Apenas formado na Faculdade de Direito, Dr. Plinio planejou um novo modo de influência e atuação para os católicos no Brasil. Uma nova Constituição seria elaborada e se fazia necessário defender os interesses da Igreja, postos de lado após a Proclamação da República.
O período de glória e de expansão da minha ação pessoal foi de 1928 a 1938.
A Constituição: Lei Funda-mental de uma Nação
O Brasil naquele tempo estava dividido em 21 estados. E, como se sabe, qualquer país tem leis que determinam como deve ser organizado cada estado, qual o grau de autonomia e qual a influência do Governo Federal sobre cada um deles, de maneira a assegurar a unidade nacional. A lei também determina como se deve organizar o Governo Federal, quais são as atribuições do Presidente da República como chefe de Estado; as atribuições da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal; como devem ser organizados os vários Ministérios, os municípios, enfim, toda a organização política da nação. Tudo isto faz parte da Lei Fundamental, chamada de Constituição. Nela figuram, em geral, também as relações entre a Igreja e o Estado.
Ora, o Brasil viveu no regime monárquico até o ano de 1889. Até então a Religião Católica era tida como a oficial do Brasil. Isto queria dizer que, na Constituição, as leis eram estabelecidas segundo a Lei de Deus. Proclamada a República, todas as antigas regalias da Igreja Católica foram abolidas.
No Brasil Império, fulgores da Civilização Cristã
No tempo em que a Igreja era unida ao Estado, os grandes atos da vida pública eram marcadamente religiosos.
Por exemplo, a coroação do Imperador era feita pelo bispo, na Capela Imperial1, na cidade do Rio de Janeiro, que naquele tempo funcionava como a capital do país. A coroa era abençoada e, no mais alto dela, havia uma cruz, para indicar que a Civilização Cristã imperava em todo o Brasil. Aliás, as coroas dos monarcas em geral eram assim.
O Imperador recebia a bênção da Igreja, era ungido pelo bispo, não como a unção dos reis da França, mas era quase um ungido do Senhor para governar o Brasil. Ele jurava manter os direitos da Igreja, observar a Constituição.
Quando havia procissões com o Santíssimo, as tropas do Exército e da Marinha acompanhavam, fazendo filas de um lado e de outro. Em seguida, elas desfilavam, e havia uma ordem que os Estados leigos suprimiram: “Ajoelhar ante o Santíssimo!” Todos se ajoelhavam, em continência ao Santíssimo Sacramento que passava. Havia um toque de fanfarra especial para esse momento, além de músicas sacras.
Isso não ocorria somente nos dias de procissão. Os tempos eram outros, as ruas menos movimentadas e as cidades muito menores. Quando o Santíssimo saía para ser levado a algum agonizante, o sino da igreja badalava de modo a avisar a todos que, se quisessem, podiam acompanhá-Lo pelas ruas, a fim de prestar-Lhe honras.
Se o séquito passava diante de qualquer militar, ele se ajoelhava em continência. Se havia uma tropa manobrando, ela de imediato acorria com a ordem de ajoelhar; e, ainda que fosse um destacamento militar de cavalaria, eles deveriam apear e se ajoelhar, porque Jesus Sacramentado estava passando!
Não há mais isso hoje em dia. Eu conto para terem um pouco a noção de como era um país de civilização católica e para verem como estamos laicos, degradados, ateus, sob esse ponto de vista. É tão diferente do mundo que conhecemos…
Outras prerrogativas da Religião Católica
Outro modo de se realçar a Igreja Católica era o seguinte: os não católicos não podiam fazer propaganda de sua religião. Não se tinha o direito de propagar a heresia.
Não era proibido que tivessem um lugar de culto, mas este não poderia ter forma exterior de templo; podia ter a forma de qualquer barraca, usina, casa particular, e dentro, podiam organizar como quisessem. A forma de templo estava reservada só aos edifícios da Santa Igreja Católica, a única Igreja verdadeira de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O vigário da paróquia era quem registrava e fornecia as certidões de nascimento, para que se levassem as crianças a serem batizadas logo quando nascessem, e também certidões de casamento, já de valor civil. O casamento civil só existia para quem não fosse católico.
Em matéria de casamento, vigorava a lei da Igreja. O divórcio era proibido. Se alguém quisesse desquite – separação sem licença para se casar de novo –, ou quisesse anulação de casamento, deveria reivindicar perante os tribunais da Igreja e não nos do Estado. Porque só pode reconhecer a nulidade de um Sacramento quem os confere, isto é, a Igreja Católica.
Uma atmosfera religiosa marcava o ambiente social
E, ponto muito importante: em todas as escolas públicas, o ensino religioso católico era obrigatório, a menos que filhos de pais não católicos não quisessem ter aulas de Religião; o ensino das outras religiões era proibido. Havia o crucifixo nas salas, e os professores que quisessem podiam começar e terminar as aulas rezando.
O Catecismo era dado por professores indicados pelos bispos, em todas as escolas públicas e nas prisões; havia capelães para as Forças Armadas do país.
Assim, um ambiente religioso profundo marcava todos os aspectos da sociedade. Em toda a vida do país, a Igreja estava presente e era objeto das maiores venerações e provas de respeito, porque o Estado era oficialmente católico.
Do laicismo à reivindicação dos direitos da Igreja
Ora, quando o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República2, fez-se logo um decreto separando a Igreja do Estado, e o sistema adotado foi o dos Estados Unidos, que desde a origem foi um país laico, cujo Estado era separado de todas as religiões, não reconhecendo nenhuma como verdadeira, dando liberdade a todas.
A República acabou com tudo: a partir daí iniciou-se o ensino leigo, os crucifixos nas escolas foram desaparecendo; deixou de haver capelanias católicas nas prisões e nas forças armadas; o casamento passou a ser um ato do registro civil. Tudo se laicizou devido à Constituição Republicana de 1891. E assim ficou até 1930.
Por ocasião da queda do Presidente Washington Luís e a ascensão de Getúlio Vargas, em 1930, eram dois os partidos políticos existentes no Bra sil: o Partido Republicano, do Governo, e o Partido Democrático, da oposição. Pelos nomes vemos que, ideologicamente, eram a mesma coisa. Possuíam interesses privados diversos, mas as ideologias eram idênticas. Ambos laicistas. Assim, qualquer partido que subisse, o laicismo continuava.
Algum tempo depois, passada a Revolução Constitucionalista de 1932, Getúlio Vargas decidiu convocar eleições para a formação da Assembleia Nacional Constituinte, que devia estabelecer as novas leis do Brasil. A Hierarquia estava interessada na aprovação de leis segundo a doutrina católica, e por isso resolveu criar um organismo capaz de eleger deputados que trabalhassem pelos objetivos da Igreja.
Houve muito medo de que fizessem uma Constituinte com disposições contrárias às da Igreja. Tratava-se de conseguir para o Estado brasileiro, laico, algumas regalias importantes em favor da Santa Igreja.
E quais eram os interesses católicos naquele tempo? Começava a crepitar o comunismo; era preciso tomar atitudes que levassem o Governo e a Constituição a reprimi-lo. Segundo, eu queria, ao mesmo tempo, aproveitar a ocasião para ver se fazíamos, na Constituinte, uma coligação de todos os deputados católicos.
A Liga Eleitoral Católica
Era muito necessário fundar uma bancada católica para levar as coisas muito mais longe e fazer uma Constituição radicalmente católica.
A experiência é a mãe da ciência. Eu tive conhecimento da existência de um organismo eleitoral francês, por um folhetinho que descrevia essa entidade formada pelo General de Castelnau3, um dos grandes generais franceses do tempo da Primeira Guerra Mundial, e achei que ela estava soberba para São Paulo. Procurei um líder católico de então, um homem brilhante, com quem eu tinha excelentes relações, hoje já falecido: Alceu Amoroso Lima, cujo pseudônimo literário era Tristão de Ataíde4. Eu propus a fundação da Liga Eleitoral Católica, para eleger deputados católicos.
D. Leme5, então Arcebispo do Rio de Janeiro, concordou e incumbiu ao Tristão, a mim e ao engenheiro que construiu o Cristo Redentor, Heitor da Silva Costa6, de elaborarmos os estatutos. Redigidos estes, oferecemos a ele, que fez pequenos retoques e aprovou.
Ficou lançada a Liga Eleitoral Católica. Espalhou-se a notícia a todos os arcebispos e bispos do Brasil, incentivando-os a que fundassem Ligas Eleitorais Católicas nas respectivas dioceses.
Reconquista de vantagens do tempo do Império
D. Duarte Leopoldo7 formou uma Liga aqui em São Paulo e convidou-me para ser o Secretário-Geral, tendo em conta que este cargo era a alma viva das associações naquele tempo8; o presidente era, em geral, uma figura de proa.
A Liga Eleitoral teve uma diretoria formada por pessoas propos tas por mim ao Vigário Geral, Mons. Gastão Liberal Pinto; ele levou a lista com os nomes indicados a D. Duarte, que os aceitou, e constituiu-se a Liga.
O tratado feito por D. Duarte era que a Liga Eleitoral Católica deveria apoiar os deputados paulistas, exigindo como condição que vantagens existentes no tempo do Império fossem reconhecidas e introduzidas na Constituição: em primeiro lugar, o ensino religioso nas escolas públicas; em segundo, capelanias nas prisões, nos quartéis das Forças Armadas e em outras organizações do Governo; terceiro, ponto muito importante, a proibição do divórcio; e quarto, o reconhecimento do casamento religioso no registro civil.
Era um programa muito moderado para o meu gosto, porque não pediu tudo o que poderia e que eu gostaria que se pedisse. Meu projeto era, se pudesse, acabar com a separação entre a Igreja e o Estado. Não haveria Estado leigo, ele seria católico, a Igreja Católica seria a única reconhecida como oficial. E outras coisas mais, que me faziam pulsar o coração!
Novo front na Rua Wenceslau Brás
Constituída a Liga Eleitoral Católica, D. Duarte pôs à nossa disposição três salas grandes, num prédio pertencente à Cúria, na Rua Wenceslau Brás. Havia a minha sala, com uma mobília bem boa e, ao canto, uma escrivaninha e tinteiro, que D. Duarte tinha mandado comprar para as reuniões da diretoria.
Havia uma outra sala grande, destinada ao movimento eleitoral, onde se elaboravam os títulos de eleitor. Ao fundo, havia um salão onde se tiravam as fotografias dos eleitores, para se pôr nos respectivos títulos; facilitava muito já ter o fotógrafo ali. Éramos nós que encaminhávamos os títulos eleitorais para o Tribunal Eleitoral e acompanhávamos o processo. Se alguma coisa encrencasse, mandávamos avisar.
Fogoso orador, deputado em potência
Eu já era orador. Quando entrei para a Faculdade de Direito, ainda se conservava muito a oratória, apesar de que não me lembro de ter feito um só discurso na Faculdade. Eu fui educado num ambiente de oratória e achava natural que um dia esses dons imanentes nos velhos claustros da Faculdade de Direito em mim se incubassem, e que eu um dia também devesse ser orador.
Eu percebia que o Movimento Católico era grande, mas não sabia se todos, no momento da votação, seguiriam ou não a orientação da Liga Eleitoral Católica, porque nunca tinha havido no Brasil um partido católico.
Pus-me então a fazer discursos, não para candidaturas, mas para mostrar que se deveria seguir a orientação da Liga e apresentar as vantagens daquelas reivindicações para os católicos, concluindo que eles deveriam votar nos candidatos indicados. Eu não era candidato, mas ficava entendido que eu, fazendo discursos, justificando tão calorosamente aqueles princípios, era um possível candidato.
Como tinha facilidade para falar em público e todos gostavam, eu era convidadíssimo para fazer discursos e conferências nas associações religiosas de São Paulo e de outros lugares. Ia para longe, inúmeras vezes fui ao Rio de Janeiro, fazia viagens pequenas, grandes com menos frequência, porque toda a vida tive uma extraordinária aversão a longas viagens. Mas, quando eram uma muito boa ocasião de apostolado, eu me metia a fazê-las. Por causa disso, tornei-me em pouco tempo muito conhecido.
Falei mais de uma vez no Teatro Municipal, em outros teatros do interior, como o de Campinas e de Santos. Um lugar com o qual tomei mais contato como zona eleitoral – por razões imponderáveis e difíceis de contar – foi na zona norte, onde está Aparecida. Pareceu-me que era a região mais tradicional, mais católica, onde, portanto, o peso da Igreja seria maior.
Como não havia, às vezes, salas grandes de conferência, eu discursava nas igrejas, do próprio púlpito; eles cobriam o altar-mor, porque nessas condições o Direito Canônico permite que leigos falem ao público. Muito frequentemente, o bispo presidia a sessão e dizia umas palavras de elogio a mim antes de eu começar, e elogiava no fim aquilo que eu tinha dito. Eu ia e, em público, osculava a mão dele, pedia-lhe a bênção. Tudo isso se fazia numa concórdia extraordinária.
Magistral saída para um discurso no escuro
Como eu fazia os discursos? Ao modo como faço as reuniões: chegava e falava. Nunca fui de preparar muito; o que me parece na hora cabível, adequado, vou dizendo. Eu faço as reuniões com os olhos colados nos assistentes. É natural, porque preciso graduar o que estou dizendo, segundo o meu auditório próximo ou remoto. Mas se, por exemplo, apagassem a luz, eu ficaria inseguro quanto ao discurso a fazer, porque os olhos dos meus ouvintes são os guias de meu discurso ou de minha reunião.
Difícil para mim foi uma ocasião em que eu estava discursando na catedral de Taubaté. De repente, apagaram-se as luzes. O contato com o público desapareceu por completo, houve um suspense; todos tiveram receio de ser um atentado ou coisa do gênero. Não era nada. Mas ficar numa igreja no escuro, cheia de brasileiros, à espera de irem lá dentro pegar uma vela; quem vai, vai devagar, custa a encontrar e vem trazendo a vela equilibrada num pires…
E eu pensei: “Ou eu paro de falar porque apagou a luz, ou eu prossigo, apesar do apagão. Se eu paro, darei uma prova de timidez; se eu continuo, nadarei no escuro, porque não sei com quem estou falando. Vou falar de qualquer maneira, porque é melhor navegar errado do que deixar o barco ir a pique.”
Continuei meu discurso um bom tempo com a luz apagada, creio que até fiz alusão à escuridão. Afinal, a luz se acendeu e eu continuei a falar. Eu percebi que todos estavam prestando atenção e que eles consideravam uma proeza ter continuado o discurso. Quando terminou, todos aplaudiram muitíssimo! O brasileiro é torcedor. Fica na torcida para ver se vai dar certo; vendo a vitória, fica muito contente e bate palmas.
Foi assim que se iniciou a minha candidatura…
1) A de D. Pedro I a 1 de dezembro de 1822; a de D. Pedro II a 18 de julho de 1841.
2) Governou o país desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, até 23 de novembro de 1891, quando renunciou ao cargo.
3) Fédération Nationale Catholique, planejada pelo Marquês General Édouard de Castelnau (*1851 – †1944).
4) (*1893 – †1983).
5) Sebastião Leme da Silveira Cintra (*1882 – †1942).
6) Engenheiro e professor (*1873 – †1947).
7) Dom Duarte Leopoldo e Silva (*1867 – †1938).
8) Lê-se no plano para a execução da Liga Eleitoral Católica: “A alma estará no Secretário-Geral, que deverá ser alguém não só de prestígio local, atividade e competência, mas, sobretudo, de absoluta confiança e incapaz de desvios, esmorecimentos e aproveitamentos, para interesse próprio ou de partidos, da sua situação de porta-voz da Liga” (Plano para a execução da Liga Eleitoral Católica, 1932. Arquivo particular).
9) Vigário Geral de São Paulo em 1930 e posteriormente Bispo da Diocese de São Carlos (*1884 – †1945).