Na Cruz, os brados e os gemidos de Nosso Senhor Jesus Cristo não foram só por causa do povo que O abandonou. Ele sabia que outra Jerusalém, mais perfeita do que a primeira, iria deixá-Lo na desolação. Entretanto, devemos ter a certeza sobrenatural de que toda esta enxurrada e a atual catástrofe na Igreja não servirão senão para realçar a glória d’Ele.
Há fulgores que se desprendem subitamente das mais variadas coisas. Por exemplo, um tecido de seda sob a ação da luz, solta, de repente, uma claridade de prata. Também uma joia colocada sob a luminosidade dá um fulgor especial.
Tantas coisas fulguram na vida! A dor também pode fulgurar.
Jerusalém prefigura a Igreja
Quando ouvimos as palavras da Sagrada Escritura a respeito de Jerusalém, a cidade de uma beleza perfeita, antiga alegria da Terra inteira (cf. Lm 2, 15), que chorava na sua solidão porque estava abandonada, vemos no seu pranto o majestoso soluçar profético que chega até nós.
Quando os comentadores da Escritura haveriam de imaginar que os acontecimentos seriam tais, que algum dia houvesse admiradores e devotos do Profeta Jeremias, que olhariam para esse quadro que a Sagrada Escritura, inspirada pelo Espírito Santo, apresenta como o auge do quadro pungente, e diriam abanando a cabeça: “Nós descemos mais fundo, a nossa tristeza vai mais longe. Quão majestoso e belo é o pranto desse profeta e quanto ele dá glória a Deus! Mas a nós foi dado ver uma realidade ainda mais amarga e, sem sabermos soluçar como ele, entretanto temos uma dor que nos transpassa o coração.”
Jerusalém prefigura a Santa Igreja Católica; pode ser considerada também uma figura das nações que outrora constituíram a Cristandade, pobre fogueira extinta da qual se diria que uma ou outra brasa ainda rola acesa aqui, lá e acolá, por meio de cinzas; mas, de fato, é um abismo insondável.
Imaginem a sensação de uma pessoa atirada dentro de um poço e, quando percebe apavorada estar chegando ao fundo e que dali a pouco virá o impacto com o chão, de repente, percebe, com espanto, que aquele fundo é fictício. Ela atravessa aquilo e cai num outro poço muito pior, mais profundo e não para de cair.
Nós ainda não atingimos o fundo de nossa humilhação nem de nossa dor, mas estamos caindo, caindo, caindo… A cada vez que pensamos ter atingido o fundo do poço, ainda há mais. Até onde vai esse fundo? Onde estamos? O que é feito da glória de Deus? O que é feito da glória de Maria, Rainha do Universo?
Como seria bom se pelo menos nós, a quem Nossa Senhora favorece com a graça de compreender essa situação, tivéssemos um pranto do tamanho dessa dor e uma indignação proporcionada a esse pecado e, portanto, nos desinteressássemos de tudo quanto é banal e voássemos mais alto, pensando apenas na Causa Católica!
Situação de tragédia, condição para a glória
As velas de um navio só deixam ver a sua beleza inteira quando o vento sopra e elas se enchem. O pulchrum de um navio só se deixa ver inteiro quando ele desencosta do cais. Se ele navega assim mesmo, quando está dentro do porto, dentro do golfo, ainda em circunstâncias onde se vê terra firme, ele não aparece no seu isolamento grandioso. É preciso que o barco seja imaginado num mar onde não se vê nada, onde de todos os lados os confins do horizonte e do mar se fecham em torno dele, e aí se começa a perceber como ele é pequeno diante do mar que singra e como ele é grande, porque ousa singrar o mar. Que vitória singrar o mar!
Quando se inventou a fotografia, mil recursos foram empregados para fotografar navios em todas as posições e ações possíveis. Na época do avião, o homem ainda não cessa, a muito justo título, de se encantar e de se surpreender com a navegação. Ele se encanta, reproduz os navios de todas as ordens em toda espécie de mares. Isso vai para os álbuns, para os museus, por toda a parte. O homem canta a beleza dessa situação: um navio sozinho no mar e que navega.
Se fosse só isso. Quantos literatos, pintores, se têm esmerado em mostrar o navio na tempestade. Ou sob céu aberto, quando o mar está refulgente, espelhando o Sol, tranquilo ou com ondas belas que o fazem apenas balouçar, brincam com ele sem ter vontade de tragá-lo quando passa. É muito bonito!
Quando há tempestade, o navio continua; o infortúnio se abate, ele continua e resiste, ameaça naufragar, a tragédia… Até o seu soçobro é belo. A agonia e a morte de um navio são bonitas de tal maneira é bela a navegação.
Na realidade, todo o infortúnio da navegação faz ver aspectos da reali dade náutica que dão a glória do navio até nos dias de bonança. Porque se não houvesse o perigo do soçobro, ninguém acharia tão bonito que o navio estivesse atravessando o mar. A verve da travessia que o navio faz é que por detrás está o perigo, e ele o vence.
Realmente o perigo é a condição da glória do navio. Por assim dizer, o perigo espreme, deita o melhor de sua beleza nesse sulco da dor.
As coisas se apresentam aos nossos olhos assim. Na tragédia da situação em que estamos, ao homem de hoje é dado ver uma desolação como igual o homem não conheceu. Ver tudo soçobrar é terrível.
Do pranto de indignação às amenidades e sorrisos
Sem dúvida, o dilúvio foi um castigo terrível. Entretanto, uma coisa é verdadeira: muitos olharam para o Céu e se converteram. Quem olha para o Céu dentro deste Dilúvio de nossos dias? Quem está se convertendo? Não se tem conta do número de almas que vão se perdendo!
A consideração desse panorama deve nos levar a pedir a Nossa Senhora, antes de tudo, a determinação de medi-lo inteiro, sem ocultar nada do que é, nem do que vem.
Em segundo lugar, pedir uma certeza sobrenatural de que Nossa Senhora vencerá, e que toda esta enxurrada e a atual catástrofe não servirão senão para realçar a glória d’Ela.
É o panorama que fica por detrás: grandioso e trágico, de um lado; mas, de outro, já prenunciativo de que primaveras e de que verões! Com efeito, na alma do varão que vê, se indigna e tem um pranto na medida do panorama, nascem alegrias, amenidades, sorrisos que já são o começo do Reino de Maria.
Ao extremo da desolação e da justiça punitiva devem suceder a reconciliação bondosa, o banquete para o filho pródigo que volta, o arco-íris que aparece para o homem que sai de dentro da arca. Como será esse arco-íris? Que alegrias! São as amenidades, as glórias e a segurança férrea do Reino de Maria. Tudo isso que prevemos nos dá ânimo para enfrentar o que vemos.
À vista desse panorama, o homem não deve ter medo da dor nem fugir dela.
Coragem para ver a dor
Poderíamos imaginar alguns lances da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo como tendo se dado da seguinte maneira. Nosso Senhor Se fez ver no horror dos seus sofrimentos, que despertavam n’Ele uma dor que além de física era moral, cuja extensão nenhum homem pode calcular bem, porque transcende todo o entendimento. Em certo momento, Ele apresenta-Se assim e Verônica tem pena. Lancinada pela compaixão como ninguém, ela vai correndo de encontro a Ele, enfrenta tudo e passa o sudário no rosto d’Ele. E recebe o presente que conhecemos.
Verônica teve coragem de ver a dor, olhou-a de frente e por isso praticou o gesto famoso. E quiçá tenha dito: “Meu Senhor e meu Deus!”
Outra cena passou-se com São Pedro. Depois de ele ter negado três vezes ao seu Divino Mestre, o galo cantou e Nosso Senhor olhou para ele. Naquele olhar, que imensidade de dor moral Ele terá comunicado! Como São Pedro terá entendido me lhor naquele momento, inclusive as sacratíssimas dores físicas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era como que uma confidência iluminadíssima que ele recebia de Nosso Senhor, que dizia: “Vem e segue-Me.”
São Pedro chorou amargamente, e se conhece o resto: toda a glória que veio depois, como também o martírio. E, na hora de morrer, ele pede para ser crucificado de cabeça para baixo, porque não era digno de ser crucificado como Aquele a quem ele negou. Ainda é o último olhar que o acompanha até a morte.
No olhar de Nosso Senhor para ele durante a Paixão, São Pedro se modificou, e acho que quando os olhos dele viram a última coisa terrena, ele tinha diante de si o olhar de Nosso Senhor.
Itinerário de São João Evangelista na Paixão
Como terá sido a contrição de São João Evangelista? Pode-se imaginá-la de mil maneiras. Ele fugiu, como todos os Apóstolos, mas na narração do Evangelho, ele aparece, de repente, ao pé da Cruz.
Entre a fuga e esse momento o que se passou? Esse homem que fugia quando Nosso Senhor era preso, acaba tendo a coragem de aparecer quando Ele está morrendo naquelas circunstâncias? É muita coragem.
Como podemos imaginar isso? Por exemplo, assim: que ele estava só, no quarto dele, pensando, gemendo, com vergonha de si mesmo, mas esmagado pela covardia, percebendo em si, enquanto ele mesmo chorava, as lerdezas do respeito humano e da preguiça, e agitado entre o “sim” e o “não”. Não ousando ir ver Nosso Senhor e acompanhá-Lo, ele ao menos quer ver de longe para saber o que está acontecendo. Ele não ousa dizer para si mesmo, porque sabe que fugiria, mas se ele ouvisse um pouco daquela voz que ele tantas vezes ouvira, ainda que fosse sob a forma de um gemido! Aquele timbre, que ele tantas vezes ouvira e cuja ausência o deixava lanhado de saudades. Por fim, ele acaba vencendo a preguiça, o respeito humano e caminha com o projeto de ver de longe o Mestre.
Nosso Senhor, que sabia dele no quarto, conhecia tudo o que se passava com ele, o acompanhou em espírito nesse itinerário. Nossa Senhora está rezando por São João; Ele recebe as orações d’Ela por ele. Nosso Senhor, quando sabe que São João se aproxima, põe na inflexão da voz uma coisa qualquer que ele sente que é dirigida a ele.
Ao longe, ele ouve o brado. Imaginemos que São João esteja escondido atrás de uma janela ou de uma esquina de rua, onde ele pensa estar certo de que Nosso Senhor não sabe da presença dele, apesar de saber que Nosso Senhor conhece tudo.
De repente, chega-lhe aquela inflexão, com meiguice, mas com uma tristeza sem fim: “Meu filho, veja quanto eu sofro!” É um convite a São João para ser sério e se pôr à altura daquela dor. Ele se entrega.
Depois, talvez, de um pranto amargo, ele afinal vê Nosso Senhor que já subiu o Calvário, está cruci ficado. Ele sobe correndo e ainda chega a tempo de receber a maior dádiva da História depois da Sagrada Eucaristia: Nossa Senhora, que lhe é dada como Mãe. É o dom perfeito, não se pode conceder mais belo do que esse. Se Deus desse a São João Evangelista a Cidade de Jerusalém na sua beleza perfeita, glória e alegria do mundo inteiro, não daria nada em comparação com dar-lhe Nossa Senhora!
Diante da dramaticidade, um convite de Nosso Senhor
Pois bem, também nós poderíamos dizer que temos graças para medir a dor, o sofrimento insondável da Igreja nas atuais circunstâncias.
Tudo quanto se passa agora, Nosso Senhor soube e sofreu por isso do alto da Cruz. Os brados e os gemidos d’Ele não foram só por causa daquele povo que O abandonou, mas porque Ele sabia que outra Jerusalém, mais perfeita do que a primeira e que seria muito mais estrita e literalmente a “alegria do mundo inteiro”, a Igreja fundada por Ele e da qual é a Cabeça mística, que essa Igreja haveria de fazer com Ele pior do que Jerusalém. Por que não choraria?
Quem sabe, é conjectura, se toda a história da Igreja foi passando, como uma narração viva, diante do olhar exausto d’Ele, inundado de Sangue, de seu Corpo sacratíssimo do qual a vida ia se retirando. Quem sabe se no momento em que Ele bradou “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46) estava passando diante d’Ele a cena da Igreja em nossos dias? É bem possível. É uma hipótese, mas essa hipótese é verdadeira.
Há aqui um quadro de uma dramaticidade, de uma gravidade enorme! Eu acho que, diante dele, as almas estão muito desigualmente preparadas, se é que se pode falar que alguma esteja inteiramente preparada.
Porque o mundo de hoje faz o homem fugir da dor a todo propósito, de todo jeito e a todo momento; o que ele não quer é ver isso; disso ele foge ainda que tenha que fazer o papel miserável do avestruz: quando caminham de encontro a ele, mete a cabeça dentro de um monte de areia e se deixa devorar. Mas, ainda que seja para fazer esse papel, o homem de hoje faz.
Nosso Senhor nos confidencia, porque nos dá a oportunidade de juntos medirmos, de juntos nos analisarmos. E eu não sei exprimir o afeto com que Ele nos pergunta:
“A ti, a quem escolhi por filho, para ser mais íntimo, para ouvir o pulsar do meu Coração; ouve o pulsar da minha dor, mede-a e assume-a em ti. Para quem tiver em si a minha dor, Eu pagarei com todas as minhas suavidades, com todos os meus sorrisos, todas as minhas bênçãos e toda a minha recompensa. Meu filho, queres ouvir o meu Coração?”
Manancial de alegria cristã ao longo da História
Tem-se conjugado o adjetivo cristão a tanta coisa santa, a tanta coisa justa; tenho ouvido poucas vezes falar de alegria cristã.
Se fizéssemos uma história da alegria – como seria bonito fazê-la! – demonstraríamos, sem dificuldade, que o mundo não teve verdadeira alegria. Eu excluo a nação eleita nos tempos de sua fidelidade, e assim mesmo era uma prefiguração. O mundo não teve verdadeira alegria comparável com a que brotou quando Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu.
E de lá para cá vem um manancial de alegria cristã feita de paz, de unção, de discernimento do sobrenatural, de fé, de espírito de sacrifício, de equilíbrio. Uma alegria como os séculos não conheceram igual.
A alegria cristã foi morrendo, foi cedendo passo à mundana.
Dou uma comparação: tomem a alegria de um vitral glorioso no momento em que o Sol o incendeia e a de um minueto. Que coisas diferentes! Como a alegria do minueto, que ainda tem alguma coisa da alegria cristã, é pequenina em comparação a de um azul, de um verde, de um rubro, de um áureo de um vitral onde o raio do Sol está penetrando.
A alegria da música sacra, do órgão quando ele toca com todos os seus registros para celebrar a Ressurreição de Nosso Senhor! Quantas alegrias incomparáveis!
Alegria da partida para a Cruzada, dos cruzados quando viram e tomaram Jerusalém! Nunca se conheceu alegria igual. A alegria dos Césares, o triunfo deles em Roma não era nada; uma alegria pesada, plúmbea, tendendo para a bebedeira e para o deboche, porque a alma não encontrava ali paz e precisava regalar o corpo em alegrias materiais, porque dentro da alma não havia alegria. Essa é a verdade.
A alegria do Reino de Maria vai ser tão maior!
Eu não sei como louvar suficientemente a ideia de quem deu a um vinho o nome de Lacrima Christi, para querer dizer que ele tinha um sabor indizível.
Nós devemos saber tirar dessas dores o sabor das lágrimas de Cristo, o sabor dulcíssimo das lágrimas de Maria.
(Extraído de conferência de 20/3/1982)