Tal como uma vela, a vida de Dona Lucilia foi um contínuo consumir-se diante do Sagrado Coração de Jesus. E como um pavio ávido dessa chama, era Dr. Plinio junto a ela.
Em mais de uma oportunidade tive ocasião de dizer que mamãe era profundamente devota do Sagrado Coração de Jesus. Ela demonstrava essa devoção em casa pelas orações que fazia, mas também, e de um modo talvez mais acentuado, quando ia, aos domingos, à Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Haurindo graças do Sagrado Coração de Jesus
Eu a via envolta naquele ambiente tão esplêndido e peculiar àquela igreja, relacionado a fundo com o Sagrado Coração de Jesus. Ela rezava diante da imagem d’Ele, que se encontra na nave ao lado esquerdo. Essa imagem é expressiva, do esti lo artístico “sulpiciano”; sem embargo disso, piedosa, muito respeitável. Minha mãe terminava de assistir à Missa e se dirigia para lá.
A imagem tinha a intenção de mostrar o Sagrado Coração de Jesus como Ele é, ou seja, um símbolo do amor misericordioso que Nosso Senhor tem para com as suas criaturas, em especial para com os católicos. Ele a fazia sentir esse amor, essa doçura, essa suavidade. Era uma graça que ela recebia ali.
Por outro lado, em casa, diante de uma imagem pequena do Sagrado Coração de Jesus que havia num oratório em seu quarto, mamãe rezava muito também e se entregava à mesma atitude espiritual. Naquela sua posição de oração, eu notava muito que aquilo que ela tinha de melhor não era dela, era algo que o Sagrado Coração de Jesus passava a ela.
Mais ou menos como uma vela bonita, reta, branca, de bom fabrico, mas apagada, a qual alguém aproxima de uma fogueira; o fogo passa da fogueira para a vela que fica incendiada por uma chama que vai consumi-la por inteiro.
Assim também se dá conosco: nós somos velas e recebemos a chama da Fogueira das fogueiras, que é o Sagrado Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade. A caridade é o amor de Deus e o amor ao próximo por amor de Deus. Essa “fornalha ardente de caridade” comunica sua chama e a vela passa a viver daquilo.
Eu notava que, cada vez mais, Dona Lucilia ia vivendo do que recebia do Coração de Jesus a rogos, é evidente, de Nossa Senhora, porque tudo o que vem de Jesus Nosso Senhor passa por Ela. E a vida de mamãe era queimar-se diante do Sagrado Coração de Jesus.
Por detrás de todas as realidades havia a Igreja Católica
Eu fazia um raciocínio assim: por que essa imagem produz esse efeito? Porque ela exprime um ensinamento da Igreja a respeito de como é o Coração de Jesus. Isso foi deduzido dos Evangelhos, foi escrito, passado em linguagem corrente. A Igreja fazia o possível para que esse ensinamento contagiasse todos os católicos, sua missão era principalmente essa. Então a Igreja inspirava a feitura da imagem, a construção de um edifício consagrado ao Sagrado Coração de Jesus e determinava que aquela imagem fosse exposta ali para a veneração dos fiéis, significando que ela queria que os fiéis fossem assim.
Logo, por detrás de todas essas realidades, havia uma mais alta: era a Igreja Católica que queria isso, mas queria quase como uma criatura humana quer. Ela, templo do Espírito Santo, queria que isto fosse assim, de um querer inspirado pelo Espírito Santo.
Tudo isso, com todas as suas sublimidades, perfeições, excelências, provinha da Igreja. E havia nela um principium vitæ – um princípio de vida – que é o Divino Espírito Santo, o próprio Deus, inspirando tudo aquilo que os homens que a dirigiam faziam para levá-la à realização de suas sublimíssimas finalidades.
O conjunto desse ensinamento, da grei enorme de fiéis especialmente fiéis ao Sagrado Coração de Jesus, formava um só todo com a Igreja Católica. Eu deveria amá-la com um amor maior do que amava minha mãe e amava as outras pessoas a quem eu queria porque eram devotas do Sagrado Coração de Jesus. A Igreja é o princípio de vida superior a tudo isso.
Como um pavio ávido pela chama
Em mamãe eu via o espelho do Sagrado Coração de Jesus e de tudo quanto essa devoção ensina. Encontrava nela um reflexo daquilo que eu contemplava nas imagens do Coração de Jesus, do que tinha aprendido na História Sagrada, no Catecismo e, enfim, nas vidas dos Santos e naquilo que cercava a minha vida religiosa.
Eu notava muito tudo isso nela e, por um princípio de coerência, se eu gostava tanto que essas coisas fossem assim, eu não podia deixar de gostar muito que ela fosse assim. E o fundo do meu amor a ela era esse. É evidente que o fato de ela ser minha mãe colaborava com isso, mas de maneira muito secundária. O fato fundamental é que eu a amava mais como filha da Igreja do que como minha mãe. Essa influência dela passava para mim, mas eu era um pavio ávido da chama. Eu queria essa influência, eu me abria a ela e, enquanto estava com ela, o mais que eu podia, eu reforçava essa influência em mim, na lógica do elemento primordial que é o grande amor que eu tinha a Deus Nosso Senhor, à Santa Igreja e, portanto, a Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus, a Nossa Senhora, ao Divino Espírito Santo.
Perfeição beligerante
Em contato com o mundo moderno, através do Colégio São Luís que eu cursava, eu sentia muito a modernidade das coisas e todo o mal que havia nisso. Ela sentia a modernidade, de algum modo, no ambiente geral onde ela e toda a cidade de São Paulo estavam imersos. Mas ela não chegava a compreender, no começo, toda a malícia disso. E não compreendia, portanto, o caráter militante que eu tinha como católico. Ela achava bom, mas não percebia até que ponto esse aspecto deveria ser predominante para quem estava chamado a viver no tempo em que eu vivi sem ela e não no tempo em que nós vivíamos juntos.
Por exemplo, das abominações de nossos dias, ela não chegou a ter conhecimento. De modo vago, de conjunto, uma certa noção sim, mas a ideia propriamente não. O que também se devia, em parte, ao seu feitio de espírito: muito comedido, moderado eu não diria, mas prudente, e no qual as realidades apareciam com matizes muito delicados. É também próprio ao ser feminino. E em mim, pelo contrário, as realidades apareciam, desde logo, com cores fortes.
Eu só julgava que uma determinada realidade tinha sido bem compreendida por mim quando eu compreendia por inteiro o que ela tinha de bom, no que ela estava oposta ao mal que em nossa época circulava a respeito disso. Era a Revolução e a Contra-Revolução que, em menino, pela bondade de Nossa Senhora, meu espírito ia tecendo, sem perceber o que fazia. Então, vontades de destruir, entenda-se bem, não de destruir pelo destruir; era a vontade de destruir aquilo que destrói.
É mais ou menos como uma pessoa que vê uma casa antiga, boa, mas toda carcomida de cupim e percebe que ele, de um modo inevitável, vai contagiar e destruir todas as outras casas do bairro. A pessoa que perceba isso quer a destruição da casa que é o foco dos cupins. Não é pelo gosto de destruir, mas é porque naquela casa está um princípio, um elemento ativo de destruição que vai liquidar, e contra isso eu me erguia indignado.
Com mamãe eu me abria por inteiro, falava de Cruzada… de quanta coisa! Ela aprovava, mas não chegava a compreender até que ponto aquilo devia ser daquele jeito. Ela não teria contra isso uma objeção, mas uma zona de admiração menor.
Foi com o curso do tempo e vendo, por exemplo, as abominações que faziam os comunistas, depois, durante a Segunda Grande Guerra, os nazistas, que ela foi compreendendo a imensidade de maldade que tinha entrado por toda parte, além da “hollywoodização”.
Muito cedo surgiu na minha alma uma lamentação: a Igreja do Coração de Jesus estaria perfeita, mas nela faltava alguma coisa para ser inteiramente de meu gosto. Essa alguma coisa era, por exemplo, uma bela alabarda atada com uma fita bonita e varonil – nada de fita de cabelo de menina – junto a cada confessionário.
Isso, com o tempo, Dona Lucilia foi compreendendo.
(Extraído de conferência de 4/1/1995)