Se precoce havia sido a eleição de Dr. Plinio como deputado, com um excepcional número de votos, prematuro também haveria de ser o vagalhão das provações e contradições com as quais a Providência haveria de temperar a sua alma. Embora coartado na ação, Dr. Plinio foi notável na dedicação.
Quando fui ao Rio de Janeiro para exercer o meu mandato, parti despreocupado.
Eu sabia que tinha a dura tarefa diante de mim de representar a Liga Eleitoral Católica de São Paulo nos debates da Constituinte, onde deveria obter resultados muito importantes para a Religião. Eu tinha passado algum tempo de estudo, a fim de me preparar para os discursos e para as atitudes que deveria tomar.
Apesar de ser muito novo, caminhava para os debates com tranquilidade, porque percebia que a minha eleição, tão precoce em relação à idade que se costuma ser eleito, representava um caminho da Provi dência, e eu haveria de me sair bem daquilo que Ela queria de mim. Eu metia o peito por ter essa certeza e confiava, porque Deus não traça uma via para o homem sem apoiá-lo. Ele não abandona ninguém e, portanto, eu tinha certeza de que, ainda que passasse uns quartos de hora amargos, o seriam apenas na superfície, porque, no fundo, meu coração confiava.
Com efeito, quando cheguei ao Rio de Janeiro, as más notícias começaram a se acumular.
Sem bancada católica, sem líder, sem orador…
Próximo ao Palácio Tiradentes, havia um prédio que, não sei como, ficou propriedade da Cúria do Rio naquela época. Dois ou três andares tinham sido destinados pelo Cardeal D. Leme para o funcionamento de uma organização chamada Coligação Católica, da qual o Alceu de Amoroso Lima era o presidente. Ele era o líder católico máximo do Brasil, homem de confiança do Cardeal Leme.
Todos os deputados da Liga Eleitoral Católica deveríamos comparecer a este edifício para a primeira seção comum. Fui lá, sentei-me entre os outros deputados eleitos pela Liga dos vários Estados. Dentre todos, certamente o mais conhecido como católico era eu. Por outro lado, dentre todos, era o mais considerado como bom orador. Portanto, o natural seria me designarem para líder da bancada católica.
Ora, o Tristão tomou a presidência e comunicou as diretrizes de D. Leme. Primeiramente, não haveria uma bancada católica, cada qual deveria estar disperso nas bancadas dos respectivos Estados; não haveria líder dentre os deputados católicos na Constituinte, mas seria ele, por fora da Câmara, que daria a conhecer a quem quisesse, a palavra de ordem de D. Leme para os católicos; para isso se deveria comparecer todos os dias à reunião da Coligação Católica.
Isso dava a entender que não se podia sequer ter contato com D. Leme, uma vez que havia um representante dele ali. No fundo, era o Tristão de Ataíde que tomava as rédeas do assunto. Foi a primeira coisa que me estranhou.
Desconcertante e funesta ordem: manter o silêncio
O Tristão prosseguiu: “O Cardeal Leme manifesta o firme desejo de que vocês não façam nenhum discurso católico, porque, por detrás dos bastidores, já está tudo combinado com o Presidente da República, o Getúlio Vargas, e ele assegura que, se não houver discursos e debates, ele mandará todos aprovarem os pontos que a Liga Eleitoral Católica reivindica que sejam inscritos na Constituição. Como já está tudo combinado, e é certo que nós vamos ganhar, não há razão para discursos, os quais só poderão prestar-se a discussões inúteis.
“Se desejarem fazer discursos para provar que possuem dons oratórios, é muito simples, falem sobre outros temas, como política exterior, finanças ou agricultura, mas sobre as reivindicações não digam uma palavra! A colaboração que D. Leme lhes pede é simples: fiquem quietos! Discurso será apenas para os deputados ambiciosos, que queiram se fazer reeleger. Mantenham silêncio. O Cardeal espera isso da dedicação dos senhores.”
Como viram o poder colossal da Igreja, trataram de se comprometer com o que ela queria, contanto que não se pedisse mais do que as reivindicações mínimas. E, de fato, acabou saindo tudo como eles combinaram.
Era um choque, porque toda a nossa autonomia desaparecia. Não havia remédio, o Cardeal Arcebispo D. Leme era quem mandava, a nós competia obedecer. Eu fiquei desconcertado…
Por fim, continuou o Tristão: “Aqui vocês poderão fazer uso da palavra quanto queiram, mas entre essas quatro paredes, sem jornal nem nada. D. Leme depois se entende com a maioria da Câmara, que é governista, e passará o que for necessário.”
Um guerreiro tolhido em sua ação
Eu era obrigado a comparecer todos os dias à reunião da Coligação Católica presidida pelo Tristão de Ataíde, perder ali umas duas horas ouvindo inutilidades e receber por fim as diretrizes que vinham de D. Leme. Depois ia ao hotel para jantar. Era um tormento!
Eu julgava que a Providência quisesse que eu aproveitasse a minha facilidade para falar em público, na Assembleia Constituinte. Nós estávamos eleitos para isso! Nossa eleição significava isso! Ora, nessas condições, não havia mais discussões, não havia debates em nome da Causa Católica. Era fazer o papel de burro diante do povo. Uma coisa horrível!
Eu tinha me equipado para defender a Causa Católica. Os discursos com que eu sonhava, as invectivas contra os adversários, os brados, as batalhas… Nada!
A não fazer discursos sobre isso, fazer discursos sobre o quê? As fronteiras entre São Paulo e Paraná? Entre São Paulo e Minas? O que interessa isso? A um deputado católico pouco importa. A respeito dos privilégios das Polícias Militares em comparação com o Exército? Não são temas que falam às nossas almas de católicos. Para isso há especialistas que discursam sobre o tema.
Em quase todos os Estados foram eleitos deputados católicos, e bons católicos. Se os bispos tivessem me consultado, eu proporia: “Aproveitem a ocasião! Peguem esse conjunto de deputados e vamos meter o peito para frente! Vamos fazer coisas que nunca se imaginou! Por exemplo: uma visita coletiva dos membros da Constituinte ao Cristo Redentor e, no alto do Corcovado, oferecer a Ele a Constituição, uma vez promulgada. Não deixemos escapar uma ocasião incomparável como esta!”
Entre duas situações inconvenientes
Ora, a situação era adversa. Pelas diretrizes dadas por D. Leme, eu me dava conta de que eu não podia falar sobre os temas que reuniam o eleitorado que me tinha escolhido. E tomei aquilo como uma porretada na cabeça… Era uma proibição a nos movermos. Resultado: minha presença na Constituinte ficou meio inútil, e o interesse de toda a nossa ação baixou muito.
E me dei conta do seguinte: quando se trata de fazer uma Constituinte e organizar um país, entram evidentemente assuntos que interessam aos católicos, mas uma também porção de outros que não interessam. Por exemplo, como organizar o Poder Judiciário? Os Estados devem ter um Tribunal de Justiça, com juízes próprios, nomeados pelo governador do Estado, ou toda a Justiça deve estar na mão da União Federal? Como organizar as Forças Armadas? Como dispor sobre as finanças? É melhor que a Constituição favoreça a feitura de estradas de rodagem ou que a Constituição – de modo indireto, porque não é matéria constitucional – favoreça o aproveitamento das vias fluviais como meio de comunicação interna no Brasil?
Eu compreendo que um católico seja a favor das rodovias e outro seja a favor das vias fluviais, porque é um ponto técnico e econômico, nada tem a ver com a Doutrina Católica. É legítimo que os católicos tenham opiniões diferentes, porque a Igreja não tem pronunciamento sobre tais assuntos.
Eu, toda a vida, tive uma predileção enorme pelas vias fluviais. Mas, se eu fizesse, por exemplo, um discurso a favor disso, eu perderia na próxima eleição o voto dos que tinham votado por mim, mas que eram a favor das rodovias. Diriam: “Nunca pensei que esse homem fosse se meter nisso!”
Portanto, eu diminuiria minha posição falando, porque dividiria; e diminuía a minha posição não falando, porque diriam que eu não era um deputado eficaz, porque esperavam de mim que eu discursasse.
O público de São Paulo se dividia em dois a meu respeito: muitos tinham me ouvido falar em público e julgavam que eu falava razoavelmente, o que lhes facilitou a acreditar que um rapazinho de 24 anos podia ser um deputado corajoso, com argumentos. No entanto, havia uma boa proporção do público paulista que nunca me ouvira falar – é preciso notar que eu ainda não era professor universitário, comecei a lecionar só depois do mandato – e julgavam uma temeridade de D. Duarte ter mandado um rapaz dessa idade fazer uso da palavra em ambientes, que naquele tempo, eram tão cultivados. Estes estavam atentos para ver se eu faria e como faria uso da palavra.
A situação criava, em concreto para mim, uma dificuldade insolúvel. Eu tinha que justificar esta coisa incompreensível: eu, eleito para fazer passar as emendas católicas, não podia fazer discurso sobre assuntos católicos! Como ficava o eleitorado que se unia em torno de mim por uma razão religiosa? Eu não podia contar em público que eu estava proibido por D. Leme de falar. Isso teria sido tomado, aliás, a justo título, como uma traição, porque era uma confidência que ele nos fazia. E, portanto, eu não podia revelar, porque sairia a difamação por cima de D. Leme e me queimava com ele, e isso não podia acontecer.
Resultado: eu caminhava para um fracasso eleitoral forçoso, aquilo minava a minha reeleição, porque, pela natureza do meu eleitorado, era obrigado a discursar.
E percebi que a situação era muito difícil; eu tinha que escolher, das duas situações, a menos inconveniente. E aí os reveses começaram…
Orador gago, tímido e medroso?
Recebo a notícia de que em São Paulo estava começando a correr uma calúnia estranha, à maneira de boato organizado, dentro dos próprios meios católicos e fora deles, de que eu não estava fazendo discursos porque era muito jovem e tímido. Ora, contra mim podem se fazer muitas acusações, a de que eu sou tímido, não! Meu natural é ser muito desembaraçado, eu digo o que eu tenho que dizer logo. Talvez meu sangue nordestino ajude para isso.
E mais: diziam que eu não estava falando e quase não ia à tribuna, porque tinha medo de falar em público. Houve até quem afirmasse que eu era gago! Eu posso ter muitos outros defeitos, mas este não tenho! Quem fala comigo três minutos percebe que eu não sou gago, e nunca o fui em minha vida. Ainda que tivesse sido, isso não me diminuiria! Demóstenes foi gago e era um grande orador; Moisés era gago. Mas, enfim, eu não era.
Aí eu percebi bem a má-fé, porque eu tinha feito discursos em São Paulo a mais não poder. Eu tinha falado em público em quase todas as grandes igrejas, durante o período eleitoral. E falava abundantemente. Discursos de 45 minutos, uma hora, que pesaram muito para a minha eleição. Eu tinha falado em muitos lugares do interior até o limite do Estado do Rio, era muito conhecido como orador.
Como poderia circular que eu era gago e não era apto a fazer uso da palavra no parlamento? Era a maldade humana! O demônio mente e tem organizações que espalham a mentira dele para todos os lados. Acreditava quem tivesse vontade. Mas eu percebia que era um cerco que se fazia para eu não ser reeleito.
Foi a primeira vez que eu percebi haver um trabalho organizado, uma vindita contra mim, porque as pessoas que diziam isso eram, em geral, aquelas com simpatias pelo nazismo e pelo fascismo, que tinham entre si uma ligação política. E eu atacava tais partidos no Legionário.
Impossibilitado de romper o cerco fechado
Eu achei que era uma situação sem saída. Telefonei para o secretário de D. Leme, pedi uma audiência. D. Leme imediatamente mandou convidar-me para almoçar com ele naquele dia. Ele era um homem muito ocupado, mas bastava eu pedir uma audiência, ele me convidava.
Durante todo o tempo em que D. Leme viveu, foi muito amável comigo. O que precisava dizer a ele, eu dizia; e não falaria com ele a não ser o estritamente indispensável. Ele era muito gentil, mas estava entendido que eu só poderia ir lá num número limitado de vezes, senão me transformaria num comensal dele. Havia uns cento e cinquenta, duzentos deputados católicos. Se todos fossem conversar com ele sempre, ele estava perdido.
Depois do almoço, ele passava para um salão onde falávamos sozinhos o que eu precisasse tratar. Naquela ocasião, levei outros temas para tratar, para ver se encontrava oportunidade de entrar no assunto sobre não nos pronunciarmos no plenário. Mas senti que não havia meio, eram favas contadas. Resultado: eu não pude sair desse cerco, era um cerco fechado.
Eu começava a sentir algo de desapontamento, como se a Providência não fosse cumprir as perspectivas que Ela mesma tinha aberto diante de mim.
A única coisa que eu podia fazer era tomar atitude de quem não percebia nada. O meu grupo era ainda muito pequeno, de gente muito moça, que não tinha relações suficientes para fazer uma “contramáfia”, e, ademais, não estava em nosso sistema agir assim. O nosso modo de agir era publicar pelo jornal. Se não há o que publicar, não diga nada, aguente firme!
Escavando situações com destreza
Ora, eu senti que precisava arranjar algum pretexto, aproveitar algumas ocasiões que se me apresentassem para fazer discursos sobre temas que não desunissem o meu eleitorado, ou seja, que fosse matéria religiosa alheia às emendas da Liga Eleitoral Católica. Assim quebraria a “máfia” em São Paulo.
Por ocasião do centenário do Pe. José de Anchieta, jesuíta, fundador da cidade de São Paulo, eu procurei o presidente da Câmara e disse:
— Dr. Antônio Carlos…
E ele, sempre com uma ventarola se abanando, estendeu sua fisionomia de marfim para mim e disse:
— O que é, meu amigo?
— Eu queria ter um lugar no expediente para fazer um discurso sobre Anchieta.
— Ah, pois não! Está garantido!
Pegou-me pelas duas mãos e felicitou-me.
Passados dois ou três dias, falei sobre Anchieta e fui o orador oficial do centenário dele na Constituinte. Graças a Deus, o discurso foi muito bem acolhido, mas era apenas um discursinho de uns dez minutos, porque fazia parte da sessão da ordem do dia, e deveria ser rápido, o deputado deveria falar pouco. Era uma matéria totalmente alheia às leis que estavam sendo votadas.
Todos os jornais de São Paulo publicaram bastante e parece que impressionou bem, concorrendo para baixar um pouco as calúnias que, afinal, ainda corriam moderadamente.
Assim foram algumas ocasiões nas quais eu, a bem dizer, desencavei para conseguir falar. Fiz uns três ou quatro discursos na Constituinte, que eram de pouco remédio para o caso, para quem esperava uma atuação parlamentar brilhante de minha parte, sobretudo por achar que eu falava muito e falava bem…
Tonitruante aparte, forçoso recuo
Eu estava esperando uma outra oportunidade para fazer algo sensacional. Com efeito, essa ocasião se apresentou.
Havia na bancada paulista um deputado que era uma ovelha negra do rebanho – cada Estado tinha a sua –, chamado Zoroastro Gouveia, eleito fora de nossa bancada, por uma chapa minoritária comunista. Era um negregado, com o qual ninguém conversava nem cumprimentava, e que, de vez em quando, fazia discursos.
Ele era um homem sem fogo; já caminhava para os cinquenta anos. Era o oposto do que se poderia imaginar para um agitador de grande classe; era um minúsculo burguês, encantado de ser deputado.
Certa vez ele foi à tribuna e estava pronunciando um discurso muito cacete, longo, sem convicção, apenas para constar às bases que ele havia feito. Ninguém prestava atenção, e eu pensei: “Uns debates com deputados comunistas bem poderiam ser interessantes… Não seria matéria religiosa.”
Tomei um ar bonachão, sentado em minha cadeira próxima à dele, olhando para outros lados, como quem não prestava atenção, mas ouvindo o discurso para ver se eu fazia algum aparte.
Em determinado momento, ele fez uma afirmação que podia ser interpretada como um ataque à honra dos deputados católicos: disse que, enquanto católicos, não éramos bons patriotas, não tínhamos ideal de pátria, porque recebíamos as diretrizes de um governo estrangeiro, o Vaticano, obedecendo ao Papa e não ao Presidente da República.
Eu me levantei, dei um murro na mesa, intervim tonitruante:
— Eu protesto! E protesto com todo calor! Isto é uma calúnia! Vossa Excelência está intimado, prove o que está dizendo!
E passei uma respeitosa catilinária em termos tão indignados e inflamados, que ele tomou um susto, ficou pálido. Eu o desafiei, afirmando não haver dissociação entre a Religião e a pátria, e que eu tomava aquilo como uma injúria a mim, colega dele, a quem ele deveria respeito, bem como a todos os deputados católicos da Assembleia e a todo o povo brasileiro, cuja maioria era católica. Desmenti com base na própria história do Brasil, durante a qual a Igreja tinha sido sempre benfazeja.
Ele quis interromper-me, mas a minha voz, naturalmente alta, cobria a dele por completo. Eu bradei:
— Eu exijo em nome da Pátria!
— Não! Engana-se o ilustre Deputado Plinio Corrêa de Oliveira; eu não quis dizer bem isso. O senhor interpretou mal minhas palavras.
— Não, senhor, foi isso mesmo! Os anais taquigráficos desta casa devem registrar o fato.
Nesse momento, alguns deputados católicos se levantaram de seus lugares e foram para junto de mim, para dar solidariedade. O Zoroastro recuou, percebeu que não tinha o que dizer, não respondeu nada e se retirou espantado. Eu não queria promover um vexame contra ele e deixei a coisa morrer.
No dia seguinte, a imprensa deu uma notícia minúscula, porque estava sempre abafando tudo quanto eu fazia. E eu nunca soube qual foi o resultado desse episódio.
Apóstrofe único na Câmara dos Deputados
Eu saí da política, o Rio de Janeiro deixou de ser a capital, a Câmara dos Deputados, com todos os seus arquivos, foi transladada para Brasília.
Uns trinta anos depois, um belo dia, fui levar ao Dr. Ranieri Mazzilli1, Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, o livro Reforma Agrária Questão de Consciência2, junto com um abaixo-assinado de fazendeiros contrários à Reforma Agrária. Ele era paulista e, aliás, nos recebeu muito bem, convidou-nos para jantar em sua casa, o que não pudemos aceitar devido à pressa. Muito amavelmente nos pediu o favor de que levássemos à secretaria o material.
Fomos até lá, e o diretor, um velhote, em dado momento, olhou para mim e disse:
— O senhor já foi deputado, não?
— Fui sim.
— Vou lembrar-me de seu nome. O senhor não é…
O tempo havia transcorrido, eu tinha mudado muito. Mas ele se lembrou e disse:
— Plinio Corrêa de Oliveira?
— Sim, senhor, sou eu!
Ele afirmou:
— O senhor não está me reconhecendo, mas naquele tempo eu era funcionário na Câmara dos Deputados, na Constituinte do Rio de Janeiro, quando o senhor teve a coragem de fazer aquela célebre interpelação ao deputado comunista Zoroastro Gouveia.
Eu dei risada e respondi:
— Ah, é? O senhor se lembra ainda daquilo?
— Oh! Mas me lembro muito bem! Foi um trovão na Câmara! Apóstrofe como aquele, eu ainda não vi na Câmara dos Deputados. Até hoje, os que assistimos a essa cena nos lembramos dela!
Integridade e firmeza à margem da dissolução
Por detrás de certas dificuldades que eu tinha com os deputados, havia uma que era central: a minha integridade. O Rio de Janeiro era considerado naquele tempo quase exclusivamente um lugar de prazer, de recordações históricas, de turismo e de governo. Era uma cidade para onde afluíam duas categorias de brasileiros em grande quantidade: os paulistas ricos e os ricaços de outros Estados, e os políticos de toda parte, que iam fazer carreira política.
Não havia ainda as indústrias nem o comércio atuais. O Rio era um porto importante onde se realizava alguma exportação e importação, mas que pouco interferia aos que vinham de fora, para os quais estavam reservados os hotéis Palace, Copacabana e Glória, incluída toda a vida de prazeres, os lugares de diversão noturnos. Ora, acontecia que, quando um político era ricaço, mais levava a vida de prazer do que de política.
E eu notava que os meus colegas da tradicional bancada paulista da Câmara dos Deputados, em sua maioria, se esparramavam por esses ambientes. E a incógnita era: “O Plinio, deputado católico, entretanto tão moço, o que fará? Ele não vai se meter nas boates, nos lugares de diversão escusos e abandonar a vida de congregado mariano? Ou, pelo contrário, ele romperá com o hábito comum de todo deputado e se porá numa vida ‘monacal’?” E eu tinha escolhido a vida “monacal”.
Eu me lembro de que, no centro da cidade, em frente à galeria Cruzeiro, havia um foco de concentração de deputados ricos, muitos dos quais paulistas: o bar. Um lugar de piadas, brincadeiras, promiscuidades, de onde depois saíam para as diversões.
Certa vez precisei procurar um deputado que se encontrava num bar para resolver um assunto urgente da Causa Católica. Como não era um lugar imoral – era uma antecâmara da imoralidade –, dirigi-me até lá. Quando cheguei ao hall do hotel que dava para o bar, havia personagens conhecidos que me encontraram:
— Oh, Plinio! Como vai você?
Percebi que eles julgavam que eu entraria ali, e logo respondi:
— Estou procurando Fulano. Ele está aí?
— Está no bar, venha cá, vou mostrar onde é.
Um deles me conduziu, mas não entrei. Chamei-o, conversei rápido com ele e saí.
Percebi em alguns a cara aborrecida e emburrada: “Esse homem não adere…” Era a diferença que marcava muito.
Cordial amizade entre componentes da Constituinte
Com o mal é preciso ter uma intransigência absoluta! Com o que não é mal, é preciso ter várias formas de condescendências, de gentilezas, de modos de ser.
Estando minhas relações com a bancada paulista muito boas, restava estabelecer relações com as outras bancadas, para conversar com os católicos sobre o Movimento Mariano de São Paulo, favorecer a causa com líderes católicos de outros Estados e, desta maneira, criar uma certa influência.
Meti-me então no meio deles, comecei a cumprimentá-los, a ir ao café, conversávamos muito. Relacionei-me bastante com eles na Constituinte.
Meus queridos conterrâneos paulistas eram muito “fechadões”, de trato cerimonioso. Eles eram os mais ricos, os mais bem vestidos dentro da Assembleia; ocupavam as duas primeiras fileiras à direita do presidente, enquanto os outros eram mais alegres, bonachões. Agradavam-me pessoas cerimoniosas, por natureza o sou, mas embora os de outros Estados fossem mais ou menos cerimoniosos, ou mais ou menos desconfiados, fiz com eles uma amizade cordial.
Os meus amigos cariocas eram finos, educados, mas muito alegres, brincalhões, não gostavam muito de cerimônia. Ao tratar com eles, eu sentia um certo ranger, porque não gosto que se brinque comigo e usem de intimidades.
Os pernambucanos eram, a seu modo, dados ao cerimonioso, muito inteligentes, e logo me procuraram para perguntar se eu sabia ser parente do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, que assinou a lei de libertação dos escravos no tempo do Império. Evidentemente sabia, ele era meu tio-avô, tio de meu pai.
Peculiaridades do Brasil em cada bancada
Menos cerimoniosos, embora distintos, eram os baianos. Tinham um modo de ser diferente, com o qual tive contato num pequeno incidente.
A Assembleia oferecia uma confortável instalação, cada deputado tinha sua escrivaninha e uma poltrona de couro muito boa e giratória, de maneira a poder voltar-se para trás a fim de conversar com os demais.
Por um movimento natural e distraído, eu às vezes estendia o braço e apoiava a mão na mesa de um dos deputados de trás. Em certa ocasião, enquanto assistíamos àquela sensaboria toda, creio que o deputado precisou levantar a tampa da mesa, ou algo do gênero; ele quis que eu desocupasse a sua mesa. De repente, sinto uma mão gorducha, mole e quente colocar-se sobre a minha.
Ele tinha percebido como eu era e estava se divertindo de antemão com o caso que estava criando, e percebi que seria uma verdadeira estupidez zangar-me.
Depois soube que era um deputado da bancada baiana. Aliás, encantadora! Ele dizia coisas, brincava, era o contrário daquela rigidez paulista. Mais do que mexer na carteira, ele queria prosear comigo: “Eu conheci muito o seu tio João Alfredo!” E começou a falar sobre pequenas banalidades com uma inteligência, com uma graça, e eu pensei: “Essa é a famosa Bahia! Numa palavra, é a Bahia do charme, a Bahia da graça!” Eu percebi que não podia bancar o paulista solene. Achei graça e comecei a conversar: “Oh, mas então, como vai o senhor?” Fingi que o conhecia e ficamos amicíssimos.
Muito diferentes eram os deputados gaúchos. Tom solene, quase todos com voz forte muito boa. Não sei se eles combinaram – porque eram políticos muito espertos –, ou se foi coincidência, mas sendo o Rio Grande do Sul um Estado importante como é, em vez de ocuparem as primeiras fileiras, eles figuravam no fundo da sala. E quando algum deles tinha um aparte a dar, tonitruava de lá: “Senhor Presidente, não posso estar de acordo…” Iam à frente e discursavam.
Os baianos também faziam discursos, mas amáveis e floridos. Os rio-grandenses faziam chamejantes, com desafios e de mãos levantadas. Era muito interessante e pitoresco.
Eu não poderia deixar de mencionar a mais silenciosa de todas as bancadas, a de Minas Gerais, falando baixinho, cochichando uns com os outros, uma bancada onde formei muito bons amigos. E assim, cada Estado do Brasil tinha suas peculiaridades, e acabei por me relacionar com a Constituinte inteira, o que era meu objetivo.
Figura hierática e sobressaliente
Mas a figura mais simbólica e mais representativa era a de um ex-governador de Minas Gerais: o deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada3, descendente de um dos três Andradas4.
Era um homem, naquele tempo, de uns 64 anos de idade. Fino, de muito boa família, subtil. Era esguio, tinha uma pele branquíssima, dando a impressão de ser esculpido em marfim, uma figura hierática. Cabelo de um branco prateado, cabeça mais bem pequena, lábios finos, os quais quase não movia para falar, e o riso malicioso. As orelhas pareciam folhas de papel, finíssimas, ligeiramente de abano, apesar de ser um homem muito inteligente, vivo, um político de primeira. Dizem que isso não caracteriza a inteligência, mas era uma contradição da natureza.
Os olhos eram escuros, bem grandes, escancarados, bonitos. Tinham um coruscar de quem analisava, num simples golpe de vista, os últimos pormenores daquilo que ele estava olhando. As sobrancelhas finas, brancas também! Ele, por assim dizer, conversava com os olhos: cumprimentava, sorria, fazia carranca. Ele fazia daqueles olhos toda espécie de uso, mas muito pitoresco e com muita educação. Um pouquinho irônico, se dirigia a todos com uma superioridade, uma elegância, uma nobreza de gestos, que me fizeram ver logo nele uma das poucas figuras verdadeiramente interessantes da Constituinte.
Ele tinha boas relações comigo e eu percebia que ele prestava muita atenção em mim. Certo domingo, fui à Missa, numa igreja próxima, quando o vejo numa espécie de tribuna. Em dado momento, percebi que ele me observava rezar e pensava consigo: “No que dará este ‘pintainho’ que está aí…?”
A família dele tinha parentes em São Paulo muito relacionados com a minha. Isto formava certo laço de simpatia. Aliás, tive um importante papel para libertá-lo de uma encrenca.
Presteza e agilidade nas encrencas da Constituinte
Um dia, bem tarde da noite, recebo um telefonema:
— Aqui fala o Antônio de Alcântara Machado5.
Era um escritor paulista muito conhecido, bem moço ainda, filho do líder Dr. Alcântara Machado.
— Meu pai manda pedir que venha aqui à casa o quanto antes. Há uma crise gravíssima ameaçando fechar a Constituinte.
Vesti-me depressa, tomei o automóvel. Cheguei lá e deparei-me com Dr. Alcântara sentado, com a fisionomia abatida. Ele contou-me que tinha havido uma discussão dele e do Dr. Antônio Carlos Andrada com o deputado por Pernambuco, chamado João Alberto Lins de Barros6, numa das salas de comissão da Constituinte. Este último, enquanto tenente do Exército, declarara que fecharia a Constituinte, com seus oficiais nordestinos. Dr. Alcântara me disse:
— É uma situação muito perigosa. Eu queria que o senhor visitasse o maior número possível de deputados não paulistas, para conseguir colocá-los do lado de nossa bancada e assim compensarmos a situação.
Dispus-me a fazer o serviço de muito boa vontade. Da própria casa do Dr. Alcântara, telefonei para alguns colegas avisando que iria visitá-los naquela noite. Executei toda a parte da tarefa que me tinha sido dada.
Na reunião do dia seguinte, vi o Dr. Antônio Carlos em verdadeiro apuro. Era dos dias quentes no Rio de Janeiro, ele era muito calorento e usava um leque para se abanar. Não conheci homem que fizesse uso desse objeto destinado às senhoras. Mas ele era tão varão e senhor de si, que nele não ficava ridículo. Ele se abanava frequente e freneticamente, sobretudo, quando estava nervoso.
Ele estava mais pálido e mais de marfim que de costume, e percorria com seus olhos grandes a assembleia, com a preocupação de, a qualquer momento, haver uma encrenca. E o Dr. João Alberto Lins de Barros ali presente.
Ora, o ambiente estava tranquilo, mostrando ter-se conseguido aplacar a situação. Não havia sinal algum de intervenção militar. Eu tinha feito parte do trabalho de bastidores para sossegar o João Alberto e fazê-lo compreender que, se ele interviesse, não teria o apoio da Câmara. Afinal a sessão terminou sem nenhum incidente. O Dr. Antônio Carlos se levantou trêmulo, desceu quase apoiado e sumiu pela Câmara.
Perguntei ao Dr. Alcântara Machado as novidades e ele me respondeu com muita amabilidade:
— Muito obrigado pelo que o senhor fez. Foi possível, com a sua intervenção e a de outros, acalmar os ânimos. Sou-lhe muito grato!
Tempos depois, o Dr. Alcântara escreveu um livro sobre os trabalhos da Constituinte, e pôs como dedicatória: “A Plinio Corrêa de Oliveira, cujo trabalho na Constituinte, reservado na aparência, foi notável na realidade. Alcântara Machado.”
Ele dizia: “Reservado na aparência” porque, de fato, D. Leme tinha tolhido nossa ação, proibindo os deputados católicos de fazerem discursos.
1) Paschoal Ranieri Mazzilli (*1910 – †1975). Advogado, jornalista e político brasileiro; por dois curtos períodos assumiu a presidência do Brasil. Entre 1959 e 1965 assumiu a presidência da Câmara dos Deputados.
2) Livro com aspectos doutrinários, morais e técnicos sobre o problema da reforma agrária no Brasil, do qual Dr. Plinio foi co-autor.
3) Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (*1870 – †1946).
4) José Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, e Martim Francisco Ribeiro de Andrada, três irmãos que tiveram um importante papel no período da Independência do Brasil.
5) Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira (*1901 – †1935).
6) Militar e político (*1897 – †1955).