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Tríplice reversibilidade

Ouvindo os sons do órgão, Dr. Plinio percebia ser ele um instrumento feito pela Igreja para louvar-se a si própria e fazer-se sentir no coração dos fiéis. O órgão, a atmosfera da Igreja do Coração de Jesus e a alma de Dona Lucilia faziam-no perceber que, apesar de serem três realidades distintas, eram harmônicas e inteiramente afins, porque alicerçadas na Santa Igreja Católica.

Quando se é criança, a vivacidade do exercício das reversibilidades é enorme. Pode-se afirmar que com o desenvolvimento do intelecto a reversibilidade vai ficando menos vivaz nos sentidos e se tornando mais aguda nas ideias. Tenho a impressão de que, na extrema velhice, se a soma das idades for bem feita e Nossa Senhora não permitir ao ancião uma doença, a reversibilidade dos pensamentos deve atingir o auge, enquanto a dos sentidos quase não se manifeste. É como eu imagino que as coisas devem se passar.

Reversibilidades e o órgão

Fotos: Arquivo Revista

No meu tempo de criança, três coisas me vinham ao espírito juntas: a atmosfera da Igreja do Coração de Jesus – considerando dentro dela um padre celebrando a Missa, a liturgia etc.; outra coisa que formava nexo com isso, mas distinto, era o órgão; e, depois, a alma de mamãe. Hoje, analisando essa reversibilidade, vejo que era como se fossem três órgãos.

Encantava-me exatamente no órgão aquilo que constitui uma universalidade de sons. Naquele estilo, na quela gama, dava-me a impressão de estarem lá dentro todos os sons concebíveis. Era uma beleza extraordinária como os sons se revertiam, se jogavam, se combinavam, se aproximavam, se distanciavam, com gala e afabilidade. Encantava-me!

O mesmo eu encontrava em mamãe. Podia-se dizer que, para mim, ela era o órgão no qual toda a elevação do espírito e da harmonia de alma que se pudesse querer de uma alma, ali estavam interpenetradas harmonicamente, agradavelmente.

Eu percebia bem que o órgão não era senão um instrumento feito pela Igreja para louvar-se a si própria, para fazer sentir no coração de seus próprios filhos como ela era. Eu interpretava o órgão como a Igreja narrada por si mesma, para que seus filhos a amassem mais.

Toda alma fiel é como o orvalho da Igreja

Naquele tempo eu sentia tudo isto, mas a potência da explicitação não existia. Ora, a explicitação é um gáudio e exprime bem o que eu sentia. Maturar é isto: a pessoa preenche o que sentiu e que estava mudo dentro, ansiando por manifestar-se.

Essa reversibilidade me encantava. Eu compreendia o que era o órgão para a Igreja e entendia bem que mamãe tinha essas qualidades – disse cem vezes, mas tenho ânimo para dizer mais dez mil, para agradecer à Igreja e, na Igreja, a Nossa Senhora e a Nosso Senhor Jesus Cristo – porque mamãe tinha isso que eu notava; e aquilo tudo estava presente nela, por ela ser filha da Igreja.

Era mais ou menos como o orvalho para a noite. Percorre-se a noite e se acha um ar muito agradável. E pensava então o seguinte: “Ligando ao orvalho da noite, sem que haja um momento para perceber isso, algumas das propriedades do ar se condensam e se põem numa folha. Amanhece, o ar noturno passa, mas ele deixa na folha aquele sinal da noite esplêndida que houve ali.”

Fotos: Arquivo RevistaFotos: Arquivo Revista

É um dos elementos de poesia do orvalho. Todo mundo acha o orvalho poético, a justo título. Mas, por quê? A meu ver, é por causa disso.

E concluía: “Toda alma que é fiel é como um orvalho da Igreja.” E a títulos muito superiores. O fenômeno físico, nem de longe esgota o fenômeno sobrenatural, é uma mera comparação.

Consonância com a Igreja

De outro lado, é verdade também que, se a alma não for como um orvalho da Igreja, se não for fiel, por mais que a vejamos cheia de pequenas práticas, de pequenas devoções, será “heresia branca”, será qualquer outra coisa, e com isso não vou! É muito justo, portanto, que, estando na igreja, eu pensasse em Dona Lucilia. E, estando com ela, pensasse na Igreja.

Quantas vezes, olhando para o olhar de mamãe, eu pensava: “Esta é bem a Igreja.” Muitas vezes estive com ela na igreja e eu olhava assim de soslaio e pensava: “Como entram em consonância! Como são Mãe e filha, a Igreja e ela!”

Eminentemente compassiva, exímia discrição

Para comigo, a atitude de mamãe era sempre esta: o homem é precário e, por mais que vá bem, pode, em determinado momento, não ir bem. De maneira que não se deve elogiar, deve-se, pelo contrário, tomar uma atitude, quando se é mãe, vigilante. Isso chegava ao incrível nela!

A razão dessa atitude, tenho certeza moral de ser a seguinte: era até um juízo maternalmente generoso que ela fazia a meu respeito. Ela julgava que eu era mais saliente em vários aspectos do que muitas outras pessoas que me rodeavam, quer nas relações sociais, quer nas relações familiares. Ela julgava isso bastante notório para não ser preciso dizer.

Ora, com sua comiseração, ela era uma pessoa eminentemente propensa à compaixão, era compassiva o quanto se possa ser. Nunca vi ninguém compassivo como ela. A comparação na cabeça de Dona Lucilia era feita de mãe a mãe, e ela se sentia meio colega de todas as mães que há, enquanto mãe, a propósito de maternidade. E para outras deveria ser muito doloroso, não tanto reconhecer que eu pudesse ter alguma qualidade um tanto maior que os filhos delas, mas de ver a mãe daquele filho mais dotado fazer comparações. Então, ela era de uma discrição exímia!

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio com sua irmã, Dona Rosée, em um restaurante de Campinas, em 1962

Eu acho que isso participa de uma certa doçura dela, que está no Quadrinho. O trato dela era todo impregnado de coisas dessas.

Face ao elogio, uma escola

Mamãe tinha enorme veneração pelo pai. Se houve alguém a quem ela quis bem foi o pai. Ela julgava que ele, se me conhecesse, teria entusiasmo por mim. E aí filtrava o que ela pensava a meu respeito. Para que um homem paradigmático como ele tivesse para comigo essas disposições, vê-se o que ela achava a meu respeito. Ela contou muitos episódios seus com o pai, mas nunca me contou um episódio no qual me elogiasse.

A predileção dela era pelo pai, mas ela também queria muito bem à mãe. Ela cuidava da mãe, era exemplaríssima. Apesar de toda a amizade ardorosa que tinha para com a mãe, eu nunca a vi fazer um elogio sobre ela. Não estou me lembrando, pode ser que a tenha, em alguma ocasião, não estando presente a mãe, elogiado. Uma vez ou outra, em atitudes que a mãe tomava e que nem sempre eram compreendidas, ela aí elogiava. Era um elogio de defesa. Assim, grátis, por expansão de afeto, não falava. Creio que isso obedecia à ideia de que os elogios deixamos para o Céu.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, pai de Dona Lucilia

É uma coisa cabível. Eu já não fui dessa escola. Quando ela começou a envelhecer muito, com pena dela, não tendo outro modo de agradá-la, eu a elogiava para ela mesma. Era em tom de gracejo, mas a elogiava muito.

Mamãe tomava uma atitude como se o elogio não fosse com ela. Não ficava, nem podia ficar desagradada, nem manifestava desagrado, senão eu não agiria assim. Mas ela fazia mais ou menos como se faz quando se está atrás de uma vidraça e bate a chuva no vidro. A chuva bate e morre no vidro. O elogio não penetra no amor de si mesmo. Assim fazia ela.

É toda uma teoria do elogio, uma certa escola, um modo de ser que era assim.

Respeitabilidade da Igreja

No trato com todo mundo ela também refletia muito a Igreja. Não há ninguém que penetre numa igreja ou num ambiente verdadeiramente católico que não se sinta respeitado. A Igreja verdadeiramente católica é assim: é respeitável. Entretanto, no modo de se ver a respeitabilida de da Igreja, ela põe em nós a respeitabilidade que tem. Ela nos olha respeitosamente do alto de sua superioridade; isso reflete em nós, vai de nós até ela, nós nos ajoelhamos.

Quando se transpõe uma igreja, uma capela ou um edifício religioso qualquer, verdadeiramente sente-se envolvido por uma atmosfera profunda de afeto, de respeito que penetra até os poros da pele. Assim também era Dona Lucilia com todo mundo.

Educadora sumamente respeitosa

Creio não me iludir dizendo que era muito especialmente a meu respeito que ela exercia em toda sua plenitude a sua função materna. Até depois de homem inteiramente feito, ela, às vezes, me advertia de uma coisinha que não estava bem feita. Séria, porque ela era muito séria, olhava aquilo assim…

Basta dizer isto: às vezes eu tomava goles grandes demais de água, era homem já de quarenta, cinquenta anos, ela dizia: “Filhão, goles menores.” Ela sabia que eu não ia mudar, devia ver que está em todo meu temperamento, todo meu modo de ser: “Se é para beber, bebamos a grandes goles!” Meu temperamento não era o dela. Mas era o filho dela fazendo alguma coisa que não estava de acordo com a medida que ela achava certa; então corrigia com muito afeto: “Filhão, goles grandes não.”

Fotos: Arquivo Revista

Às vezes, era a comida. Pedaços grandes de comida… assim se saboreia! Sei perfeitamente que a boa educação não é essa; se eu estiver numa mesa de cerimônia devo comer em bocados menores, sei disso. Mas não estando numa mesa de cerimônia, como à vontade. Ela dizia: “Filhão, o pedaço…” Eu respondia com um sinalzinho, e continuava a conversar.

Ela exerceu a função educadora até o fim. Sem embargo, ela me tratava com um respeito! E me lembro, de meninote, ela tinha uma pontinha que tendia para a veneração. Veneração da esperança materna que depois ficou a veneração da certeza. E creio também não exagerar ao dizer que essa veneração foi crescendo e, aos poucos, se completando pela confiança. Creio, certeza não posso ter, exatamente pela extrema discrição dela.

(Extraído de conferência de 28/4/1981)

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