambiente cercado de símbolos. Deus dispôs que o homem formasse sua mentalidade assim.

Para isso a Igreja foi constituída Mestra da Revelação, para garantir que chegasse a todos os povos o conhecimento da verdade. Mas ela depois promoveu a liturgia, as cerimônias, os templos, como ambientação para a prática da doutrina e para se ter horror ao que é lhe oposto.

Assim é que a doutrina forma a mentalidade. Ou é isto, ou o indivíduo adere a uma doutrina e tem a mentalidade formada de outra maneira. Como pode haver essa contradição? Dou alguns exemplos.

Doutrina sem mentalidade, mentalidade sem doutrina

O escritor fala em partilha, o que supõe, portanto, que se tenham herdado bens. Imaginemos que ele tenha recebido de seu trisavô um velho romance de Cavalaria, um bonito livro das primeiras encadernações. Ele não lê, mas guarda-o em casa, porque acha interessante ter sobre a mesa de um de seus salões.

Esse homem tem um neto que nas horas vagas vai brincar em sua casa, e como ele reputa o avô supremamente sem graça, começa a ler o romance de Cavalaria. O menino, que gosta do livro, pode até entusiasmar-se com a história, mas, habituado à casa do avô e à casa do pai formado pelo avô, ele não viverá o espírito de Cavalaria. Neste caso, ele tem a doutrina, não tem a mentalidade.

Há pessoas que gostam de assistir a romances ou novelas policiais. Se a novela é reproduzida às onze da noite, por exemplo, elas trancam bem a casa antes, sentam-se na poltrona mais cômoda; conforme o nível, põem-se de chinelos e ligam a televisão pouco antes do horário para pegarem a narrativa inteira, e a acompanham com uma torcida única.

Acaba a sessão, todos se retiram, tomam um copo de água ou de leite, vão com calma para o quarto dormir, pensando como acabará o ca so da moça aflita que ficou pendurada num fio de eletricidade, prestes a cair na rua. Deitam-se e dormem um sono monumental.

Flávio Lourenço

Uma pessoa assim pode até encantar-se doutrinariamente com o risco enquanto sendo um ornato da vida, e gosta inclusive de vê-lo na vida do outro. Mas… em sua vida, ela mesma não quer riscos, porque não tem aquela mentalidade e sim a do Plantin2.

E a pessoa sofre uma contradição interna, a qual tona-se fonte de mal-estar. Mas ninguém há que não tenha uma mentalidade segundo uma certa doutrina. Pode-se estar dividido entre duas doutrinas distantes, mas alguém a-doutrinário não existe.

O explícito vazio e o implícito envergonhado

Conhecer a doutrina não basta. Quantos há no Inferno que conheceram a verdade, entretanto não amoldaram sua mentalidade.

Alguém dirá: “Mas uma pessoa nunca será capaz de explicitar isso.” Quem tem a mentalidade assim não se incomoda em explicitar, isso já seria parte do pensamento; ela gosta de ser. E esse tipo de mentalidade, que vive à margem de sua própria doutrina, até prefere não explicitar nada, para não se comprometer.

Voltando ao exemplo imaginário do rapazinho lendo o Amadís de Gaula3, imaginemos que ele, enquanto faz a leitura, se regala em tomar uma coalhada deliciosa que a avó lhe preparou. Depois ele vai passear debaixo das espaldeiras pensando consigo: “Como o vovô é um colosso! Ninguém o amola.” E o avô lhe diz: “Meu filho, aprenda comigo. Ah! Vida sossegada é isso!”

O rapaz percebe de modo confuso que, se explicitar a doutrina, ele tem um choque; então, se há algo que ele não quer é que as coisas lhe fiquem claras. É a convivência vergonhosa de um explícito vazio com um implícito envergonhado. Esse é o estado de espírito.

Se a pessoa não explicita e persiste em não explicitar, em determinado momento a Providência a chama. E Deus, que odeia a mentira e odeia que se fechem os olhos para a verdade, sobretudo a verdade interior, vem com um castigo.

Flávio Lourenço
Judas no Horto das Oliveiras – Museu Nacional Bávaro, Munich

Começa uma vida ordenada pela Providência, que dá esbarrões para convidar a pessoa à explicitação. Ou poderá acontecer de a pessoa, de repente, rachar. Comete uma infâmia, cai em si: “Isso eu não deveria ter feito… agora não tem remédio”, e se desespera.

Choque de mentalidades; Judas e o moço rico

Com Judas não terá havido um processo assim?

Ele foi afundando meio subconscientemente; em certo momento rouba um dinheiro do caixa dos Apóstolos. Ora, onde está Nosso Senhor o caixa não é de ninguém, porque tudo é d’Ele. Judas rouba um valor, gasta-o na ideia de repor depois; mas para isso roubará outra vez, fazendo um negocinho para dar o lucro da reposição e para ele poder tomar mais um trago de vinho; o negocinho, entretanto, dá errado e ele desanima de pagar.

Ele começa a ficar com nó, porque São Pedro percebeu a coisa e começa a olhar feio; ele fica inseguro na presença de Nosso Senhor e o processo segue seu curso. Em cer to momento, ele planeja a traição… É a maldição da ambiguidade! Ele foi iludindo-se a si próprio, iludindo-se, iludindo-se, iludindo-se.

São as mentalidades cujos princípios não se ousa confessar, ao mesmo tempo em que se confessa princípios os quais não se ousa praticar. Aqui está o choque mentalidade-princípio.

Nheyob(CC3.0)
Nosso Senhor com o moço rico – Igreja de São Vendelino, Saint Henry, EUA

Outro exemplo é o fato do moço rico do Evangelho. Ele encontrou-se com o Divino Mestre e perguntou o que deveria fazer para ser perfeito, e recebeu a resposta de que era preciso observar os Mandamentos. O jovem respondeu que os praticava desde a mocidade. Nosso Senhor olhou para ele, amou-o, quis-lhe bem e disse: “Uma só coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no Céu. Depois vem e segue-Me” (Mt 19, 21).

O moço, entretanto, tinha uma ambiguidade fundamental: ele queria ser perfeito continuando a ser ele mesmo, visto numa lupa de aumento. Contudo, Nosso Senhor pedia-lhe que fosse diferente e seguisse o caminho da prova e da luta, e não o caminho cômodo da riqueza.

Ele era rico, virtuoso, é verdade – dentro das comodidades da opulência, algum mérito ele tinha, porque a riqueza traz muitas solicitações para o pecado –, mas ele evitava as dificuldades específicas de quem passa pela pobreza ou pelos reveses da vida. Ora, Nosso Senhor queria que ele tivesse também a auréola dessas lutas, porque para ser perfeito é preciso ter experimentado várias formas de dificuldades e tentações. No entanto, ao ouvir aquelas palavras, ele retirou-se cheio de tristeza…

O que houve no fundo dessa atitude? Houve que a mentalidade e a doutrina dele estavam fundadas numa visualização errada de perfeição. Quando Nosso Senhor lhe enunciou a verdade, houve um choque total entre doutrina e personalidade, e ele afundou…

Pareceu-me necessário dar todas estas explicações para realçar a distinção entre mentalidade e doutrina, e para compreendermos quão preciosa é uma formação que transmite ambas as coisas. O mais difícil, entretanto, é justificar a necessidade de uma formação por meio da mentalidade.

(Extraído de conferência de 12/6/1981)

1) Comentada no número anterir, pp. 14-17.

2) Christophe Plantin (*1514 – †1589). Editor e humanista neerlandês. Autor da poesia acima mencionada.

3) Obra da literatura medieval espanhola, um dos mais famosos romances de Cavalaria.

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