jueves, noviembre 21, 2024

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III – Evolução da tendência para a ideia e as tramas da Revolução

Sofismas produzidos pela tendência revolucionária

Boss Tweed (CC 3.0)

Vejamos como se passa o fenômeno da inspiração da ideia, qual a sua origem e como a tendência revolucionária produz o sofisma.

O fenômeno de inspiração da ideia revolucionária pode dar-se de inúmeras maneiras. Há neste campo uma riqueza que diríamos mesmo inesgotável.

Entretanto, há um modo mais universal que podemos fixar porque se dá, pelo menos em alguma medida, em todas as pessoas. Historicamente falando, foi o que se deu com mais frequência no curso da Revolução.

Para melhor compreendermos esse problema, precisamos conhecer a psicologia das pessoas que têm sido manobradas pela Revolução. Vejamos no terreno das modas. Uma senhora que tenha usado, em seus tempos de moça, grandes chapéus, com um bico de passarinho na frente, cerejas de borracha ao lado e todo um pomar no centro, passando depois para os dias atuais, em que os chapéus femininos mais se assemelham a caçarolas emborcadas no alto da cabeça, de maneira ridícula, à semelhança de um palhaço, se a essa senhora, quando moça, fosse possível ver-se vestida quando tivesse sessenta anos, ela choraria. Pensaria ter-se tornado louca. Foi, no entanto, conduzida a usar o que não queria, sem julgá-lo feio e sem estranhar! Ao pôr o chapéu na cabeça, ela o fez como coisa a mais natural. Uma que achava imoral um maiô pouco acima do tornozelo, não estranhou quando usou um incomparavelmente mais imoral.

Coabitação de várias mentalidades aproveitada pela Revolução

Devemos notar que não se trata de saber por que tais pessoas fizeram isso. Pode-se fazer algo que se ache mal feito, obedecendo a uma injunção da moda. É reprovável, mas não é mistério que isso se faça: de um lado há a convicção, do outro, o interesse; a alma pisa por sobre a convicção e segue o interesse. O mistério psicológico é outro: está em saber por que não houve estranheza na prática do ato.

É interessante observar que nessas almas coabitam várias psicologias. A uma pessoa da geração de nossos avós, por exemplo, seria possível que tomasse o trabalho Revolução e Contra-Revolução, lesse e, concordando, o considerasse muito bom. Algum tempo depois, lendo uma nota num jornal liberal, considerasse que ali está a verdade. E seria sincera em ambas as atitudes. Ora pensaria de uma maneira, ora de outra. Mas poderia ter a persuasão do que estava dizendo e, neste sentido, seria sincera.

Assim, na maior parte dos homens, há várias mentalidades que coabitam. A Revolução, nessa marcha processiva, não elimina propriamente uma delas, mas caminha de tal modo que dá ganho de causa a uma mentalidade sobre as outras, e, ficando esta sempre à tona, relega as demais ao esquecimento.

Revolução e luz primordial

Consideremos esses fenômenos sob a luz de um ponto de doutrina que nos é muito caro. Refere-se à luz primordial9. Somente quem corresponde à sua luz primordial tem certeza de que está no bom caminho. O homem que a ela não corresponde é um espírito incapaz de ter certeza.

A luz intelectual de todo homem, no plano natural e no sobrenatural, é mais forte a respeito de uns tantos pontos que correspondem à luz primordial. Como através da luz primordial o homem tem uma visão muito clara do que o cerca, ela lhe dá umas tantas certezas que são critério para outras certezas. Dessa maneira, se alguém está convicto de que determinados pontos estão de acordo com sua luz primordial, todas as consequências serão certas também, e tudo que contrarie esses pontos é errado.

Vicente Torres

Analisando as coisas sob o prisma da luz primordial, tudo se torna muito simples, porque ali vemos a verdade com muita clareza. Ela é uma espécie de espinha dorsal do mecanismo da certeza. Quando o homem não lhe é fiel, acaba por querer conquistar as verdades, não a partir dessa luz, mas por um jogo de raciocínio. E a vida se torna a selva escura de que nos fala Dante, pois se não tratarmos de iluminá-la a partir das certezas de nossa luz primordial, não teremos verdadeira certeza, nem do bem nem do mal, nem da verdade nem do erro.

A imensa maioria dos homens, no entanto, não procura sua luz primordial, mas, por outro lado, também não se entrega de tal maneira ao vício capital que, ao menos nessa linha, construa uma série de teses que queira adotar como verdade; entrega-se a esse vício de maneira nebulosa e vaga, e sente-se, então, incapaz de formar qualquer certeza.

A vida, aos olhos do homem que perdeu esse rumo, se transforma no reino das impressões. Se, em pequeno, conheceu, no Grupo Escolar, uma freira muito boa, amável, conserva uma grande ideia da religião. Mas se, por outro lado, teve depois contato com um professor de espírito voltairiano, muito jocoso, mestre em anedotas anticlericais que ele considerou muito espirituosas, passou a simpatizar com o anticlericalismo. Se viu, nos museus da Europa, belos objetos aristocráticos, admirou a sua classe. Mas se também assistiu a uma fita de cinema em que a aristocracia era representada de modo desfavorável, terá ficado com certa antipatia.

Em sua alma, então, se agrupam várias personalidades: o monarquista, o republicano, o anticlerical, à maneira de impressões que, ora uma, ora outra, vêm à tona e que têm certa solidariedade entre si. Há uma lógica profunda que faz com que um erro leve à tona uma série de outros erros. É um fenômeno de justaposições que funcionam sem que esse pobre homem saiba por quê.

A teoria da justificação do pecado e sua utilidade para a obra da Revolução

Um homem que se embriaga pratica um pecado. Há um móvel próximo no que ele fez, que foi o ato de tomar líquido alcoólico. Mas, embriagando-se, ele forma um juízo a respeito do vício da embriaguez. Assim, após a ação pecaminosa, ele é levado a um pecado de espírito. Entretanto, em geral, isso não se dá a curto prazo: alguém bebe e logo formula um sofisma para justificar sua bebedeira. Não. Mais comumente a pessoa pensa: “Eu bebi, que fiz eu? Ficarei muito irritado se se disser que fiz mal; não quero que se diga isto.”

Flávio Lourenço

Pecando, ele é levado a justificar o seu ato porque nasce a ideia de que tudo que surge dentro dele é mais ou menos legítimo. Pelo fato de se ter embriagado, nasce certa tolerância para com a embriaguez, que não é tanto um julgar, mas um fugir à obrigação de julgar.

A atitude de não julgar a bebedeira faz com que o homem comece a observar certos aspectos colaterais da bebedeira, que ele acha bonitos; depois, terá tolerância, já não achando má a bebedeira; e, por fim, virá o desprezo pelo homem que não bebe. A inspiração errada da ideia errada não vem direto, mas lentamente. A sua posição se torna uma atitude de espírito, da qual, por sua vez, nascerá a justificação.

Os ímpetos, a atonia, a simpatia e o processo de justificação interna

Essa atitude tem sua raiz num fato curioso. Todos repetem o princípio da lei da carne e da lei do espírito. Nós, católicos contrarrevolucionários, temos certa facilidade para distinguir a lei da carne e a do espírito, e para perceber que somos irresponsáveis pelos primeiros impulsos da lei da carne.

Compreende-se que se podem ter as piores inclinações e é natural que as tenhamos, porque assim é o homem; mas, o eixo da questão está em não consentir. Temos tão firme a ideia do consentimento, que conhecemos nosso ímpeto para tudo: roubar, mentir, etc. Poderíamos dizer que somos uma coleção de péssimos ímpetos. Sabemos, entretanto, que para haver pecado é necessário nosso consentimento e não apenas os ímpetos, e que, portanto, o pior deles não nos degrada.

A maior parte das pessoas, no entanto, não possuem essa mentalidade, esse modo de sentir e agir. Têm, no subconsciente, que o mau ímpeto, ainda que não consentido, é a sua vergonha. Assim, se dissermos a alguém que ele tem tendência à deslealdade, a primeira ideia que lhe ocorre é a de que estamos querendo injuriá-lo; sente-se ofendidíssimo com todas as paixões que rugem dentro dele; a tendência apontada constitui uma sentina para a qual nem se deve olhar.

E a pessoa, como resultado, torna-se solidária com as maiores infâmias que nascem dentro dela. Daí surge um estado de espírito pronto a entrar nesse processo de atonia, depois de simpatia e, por fim, de justificação, que acabo de descrever.

A imensa maioria das pessoas fica vagando a esmo, como cortiça no mar. Essas são as vítimas arquetípicas para se emaranharem no processo revolucionário. São elas que a Revolução, por meio de sugestões bem-feitas, leva a pensar segundo seus postulados.

A criação do mito

Temos notado certo modo de agir da Revolução neste particular. Com um pouco de propaganda, ela levanta para essas mentalidades um como que tabu, sem demonstração, um valor supremo, intuitivo. É o que se dá muitas vezes quando numa roda de grã-finos alguém diz: “Ele é muito grã-fino”; ou num círculo de pessoas que gostam de trabalhar: “Ele é um produtor”; ou em alguma roda de vadios: “Ele é que sabe gozar a vida.” Levanta-se um ponto apresentado como um núcleo em torno do qual uma série de sugestões começam a gravitar e a desempenhar seu papel. Cria-se, então, um mito.

O mito do produtor e da produção, por exemplo, que traz consigo toda uma filosofia de vida, é muito característico nesse sentido. Coloca-se no subconsciente de alguém que uma sociedade é um núcleo de consumidores, que precisam produzir para não perecer. Portanto, o homem que não produz é uma espécie de gatuno, porque está se alimentando com o que os outros produzem.

É uma tese que se comporta como uma pequena lei de direito natural. Constrói-se uma “ordem natural” e, a partir dela, tiram-se algumas conclusões. É certo que o esforço para uma produção eficiente depende de uma labuta árdua. Não basta, pois, que todos produzam, mas é preciso que o façam arduamente. Alguém que trabalhasse com mais flacidez seria um contrabandista do trabalho, que carrega em si molezas que foram roubadas aos outros.

Esse mito da produção tem forjado uma espécie de pena dos necessitados, porque a produção, em última análise, tem certo fim filantrópico para conseguir que todos a aceitem.

Gabriel K.

A Revolução governa o mundo criando mitos

A Revolução governa o mundo construindo lentamente filosofias como essa e fazendo-as caminhar. Por meio de hábeis ardis e subtis sugestões, faz com que se passe do modo rápido da filosofia do trabalho para a filosofia socialista. Para tal, é o bastante criar, na sociedade, um clima em que, primeiro, a título de caridade cristã, noticie-se o maior número de problemas sociais.

Cria-se, então, o problema do menor caolho, do velho canhoto, da criança defeituosa, do câncer… Em torno de cada doença forma-se um problema. Enfim, o corpo social fica a parecer uma só chaga. E nunca será bastante todo o esforço que se faça para aliviar tais problemas. A campanha mais serve para mostrar que o fato é insolúvel, do que para resolvê-lo. E a pessoa termina com uma espécie de remorso pelo que possui e com a ideia de que sua produção, por mais frenética que seja, ainda será pouca, porque deve ser distribuída para todos. Daí para uma lei socialista a distância é mínima.

Não se fez isto difundindo o manifesto de Marx, mas criando panoramas que se vão sucedendo uns aos outros, à maneira de argumentação, porque a pessoa pensa que foi ela que elaborou os argumentos que vieram à sua mente. E o talento do método está em insinuar isso. Todos são filósofos da solução socialista…

A falta de certeza, razão da docilidade à Revolução

Vejamos como as teses se encadeiam. Um homem que não correspondeu à sua luz primordial, não tendo, portanto, o mecanismo que dá a seu espírito a plena certeza, ou que não atendeu ao seu vício capital e não tem o mecanismo de ódios funcionando à maneira de certeza, tem uma série de varais estendidos entre esses dois extremos, com todas as gamas do pensamento humano. Essas gamas móveis poderão ser modeladas de acordo com esse grande teatro social de insinuações que se vai lançando. Eis aí uma alma que é um ótimo campo de cultura para a ação da Revolução.

Francisco Lecaros

Através desse processo seria fácil produzir numa cidade, toda ela antitrabalhista, um êxtase trabalhista, ou produzir um êxtase antitrabalhista numa cidade trabalhista.

Imaginemos, para exemplificar, as três cidades periféricas de São Paulo, Santo André, São Bernardo e São Caetano, conhecidas como o ABC, intensamente trabalhista; se na hora em que os operários estivessem saindo das fábricas se fizesse passar uma carruagem à moda do Ancien Régime, puxada por linda parelha de cavalos brancos, com um casal muito bem vestido, podemos garantir que seriam aplaudidos, se se comportassem com certa prudência.

Dizemos isto porque há dois modos de andar de carruagem: um pelo qual gozamos sem que os outros percebam nosso prazer; e outro pelo qual fazemos com que os outros também tenham prazer com nos so gozo. É um dos belos aspectos do modo de ser da Rainha Isabel II. Ela, sem demagogia, tem algo disso; o povo sente-se feliz em ver a sua felicidade. É o que aconteceria com os operários ante um casal assim. Vinte anos de discursos sindicais teriam perdido seu efeito…

As mentalidades hoje estão sem rumo, ao léu. É o que facilita o trabalho contrarrevolucionário. A figura que exprime isto é o teclado. É tal a confusão existente nas mentes modernas que qualquer das teses contrarrevolucionárias pode viver nessas mentalidades, desde o entusiasmo por Maria Antonieta, a rainha-mártir, até a compreensão por Khrushchov10. É um teclado do qual se tira qualquer nota, desde que se saiba como tocá-lo. Consegue-se tudo, menos algo consistente e durável.

Divulgação (CC3.0)
Nikita Khrushchev e Joseph Stalin, em janeiro de 1936

As almas estão reduzidas hoje a um imenso teclado e sobre ele a Revolução toca a ária que lhe apraz. É a escravização do mundo contemporâneo à propaganda.

A certeza da Idade Média; as incertezas na Renascença e na Revolução Francesa

Na Idade Média, a certeza fornecida pela fidelidade à luz primordial era muito evidente. O ambiente muito homogêneo, as ideias ordenadas, a arte e a arquitetura muito coerentes com a doutrina, tudo levava a se achar muito natural que assim fossem as coisas. Tomava-se por pressuposto natural que aquele modo de ser era o legítimo.

E o homem, sobretudo no fim da Idade Média, estava tão longe de compreender o que devia à civilização católica, que se pôde inventar o mito do bon sauvage11, durando até o “O Guarani”12, colocado em ópera por Carlos Gomes13, em que se imaginava índios pensando e raciocinando como verdadeiros heróis de Corneille14. Achava-se tão evidente aquele quadro de valores, que até o selvagem os assumia.

A Renascença rompe com o mecanismo da certeza. Primeiro veio a crise moral, que afastou os homens da sua luz primordial. Longe desta luz foi possível desviá-los da certeza. E a demolição começou pelo ponto central, tocando na divindade e na infalibilidade da Igreja. As tendências se fragmentam em diversas direções. Cada bloco tem certeza de sua certeza. E seguiu-se a divisão das seitas, cada qual com sua certeza.

No cerne dessas certezas contraditórias já havia uma incerteza, porque os homens são feitos de tal maneira que não confiam muito em si. Mesmo entre os católicos, com exceção dos extremamente fiéis, com fé capaz de mover montanhas, essa pluralidade de opiniões lhes comunicava uma espécie de incerteza fundamental vaga, imponderável, e daí a inquietação, a polêmica, o diálogo, para ver se do lado oposto não havia uma parcela de verdade.

PD-Art(CC3.0)

A Revolução Francesa generalizou esse modo de se comportar para o terreno político. Temos os monarquistas do Ancien Régime, os monarquistas constitucionais, os republicanos moderados, os avançados e os comunistas. Uma série de certezas em dúvida. A Revolução queria que todos se tornassem comunistas. Não conseguindo isto, provocou o entrechoque das opiniões contraditórias. Os que já não tinham mais um perfeito mecanismo de certeza ficaram meio monarquistas, meio republicanos. Surgiu uma imprensa funcionando como verdadeira feira de opiniões. E, não tendo ainda conseguido que todos ficassem comunistas, consegue, no entanto, que todos fiquem ao menos indiferentes.

São as tramas da Revolução.15

9) A luz primordial é a virtude dominante que uma alma é chamada a refletir, imprimindo nas outras virtudes sua tonalidade particular. A ela se opõe o vício capital.

10) Nikita Serguêievitch Khrushchov (*1894 – †1971). Liderou a União Soviética durante parte da Guerra Fria (1953 – 1964).

11) Mito do bom selvagem, propagado por filósofos iluministas após a descoberta das Américas. Defendiam a tese de uma humanidade naturalmente boa, ingênua, que se teria corrompido pela civilização.

12) Romance de José de Alencar.

13) Antônio Carlos Gomes (*1836 – †1896), compositor de ópera brasileiro.

14) Pierre Corneille (*1606 – †1684), dramaturgo francês.

15) Parte do presente artigo corresponde à reedição da matéria, revista e ampliada, publicada nos números 156 e 157 da Revista Dr. Plinio (março e abril de 2011), aqui inserida para proporcionar ao leitor uma melhor visão de conjunto do tema parcialmente tratado nas edições acima mencionadas.

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