A inauguração da Constituinte serviria de marco na vida de Dr. Plinio. Diante das solicitações mundanas, só duas atitudes lhe eram possíveis: abdicar seus ideais para trilhar a carreira política numa vida faustosa e tranquila, ou blindar-se contra todos os eflúvios da falsa glória, para servir unicamente o ideal e a Santa Igreja Católica.
Lembro-me de como foi o dia da inauguração da Constituinte. Com um mês de antecedência anunciaram que os deputados eleitos da Chapa Única por São Paulo Unido iriam juntos para o Rio de Janeiro, a fim de começarem a exercer o mandato. Naquele tempo as cerimônias se realizavam com muito mais solenidade do que hoje.
Convidados à cerimônia de tomada de posse
Eu queria absolutamente que mamãe assistisse à minha posse. As razões são evidentes: a ocasião e porque eu a “transqueria” e, portanto, achava que ela tinha que ir.
Convidei minha irmã e também meu pai; eu mesmo paguei as despesas dele, porque ele se encontrava em condições econômicas péssimas. Ora, eu me perguntava qual seria a posição de Dona Lucilia com a situação e julguei que ela poderia tomar duas atitudes eventuais: uma, seria levar em consideração que eu tinha sido eleito deputado católico sem nenhum compromisso com a República e que, não sendo oficialmente monarquista, iria desempenhar uma missão sacralizante em oposição ao laicismo republicano.
Mas, poderia ser que ela tomasse a coisa do lado oposto, julgando que assistiríamos apenas a uma função da República: a inauguração de uma Constituinte. No entanto, eu não levantei nenhum problema com ela, apenas perguntei se ela, minha irmã e meu pai queriam ir. Ela aceitou com a maior naturalidade. Assim começaram os preparativos para a viagem, durante os quais encontrei-me com outra dificuldade.
Providenciando vestuário segundo o protocolo
O paulista daquele tempo era muito cerimonioso, gostava de protocolo, de educação, de grande linha e, como era o estado mais rico do Brasil, todos se vestiam melhor, tinham os mais bonitos automóveis, levavam uma grande vida. Tínhamos recebido um recado da liderança, do Dr. Alcântara Machado, que, no dia da inauguração, todos os deputados paulistas deveriam comparecer de fraque preto engomado, em grande estilo, com gravatas prateadas, como se usava naquele tempo; calças de casimira inglesa listradas cinza e preto; abotoaduras de ouro e cartola, aquele chapéu com o cilindro preto, de seda, com pelo brilhante, lustroso.
Tudo era tão protocolar, que o governo da União oferecia uma boa quantia só para os deputados comprarem o enxoval e se instalarem no Rio de Janeiro para a sessão parlamentar. Isso era necessário, sobretudo para aqueles vindos de pontos distantes: do Nordeste ou de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul. Eles viajavam com as famílias inteiras, de navio do Lloyd, levavam dias e necessitavam de uma verba.
No entanto, para mim, solteiro e menos distante do Rio de Janeiro, com uma noite de viagem, sobrava bastante dinheiro, e era preciso renovar todo o meu guarda-roupa que estava bastante deficitário. Ora, sempre fui desatento no vestir-me e nem sabia que roupas se usavam na moda. Eu não tinha noção se uma veste caía bem em mim ou não.
Então minha irmã se incumbiu de escolher os trajes, ver as qualidades de camisas etc. e, pelos comentários que ouvi, desempenhou eximiamente a função, porque era muito entendida nesse gênero de coisas, que são do domínio próprio das senhoras.
Um banquete em honra a Dr. Plinio
Os deputados deveriam partir antes do dia 15 de novembro, data marcada para a inauguração da Constituinte1. Iriam todos em um trem de luxo chamado Cruzeiro do Sul e encheriam a Estação do Norte. Eu pensei: “Vou serrar de cima mais uma vez.” E resolvi não embarcar com eles. Não fui e não dei satisfação alguma. Qual a razão?
Havia um grande número de moços de mais destaque, do Movimento Mariano ou direitistas, que desejavam organizar um banquete em minha honra. Eu não perderia a ocasião, e pedi que este fosse realizado dois ou três dias depois da partida dos candidatos para o Rio.
Contudo, o número de congregados marianos capazes de comparecer era mais ou menos uns trinta, o que não enche uma sala de banquete. Então, como se arranjaram? Havia uma confeitaria chamada Elite da qual eu era muito freguês, uma das melhores de São Paulo. Ela não servia refeições grandes, mas pedi que ela saísse de seus gonzos e nos servisse um jantar ali.
O dono da instalação era um velho senhor italiano; ele decidiria se minha jogada política daria certo, porque esta dependia de ele ceder o local ou não. Ele achou muito propagandístico e concedeu de muito bom grado.
Realizou-se, então, numa confeitaria pequena, um jantar que encheu o recinto2. O encontro foi publicado amplamente nos jornais, com fotografias minhas discursando; também anunciaram o dia e a hora de minha partida da Estação do Norte rumo ao Rio de Janeiro.
Fui o único deputado a ser objeto de um banquete de congregados marianos antes de embarcar. Estava claro que a força católica era enorme, e eu queria mostrar que, apesar de jovem, estava, entretanto, bem plantado no dorso do elefante, como quem diz: “Sou amável e bem educado. Mas não mexam, porque sai encrenca!”
É preciso dizer que eu era muito firme, mas sempre muito atencioso com todos. Por exemplo, haviam alugado uma secretaria muito bem montada para a Chapa Única, na Avenida Rio Branco, naquele tempo, a melhor avenida do Rio de Janeiro. Às vezes entravam tantos deputados, políticos e jornalistas na sala, que faltavam cadeiras. Eu, sempre o mais moço, de imediato me levantava e cedia a minha:
— Assente-se o senhor, faça o favor…
— Não senhor, tenha a bondade…
— Então ficamos os dois de pé, o senhor fica e eu também.
Quer dizer, não faltava cortesia e amabilidade.
Lisuras, reconhecimento e gentilezas na partida para o Rio
Por fim chegou o dia da minha partida. Fui à Estação do Norte com o coração apertado: “Imagine se vão cinco gatos pingados! Mas também que beleza se o deputado católico mais votado enchesse a estação sozinho como todos os demais juntos encheram.”
Com efeito, quando cheguei à Estação, estava cheia de gente que vivava. Não havia vazão a brigas e a nada que ofendesse alguém. Enquanto o trem se afastava, eu tirava o chapéu acenando desde a entradinha, agradecendo a todos.
Feita a despedida, entrei e senti uma primeira baforada a solicitações que eu sentiria quando estivesse no Rio de Janeiro. Minha família já estava dentro, fiquei com meu pai na mesma cabine, minha mãe e minha irmã noutra. As cabines se intercomunicavam e conversávamos, quando alguém bateu à porta. Eu abri, era o chefe do trem, que tirou o seu boné respeitoso para comigo, com os meus vinte e quatro anos, e perguntou:
— O senhor é o representante?
Eu, o deputado que viajava no trem, disse:
— Sou sim!
— Se o senhor der licença, lhe pediria o favor de exibir os bilhetes, porque os estou marcando.
Aquelas fórmulas e lisuras me serviram de amostra do uso de gentilezas, de reverências, de manifestações de respeito que se abriam diante de mim, na carreira de deputado; era fácil ler na fisionomia do chefe do trem o pasmo e o sorriso ligeiramente bondoso, mas diante de um rapaz tão jovem a que se devia uma tal deferência.
Dei os bilhetes, ele picotou e me devolveu com outra mesura. Fechei a porta e pensei: “É outra vida que começa, não mais a do mero particular, mas a da autoridade pública, diplomada, cercada de reputação, nimbada de glória para aquela idade e que ia para o Rio de Janeiro, a capital esplendorosa, para ali começar uma carreira que tudo fazia entender que seria ascendente e brilhante.”
Um paradoxo: o problema do prestígio
Até então a minha linha, enquanto católico militante, tinha sido a da renúncia e a da rejeição a tudo quanto pudesse envaidecer, glorificar e representar carreira.
E, desde logo, veio a preocupação com minha vida espiritual: “Plinio, uma dura batalha o espera! Ou você se proíbe implacavelmente de pensar nisso, quando cenas semelhantes se repetirem, ou, se fizer concessão a um pouco desse aroma do prestígio, você rolará ladeira abaixo e cairá num precipício. Ou está sempre disposto a desistir disso a qualquer instante se sua consciência o exigir, ou você se venderá. Para você se vender era melhor não ter nascido!”
D. Chautard, em seu livro, explicava que o apostolado desenvolvido pelo homem desejoso de prestígio é vão. Ele poderá ter talentos naturais minguados, médios ou abundantes. Pouco importa! Deus o aborrece! A graça não se transmite através das ações ou das palavras dele, e é infértil como a figueira maldita do Evangelho.
De maneira que era preciso eu fazer uma renúncia. Porque, antes de entrar no Movimento Católico, tinha umedecido meus lábios na taça do prestígio e a tinha quebrado, derramando no chão o líquido. Agora, não me era mais dada uma taça, mas uma garrafa e com ela uma taça de muito melhor cristal, e o mesmo líquido me voltava aos lábios. Era preciso rejeitá-lo com um empenho muito mais intransigente e vigoroso. Concessão? Nenhuma, para nada, de nenhum jeito! Ou isso ou nada!
Tanto mais quanto tinha o seguinte: consentir no gosto do prestígio não era pecado mortal e, portanto, não perderia o estado de graça, ficando na inimizade com Deus. Era um pecado venial, que, com água benta e um ato de contrição, estaria perdoado. Mas, sendo venial, era uma inclinação mortal e tratava-se de evitá-la.
O cálculo errado por excelência seria: “Não, isto é muito puxado; é mais prudente pedir demissão do cargo de deputado.” Seria errado! Não é não! “Seja homem, corra o risco, dê um pontapé no risco! Meta-lhe a alabarda em cima e não fuja do lugar para onde as circunstâncias providenciais o conduzam!”
Começava outro capítulo da história. Naquela noite em que me deitei na cama do trem, muitos devem ter pensado: “Lá vai o deputado!” Eu dizia: “Aqui vai um homem, dormindo e chacoalhando, abraçado à sua nova cruz, a qual consiste em vencer toda forma de desejo de prestígio, e, ao mesmo tempo – isso é o mais paradoxal! – batalhando para ter prestígio, por ser um instrumento de apostolado. Aqui vai um batalhador que começa na arena a luta consigo mesmo, mais feroz do que as anteriores.”
A tentação de uma vida deliciosa e tranquila
De outro lado, eu tinha uma ideia de que se eu me perpetuasse como deputado, depois me tornaria senador e ficaria, dentro de pouco tempo, um homem ilustre, como em moço já o era.
Eu pensava: “Se fico nessa engrenagem de coisas, sem grande dificuldade – porque os votos católicos os bispos vão dando e vou me reelegendo –, faço de vez em quando algum discurso, e o resto do tempo fico no Rio de Janeiro ou em São Paulo, sem fazer nada. Faço apostolado, porque pelo simples fato de eu ser católico já coloca uma espécie de brilho a favor dessa posição. De resto, já fiz muito pela Causa, posso me estender e não fazer mais nada.”
E aí entrava um convite positivo do demônio. “Faça isto: siga por aí, porque seu combate já está feito, você fez já pela Contra-Revolução o que ninguém faria. Descanse e leve essa vida gostosa, brilhante, que se abre diante de você, deliciosa e sossegada. Não a vida opaca, pedante, do Larguinho do Coração de Jesus.”
A isso também tive que resistir! E assim em várias ocasiões de minha vida se apresentaram fórmulas que eram, no fundo, a vitória da indolência dentro do brilho ou de uma opacidade tranquila de um zé-ninguém, que ninguém sabe quem é, mas que vive também sem se incomodar com ninguém.
Uma nova situação se configura
Chegando ao Rio de Janeiro, desço do trem e a primeira pessoa que encontro é o Tristão de Ataíde, vestido com modéstia, o que, por assim dizer, realçava a figura dele; alguns, à força de se vestirem bem, dão uma certa impressão de livro bem encadernado. Ele vestia-se sempre muito limpo, mas rudemente. Ele tinha um tônus, uma gentileza, um charme pessoal, uma atração e um modo de fazer as coisas que o tornavam agradabilíssimo. Eu, que não sou homem de prestar atenção em certos pormenores, cem vezes prestei atenção nas mãos do Tristão: bonitas, bem feitas, de grand-seigneur e que se movimentavam…
Eu ia descer antes para ajudar mamãe, mas quando vi que ele estava na plataforma da estação, me pus atrás para auxiliá-la e ele tomou-a pelo braço. Mamãe se apoiou no braço dele e foram andando no meio daquele movimento da estação. Ele era bem mais alto que ela, e inclinava-se um pouco para ouvi-la falar, dava uma resposta ereto, depois se inclinava de novo. Mamãe e ele – de idades muito diferentes – formavam um conjunto tão distinto e ordenado, que eu tinha a impressão do prestígio caminhando diante de mim…
Fomos ao Hotel Glória, no Outeiro da Glória, magnífico, luxuoso; encontrava-se cheio de gente da sociedade de São Paulo. Ele ficava em direção à bonita praia do Flamengo, que não se assemelhava em nada às praias imorais de hoje. Era lindíssima. Havia dois hotéis do Rio que rivalizavam entre si: o Hotel Glória e o Hotel Copacabana.
Ora, eu queria dar à presença de minha mãe o caráter de uma homenagem minha a ela. Queria proporcionar-lhe uma estadia a mais confortável possível, tanto mais que só podia ser curta, porque a mãe dela estava muitíssimo mal, morreu dois meses depois3, e ela era uma filha extremosíssima.
Então eu arranjei um dos melhores quartos do hotel, enorme, com janelas de onde ela podia ver bem o panorama. Naquele tempo, a água do mar chegava quase até o paredão do hotel. As noites eram muito bonitas, e ela se enlevava muito com coisas desse gênero.
Já estava tudo reservado, registramo-nos; fomos primeiro ao quarto dela e depois cada qual foi para o seu; descansamos um pouquinho e chegou a hora do almoço. Estivemos numa das salas de jantar que havia; eram duas ou três bem grandes, com estilo neoclássico, todas brancas, com colunas proporcionadas até o teto, mesas esplêndidas, tudo muito bem conectado, garçons de primeira ordem, orquestra tocando, porque não se usavam rádios naquele tempo; público excelente, de primeira qualidade. Logo que nos sentamos, veio o maître, em seguida os garçons:
— O senhor é o deputado?
— Sou sim!
— Ah, pois não! Por favor, aqui está o menu…
O aroma do prestígio mais uma vez subia. E tive toda a ideia da situação que, sob algum aspecto, me esperava.
Filial preocupação em acomodar Dona Lucilia
No dia da inauguração da Constituinte, fomos de automóvel, os quatro juntos, ao Palácio Tiradentes, Sede do Congresso Nacional. Para os gostos do tempo não era um palácio bonito, mas era luxuoso, com ar imponente.
Entramos na Câmara, minha mãe, meu pai, minha irmã e eu; já senti a primeira diferença: imprensa, rádio, fotógrafos… Estavam à minha espera, porque era o mais votado e o mais jovem, e queriam saber o que eu faria, o que diria, fazendo o possível para me prestigiar. Todos os deputados curiosos de verem o novato chegar. Entrei sorrindo e, ao mesmo tempo, fazendo o possível para nunca degustar o prestígio que obtinha.
Havia duas entradas diferentes: uma para os deputados e outra para as famílias, que ficavam nas tribunas de honra, junto com o Corpo Diplomático, os Ministros de Estado; e, para outras pessoas gradas, nos camarotes em cima.
Fui até lá a fim de instalar bem minha mãe. Minha irmã e meu pai, os dois eram mais saudáveis e se arranjariam. Minha preocupação era um lugar adequado para minha mãe assistir à cerimônia, porque era mais doente, tinha uns incômodos pelo reumatismo e certa dificuldade em permanecer muito tempo de pé; precisava de um lugar bem confortável. Eu não queria de nenhum modo que ela se retirasse durante o evento.
Foi um pouco difícil conseguir cadeiras, a galeria estava lotada. Ora, começaram a tocar as campainhas marcando o início da sessão inaugural da Constituinte. Escarafunchei um lugar e, afinal, obtive a promessa de algum político para ajudar. Tive de deixá-la e ir correndo para a bancada dos deputados.
Lembro-me bem de que quando cheguei embaixo, primeiro entreguei o meu diploma para provar que eu era deputado eleito. Era uma espécie de pergaminho, escrito com caracteres bonitos, uma fórmula solene, com selo de lacre. Hoje é um papelucho qualquer, com um carimbo. Todos os deputados cumpriam essa formalidade e eu devia cumpri-la também. Levei algum tempinho na fila e, terminada esta, acompanharam-me até meu lugar. Com surpresa para mim, na primeira fileira, ao lado direito do presidente, estavam os deputados paulistas, dispostos em duas filas. Era, portanto, posição de máxima importância e visibilidade.
Logo me preocupei se tinham arranjado um lugar conveniente para minha mãe; talvez tivesse havido uma dificuldade, ela não estivesse tão bem instalada quanto eu desejaria. Nessas ocasiões, há aventureiros e gente de toda ordem que, de vez em quando, força uma pessoa a entregar o lugar, e ela não era de brigas. Queria ver se ela estava sentada, porque, conforme fosse, eu subiria lá e me desdobraria com toda a espécie de cuidados e preocupações.
Eram três tribunas e custei um pouco para encontrá-la. Pus-me de costas para o gabinete da presidência, procurando-a na tribuna da frente. Devido à distância não enxergava bem; saí do meu lugar, fui andando pelo corredor central dos bancos, no sulco que dividia as cadeiras em dois blocos, buscando-a com olhar. Quando cheguei perto, eu a vi bem e percebi que estava rindo, contentíssima! Muito afetuosamente, ela tomou um lencinho e me fez um sinal, querendo dizer que não me incomodasse, porque estava bem instalada. Ao lado dela encontrava-se minha irmã, que fazia o mesmo gesto. Eu as saudei e voltei para minha cadeira.
Na imponente bancada paulista
Havia outras bancadas laterais e, no extremo direito, um tanto embaixo, vi o que eu nunca esperava: autoridades dos outros Estados trajando uma roupa comum de passeio, de chapéu mole de feltro. A bancada do Rio de Janeiro, composta de celebridades do Brasil, grandes médicos, técnicos, homens muito bem educados, finos, todos trajando roupas comuns.
Os paulistas eram os únicos a comparecer todos de fraque e cartola, dando a impressão mais ou menos de pavões num galinheiro, o que conferia certa importância, mas não despertava muita simpatia. Sabemos como é a vida. Isto de um aparecer de fraque e outros estarem de paletó, a roupa comum, o de fraque se impõe mais; mas na hora da simpatia, é discutível…
E eu compreendi tudo quanto isso trazia consigo: prestígio, mas também certa ponta de ressentimento: “O que eles têm de mais requintado do que nós, para virem todos de fraque e cartola?” Muitos dos outros nem tinham dinheiro para comprar, e creio que, em alguns estados, nem se usava tal traje de gala.
Por cima do fraque, costumavam pôr condecorações. Eu não tinha ne nhuma, nenhum governo me havia condecorado. Então, não tive a menor dúvida, peguei o distintivo de Congregado Mariano e o pus ali, sem pedir licença para ninguém nem consultar. É um fato consumado, vou fazer assim, e não permito que mudem!
Cerimônia pomposa, mas o vazio da glória alheia ao ideal
Dada a importância da Constituinte, a cerimônia de inauguração se revestiu de grande esplendor. A sala interna das sessões do Palácio Tiradentes onde se realizariam todas as sessões estava muito bem ornamentada, tudo bem arranjado, florido, imersa numa espécie de penumbra, continuamente percorrida por holofotes em lugares diversos, assim focalizando este e aquele, porque estavam cinematografando tudo.
Havia uma mesa de presidência enorme, na qual estava o Dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, quem presidiria a sessão. Era um deputado descendente do Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva. Um homem pitoresquíssimo: mineiro, esperto, da boa escola. E afinal apareceu o Presidente da República, de quem eu tinha horror, o Getúlio das minhas execrações.
Quando ele chegou, todos nos levantamos, era o Chefe de Estado. Ele fez um discursinho técnico com a mão apoiada no colete, numa voz incolor e olhando para tudo como quem não dava importância ao que estava sendo feito. As luzes se acenderam, depois ele se retirou.
O primeiro deputado a ser chamado fui eu… Oh! A Constituinte quase veio abaixo. Subi aonde estava o Dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Ele recebeu-me, afagou minhas mãos como as de um nenê. Tirei assim que pude minhas mãos de dentro das dele, desci e retornei ao meu assento. Cessaram as palmas.
Eu pensava: “Todos os moços do Brasil me invejam e desejariam estar em meu lugar, quereriam estar dentro da minha pele. Porém, isto para mim é vazio, sem graça nem importância. Eu quereria outra coisa!” Via que aquilo não era nada, mas não tinha uma alma frustrada, não sentia em mim o peso de viver, o problema da escolha de um caminho. Por quê? Porque eu estava com meu caminho escolhido e dava graças a Deus por ter um ideal. Qual era ele? Nesse ano de 1933 eu via o mundo decair cada vez mais e previa para breve uma grande guerra mundial, a qual, de fato, se deu seis anos depois. Tinha certeza de que o comunismo se estenderia por toda a terra, e então pensava reunir os poucos homens que pudesse para lutar a fim de que o mundo não caísse nessa catástrofe.
Estava combinado que, terminada a sessão, minha mãe e minha irmã voltariam com meu pai para o hotel, tomariam um chá em algum lugar, enquanto eu iria para outros afazeres; estando elas confiadas a meu pai, eu não tinha a menor preocupação.
Transcendente tabela de valores
À noite, cheguei ao hotel para jantar. Mamãe, que sofria muito do fígado, tinha deixado aviso na recepção de que não jantaria na sala de jantar embaixo, porque estava um pouco indisposta. Em geral, eram pequenas indisposições, não me preocupei. Fui ao meu quarto, tirei o fraque com o qual estava e troquei de roupa, colocando uma mais escura, adequada para o jantar. Mandamos subir a refeição para ela, que jantou sozinha.
Terminado o jantar, minha irmã e meu pai ficaram no salão conversando com conhecidos, e eu subi até o quarto de minha mãe, para ver como ela estava. Cheguei e encontrei-a de chambre, na posição em que eu queria que ela estivesse: numa cadeira muito cômoda que havia no quarto e que ela tinha mandado o copeiro deixar bem em frente ao tal janelão.
O céu estava límpido, a Lua dourada – há ocasiões em que, no Rio, a Lua fica assim – que se refletia sobre o mar do Flamengo de um modo lindíssimo. Havia umas palmeiras colocadas como que de propósito e que aumentavam a beleza do panorama. Mamãe estava sentada olhando para aquilo muito atentamente, absorta no cenário. Ela era muito sensível a bonitos panoramas e coisas do gênero.
Não havia cadeira perto dela, então eu me ajoelhei junto a ela que, naquela época, já estava com problema de audição; agradei-a e comecei a conversar um pouquinho, perguntei se estava contente, gostando da viagem; comentamos um pouco a Lua, porque estava dos luares mais bonitos que há, era uma noite linda!
E, em certo momento, fiz algum gracejo ligeiro, ao que ela me disse, como gracejando também:
— Meu filho, você está gracejando comigo, mas deixemos o gracejo e falemos de uma coisa séria: você não tem ideia do contentamento que deu à sua mãe hoje. Você me fez uma que eu não me esquecerei até a hora da morte.
Eu fiquei um pouco surpreso. Perguntei:
— Mas por quê, meu bem?
— Eu estou contemplando o panorama, mas, de fato, estou pensando em você e lembrando-me de sua fisionomia: no momento que era tão absorvente para você estrear sua vida política, situação que lhe impunha deitar a atenção em tudo quanto se estava passando ao seu redor, você, entretanto, se preocupou sobremaneira em arranjar-me um lugar tão bom; e ainda, lá debaixo lembrar-se de sua mãe, voltando as costas para a Constituinte, deixando seu lugar à minha procura, para saber se eu estava de fato bem instalada. Eu tive uma tal impressão de desvelo e de afeto com os quais me procurava, que me valeu mais do que a alegria de vê-lo deputado. Nunca me esquecerei disso! Isso é uma coisa que me fez tanto bem, que até agora eu vejo sua fisionomia me dizendo adeus, e o seu olhar era a mesma coisa que um beijo.
Eu fiquei meio pasmo, porque eu estava disposto a fazer tanto mais… Era um pequeno gesto banal e comum, que nem me ocorreu de achá-lo extraordinário. No entanto, ela estava encantada. Eu pensei em dizer: “Mamãe, perto do bem que eu lhe quero, é tão pequena coisa que é uma bagatela, uma ninharia. A senhora pense nisto com muito mais profundidade, aí a senhora encontrará a fórmula de benquerença.” Mas eu não disse o que pensei, as palavras me faltaram. Eu a agradei. Depois desci para falar um pouco com as pessoas.
Eu não posso me esquecer desse pequeno dito dela, que marca muito a atenção que ela tinha, mas também marca muito a tabela de valores das coisas, porque este é o ânimo materno: ela resolveu valorizar uma coisinha pequena.
Durante todo esse tempo, durante a conversa, o problema “República” nem passou pela mente dela. Ela só fixou o olhar no lado religioso da missão, com a qual ela estava ultra, arqui de acordo e mais nada. Para grande número de senhoras, o mais importante seria que o filho fosse deputado. Carinho ou não carinho… pondo carinho é melhor, mas não pondo também iria bem, desde que fosse um deputado muito votado, com muito prestígio. Isso é que seria o importante para contar junto às amigas e orgulhar-se. Mas a tabela de valores dela era inteiramente diferente.
Anos depois, eu estava em casa e cruzamo-nos num corredor. Estávamos os dois a sós em casa. Ela parou e me fez um agrado, algo assim. Depois me olhou e, tendo-me nos braços, disse: “Meu filho, eu só tenho você no mundo, mas a você eu tenho inteiro!”
Aí foi a minha vez de olhar para ela, como ela olhara para mim.
1) No dia 8 de novembro de 1933, partiam os deputados da Chapa Única para a inauguração da Assembleia Constituinte no Rio de Janeiro.
2) Realizado no dia 10 de novembro de 1933.
3) A 5 de janeiro de 1934, falece Dona Gabriela Ribeiro dos Santos, mãe de Dona Lucilia.