Populares da semana

Relacionados

II – Bela caminhada

Chamado a realizar uma série de proezas em prol dos mais altos ideais, o Sr. João Clá brilhou, desde o primeiro instante no Grupo, por seu entusiasmo e, através de sua fidelidade, contribuiu para modelar o guerreiro contrarrevolucionário por excelência, perfeito escravo de Nossa Senhora.

Quando o João começou a vida no Grupo, deu-se a realização áurea de um sonho que para ele parecia irrealizável. Embora com todas as diferenças inerentes à idade e à geração, há muita analogia entre o que se passou com ele e comigo nos períodos iniciais de nossas vidas, e no encontro radioso com um Movimento no qual nossos ideais se sentiam interpretados e se expandiam.

Uma longa e bela caminhada

Ao contemplar o João ainda mocinho, eu via chispearem de dentro dele chamas de todo jeito, a todo momento, de toda ordem, e me perguntava: “Para que gênero de proezas esse rapazinho foi chamado?” E como mais ou menos naqueles dias os comunistas tinham amarrado uma bandeira vermelha na torre da Catedral de Notre-Dame, eu o imaginava galgando a torre – do lado de fora – de rei em profeta, de profeta em anjo, até pôr os pés sobre a cabeça de um daqueles demônios de pedra que olham para a capital e, de lá, num lance heroico, pendurar-se na bandeira maldita, jogá-la ao chão, tirar do bolso um estandarte da TFP1 e fazê-lo tremular no alto de Notre-Dame.

Arquivo Revista; Arquivo Revista
Sede da Rua Aureliano Coutinho, à direita, quarto do Sr. João Clá

Arquivo Revista
Sr. João Clá, aproximadamente em 1965

Eu pensava em uma série de outras proezas e dizia: “Assim ele chegará ao teto de si mesmo. Isto é ele em suas expressões juvenis; nas expressões maduras, onde chegará? O que posso eu não esperar deste que Nossa Senhora colocou tão íntima e proximamente ao alcance de minha mão?”

Com o João veio a longa e bela caminhada que conduziu o Grupo a tantos triunfos. Muitas e magníficas proezas ele fez, que um dia contarei!

Na Sede da Aureliano

O Grupo foi como uma árvore que produziu frutos e folhas em todas as estações do ano. Quando entraram levas mais jovens, sentimos, com alegria, a necessidade de conseguir uma Sede para eles, e ­alugou-se um imóvel na Rua Aureliano Coutinho.2 Passou a ser chamado o grupo da Aureliano, que floresceu muito e, no qual, desde os primeiros dias, brilhava um dos mais entusiastas: o Sr. João Clá.

Lembro-me dele no auditório da Santa Sabedoria, na Rua Pará. Quando chegava por volta de meia-noite, abria-se inteiramente a porta – não digo de par em par, porque tinha apenas uma folha, grande e de estilo colonial; dava para um jardim muito fino, com bonitas árvores –, e era o estouro dos jovens que entravam. Eles enchiam as duas salas: a de reuniões e a denominada dos Reis Magos; desconfio que às vezes chegavam até o hall. Bem na frente, vibrando com a vitalidade que todos conhecem e com a fidelidade que nós todos admiramos, estava o meu querido João Clá, entre outros. E começavam a ouvir o Santo do Dia3 que se dava naquela ocasião.

Fidelidade e integridade de vida

Nemo summus fit repente;4 trata-se de um princípio de moral que se reflete assim: nada de supremo, de extremo, de muito arrojado far-se-á na hora “H” se antes não tivermos correspondido à graça. Nós preparamos o dia de amanhã no “agora” do dia inteiro! Uma prova disto, ao pé-da-letra e de apalpar, é o meu João Clá. Eu o imagino mocinho, andando de um lado para outro, subindo, descendo, mexendo. Um pouco que ele não correspondesse à graça, poderia ter tomado outro caminho, e eu não teria quem me fizesse o que ele está fazendo.

Provavelmente muitos dos chamados a me seguir estavam nascendo para a graça e sendo preparados pelo João na hora em que ele, por exemplo, passou diante de um botequim e virou o rosto, porque não podia olhar para dentro; no momento em que se recusou a ver uma revista imoral; numa ocasião em que resolveu rezar o Rosário, apesar de cansado.

E não nego que seja uma regra de três: na hora em que eu lutava, estava preparando o João e uma série de feitos “joaniformes”, porque realmente ao João eu ajudei muito a formar!

Nós fazemos do João uma espécie de taumaturgo. Ele tem algo disso, mas a fidelidade e o alheamento completo dele aos modelos de “Bagarre azul” – que nem existem para ele – são ocasião de torrentes de bênçãos. É incalculável! Porque no João não noto um pingo de mundanismo. Vejo, pelo contrário, o espírito formado no sentido oposto.

Arquivo Pessoal
Sr. João Clá em meados de 1958, quando servia o Exército

Ele me narrou episódios do período da vida dele no serviço militar. Lá ele encarou a situação com firmeza! E saiu ultrarrespeitado, ultraprestigiado. Geralmente tem-se a ideia contrária, de que resistindo e enfrentando fica-se completamente esmagado, e então se cede. Isso não é privativo dos coronéis nem dos oficiais; um indivíduo pode ser soldado raso, mas conservar-se firme e sair com muita respeitabilidade.

O João contou-me também outros fatos da vida dele, recordou sua primeira conversa espiritual comigo, como resolveu não entrar para a Faculdade de Medicina – era o que a família queria –, mas se inscrever na de Direito…

Meu João estudou na Faculdade de Direito até o quinto ano. Sendo preciso dizer que me lembro nitidamente de ter sido um dos períodos mais brilhantes da TFP na Faculdade de Direito. Eram dezenove membros do Grupo numa mesma turma de trezentos, fazendo parte dela o João Clá. Podemos ter ideia de quem era o motor!

Sagrada Escravidão, um fenômeno místico

No ano de 1967 muitos no Grupo receberam grandes graças de devoção, de afervoramento, as quais ficaram conhecidas como “a graça de 67”.5 No que esta consistia? Houve uma diferença específica entre o “flash” primeiro da vocação e o “flash” tido no ano de 1967, com a Sagrada Escravidão?

Estou convicto de que a Sagrada Escravidão nasceu de fenômenos de caráter místico no íntimo de cada um, à maneira de um verbo comunicado pela graça à pessoa, que retomava e acentuava as esperanças primeiras do “thau”. Não era dado a entender em palavras, mas com base em um conhecimento acompanhado de um sentir, ambos interiores, consistindo na forte convicção de que éramos autenticamente chamados para uma tarefa, cuja realização se daria através de muita batalha. Vinha uma intensa sensação do esplendor, não humano, do que estava por ser empreendido, acompanhada de uma segurança: aquilo não se desviaria e a instituição continuaria no rumo encetado. Isso introduzia na alma um bem-estar parecido com o que a saúde produz no corpo, uma disposição firme, um propósito resoluto, uma segurança sem hesitação nem trepidação.

A Sagrada Escravidão era feita fundamentalmente a Nossa Senhora. Eu tinha lido o Tratado da verdadeira devoção várias vezes, conhecia-o, mas percebi naquela ocasião que os mais moços queriam algo de novo, de bom, no qual evidentemente estava a graça, que seria levar a escravidão a Nossa Senhora, pelo método de São Luís Grignion de Montfort, a consequências concretas.

Nos termos em que ela foi exposta, a Sagrada Escravidão redundava numa obediência a quem Nossa Senhora, pela voz dos fatos, designava para dirigir a Contra-Revolução, e envolvia uma doação completa de si mesmo a esta. De maneira que na Contra-Revolução – representada pelo Fundador e este representando, por sua vez, Nossa Senhora, a Rainha Celeste a serviço da qual se faz a Contra-Revolução –, o escravo deveria ser aquele que renuncia completamente a tudo quanto ele tem ou quer, até os bens interiores e exteriores, como diz a fórmula da consagração.

Arquivo Revista
Dr. Plinio e Sr. João Clá no ano de 1965

O dia da cerimônia

Quanto me lembro do dia da cerimônia da Sagrada Escravidão! Foi algo estupendo!

Marcaram-na para o período da manhã, na nossa antiga Sede da Rua Pará, na Sala do Reino de Maria. Recordo-me perfeitamente de mim mesmo, muito satisfeito, preparando-me para ir até lá. Antes de sair, eu estava sozinho em meu quarto no Primeiro Andar, caminhando de um lado para outro, a fim de arrumar as coisas, e fazia esta reflexão: “Não compreendo como isso me está acontecendo, porque me causa tanta alegria que nem parece um episódio de minha vida, mas de um outro. Fatos que dão contentamento não me acontecem, e esse me causa uma satisfação enorme.”

Fui cheio de regozijo, e transcorreu todo um dia de júbilo para mim.

Se fôssemos tirar todas as consequências das graças que eles receberam e se manifestaram ali, até onde iríamos?

“A graça de 67” atuou com intensidades e modos muito diferentes, conforme o estado em que ela colhia a alma. Não podemos, portanto, medi-la pelas ações mais modestas que ela se comprouve ter neste ou naquele. Devemos ver o auge dela, o que ela deu nas atuações mais chamejantes, nas manifestações mais ardentes. Foi uma graça arrebatadora. O João afirmou ter como que entrado em êxtase com ela. Ora, êxtase e arrebatamento são termos que se equivalem.

Escravos e cavaleiros rumo à inauguração do Reino de Maria

O que eu esperava em 1967? Em minha alma estava o ideal de formar muitos santos carolíngios e, por vários aspectos, inacianos, que impressionariam o mundo pela dedicação e pelo caráter fundamentalmente católico, como mais ninguém o era.

Arquivo Revista
Sr. João Clá hasteando o estandarte no claustro do Êremo de São Bento

Eu desejava que o membro do Grupo fosse o arquétipo do homem na era do Reino de Maria, o modelo do escravo, do devoto e do cavaleiro de Nossa Senhora. Entre cavaleiro e escravo d’Ela há uma correlação, pela qual o escravo perfeito é um arquicavaleiro! Não se compreende de outra maneira. E esse modelo bem inculcado perduraria até o fim.

Desde os primeiríssimos tempos de minha infância, eu fiquei embriagado por Carlos Magno e isso concorreu muito para a ideia da Ordem de Cavalaria.

Eu tinha como certo que Carlos Magno foi o fundador da Cavalaria. O ideal dele, aquele tipo perfeito que ele representou deram a inúmeros outros homens a vontade de imitá-lo. E no tatearem para ser como ele, o tipo de cavaleiro se desprendeu. Quer dizer, a aspiração da Cavalaria nasceu da aspiração de ser como Carlos Magno. E eu me perguntava se ele, como fundador, não era portador de uma graça que dele se irradiou e, com o tempo, deu no ideal da Cavalaria; uma graça da qual, em última análise, todos os cavaleiros posteriores não foram senão depositários, mais ou menos como os membros de uma Ordem Religiosa o são da graça irradiada do fundador.

Arquivo Revista
Dr. Plinio na entrada da Sede do Reino de Maria, em meados da década de 1960

Não teria Carlos Magno uma ação misteriosa e sui generis através da História, pela qual ele acabou de algum modo revivendo, por essa espécie de descendência espiritual, por um prolongamento nos outros das graças obtidas por ele, como a graça de Elias viveu em Eliseu e depois nos carmelitas? Nesse sentido, algum toque da graça me levava a ter a convicção de que Carlos Magno representa o futuro; não é um caminho estancado, uma glória do passado que ficou parada, mas é uma luz descida do Céu indicando uma caminhada que deve continuar.

A meu ver, Carlos Magno foi, ao mesmo tempo, um profeta e um patriarca da velha Europa. Toda a história europeia dos bárbaros convertidos não é senão uma preparação para o advento de Carlos Magno; e, depois, toda a obra é uma continuidade dele até vir a Revolução ou, mais especificamente, a Revolução Francesa.

Ademais, ele é o imperador mariano, sobre cuja história santamente terrível está a iluminação do sorriso de Maria. Ser devoto da Santíssima Virgem é ser devoto da doçura das doçuras, é evidente! Então ele é doce, mas que gigante doce! Era o lutador que espalhava o terror e a doçura! No seu império, esse homem que era forte como um sol, entretanto difundia o brilho de Nossa Senhora, da qual diz a Escritura que é “pulchra ut luna – bela como a lua” (Ct 6, 10).

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 13 de maio de 1967

Há, todavia, um desdobramento do espírito de Cavalaria: o cavaleiro herdeiro deste espírito, transposto para outros campos de batalha, como foi Santo Inácio de Loyola. Tenho a impressão de que quando ele fundou a Companhia, não ousou chamá-la “Cavalaria” porque esse ideal já estava aviltado, mas tudo quanto a Companhia realizou em sua época áurea foi feito com espírito de Cavalaria. Aquela vontade inquebrantável! Era tomar as atividades da inteligência, do espírito, e vivê-las a la cavaleiro.

Em meu espírito a santidade deveria ter também uma abertura de alma, uma compreensão de tudo quanto dissesse respeito ao combate contra os ideais da Revolução Francesa e das três Revoluções in genere. O que os jesuítas foram em relação ao Protestantismo, nós seríamos em relação às três Revoluções em seu todo.

Acrescento que a própria visão do Grupo nutre o zelo e o fervor na medida em que ele seja considerado através da Cavalaria e viva como uma Ordem de Cavalaria, o que compreende não só enfrentar uma polêmica. A Cavalaria é principalmente um assunto de campo de batalha, este é o que dá o analogado primário dela, e se deve tomar um cuidado extremo de não o esquecer. Mas fazer dela apenas isso é não compreendê-la, porque a Cavalaria deve estar presente em tudo. Trata-se de um estado de espírito, de uma graça, de um modo de fazer as coisas que seja, antes de tudo, guerreiro! E guerreiro pelo alto ideal da Contra-Revolução, o qual é, em última análise, a quintessência do ideal católico.

Creio que ou o Reino de Maria é fundado por uma “neocavalaria” própria a inaugurar uma nova época de Cavalaria, ou não há Reino de Maria! E tudo rumava em 1967 para isso.

Arquivo Revista
Sala do Reino de Maria, onde, a 18 de maio de 1967, realizou-se a primeira cerimônia da Sagrada Escravidão

Contudo, eu não podia imaginar que a Sagrada Escravidão, direta ou indiretamente, desfecharia num desastre.

Surgem dois temores

Em determinado momento, aquele verbo interior que falara às almas, sem deixar de ser firme, passou a não ser bem ouvido, e tudo quanto ele continha começou a ser objeto de tentações e de temores.

O primeiro temor que veio por parte de alguns foi: “O que vai acontecer se eu me meto nessa sujeição e houver um excesso de autoridade ou um esmagamento de minha personalidade? Se houver algo pelo qual eu fique meio amesquinhado e seja tomado pelo lado aviltante da servidão? Isso pode verificar-se comigo, porque eu não tenho certeza de que o homem em cujas mãos me ponho tenha propensão para tal, mas pode acontecer a qualquer homem. E, assim sendo, estou entrando numa via que pode dar num desvio tremendo”.

Arquivo Revista
Dr. Plinio na década de 1970

Era uma preocupação de caráter individual, aparentemente muito justa, que não ocorrera na fase inicial a ninguém. A certeza primeva que nos era comunicada excluía essa ideia, nem nos passava pela cabeça. A partir do momento em que ela se apresentou e foi considerada, tornou-se objeto de dúvida. Foi a primeira vacilação.

Segundo ponto: houve uma espécie de saturação dos panoramas magníficos que a graça punha diante deles. E seguiu-se a ideia: “Isto, nesta magnificência, não se realiza; essas coisas não são prováveis. O provável é o dia a dia, o pão-pão, queijo-queijo… Não desejo ser elevado a tão alto.”

Para usar uma imagem utilizada por Santa Teresinha do Menino Jesus em outra perspectiva, era mais ou menos como um cordeiro agarrado por uma águia. Ele se sente elevado a alturas enormes, mas, em certo momento, fica saturado de ver do alto a montanha e quer comer grama, andar com seus próprios pés na vegetação.

Allie_Caulfield (CC3.0)
Carlos Magno – Palácio Residenz de Munique

Toda essa inapetência de rumos levava ao fastio de receber qualquer influência de minha parte e, portanto, a um desgaste. Porque os panoramas para os quais eu acenava já não lhes importavam, e sim outras coisas mais próximas, agradáveis. Neles havia uma atitude em relação a mim como quem diz: “Espere um pouco… nós o alcançaremos logo!”

A sensação era de que a torre de marfim que eu havia construído tornara-se de sabão, e sobre ela corriam as águas.

A Sagrada Escravidão cumprirá sua missão

E aqui está o ponto chave da história: Nossa Senhora me sustentou misericordiosamente e, de vez em quando, não com muita frequência, me conferia uma graça de confiança de que essa crise seria sobrevoada, e uma esperança muito grande de que a Sagrada Escravidão se realizaria.

Eu tinha essa esperança firme até em relação aos mais relapsos. Não era uma voz interior, mas um pressentimento, um auxílio da graça para me sustentar. E esperava com todas as esperanças, “exspectans exspectavi” (Sl 39, 2). Depois de mil provações, das quais muitas eram torturas para mim, eu continuava a aguentar com toda a serenidade, em função dessa forte esperança inicial que eu conservava.

Antônio Carlos Carrero
Sr. João Clá apresenta o estandarte a Dr. Plinio durante cerimônia realizada na Sede do Reino de Maria, em 23 de julho de 1969

Em determinado momento, a rogos de Nossa Senhora, a Providência faria chegar para nós uma graça. Ou seja, depois de nos castigar com uma longa ausência – na aparência, porque Deus nunca tirou a mão de junto de nós, senão teríamos nos dispersado; Ele não esteve ausente, mas escondido – Ela apareceria e Se faria sentir de novo.

Seria por um movimento gratuito de Nossa Senhora que o espírito da Sagrada Escravidão voltaria a nós e nos transformaria, como aconteceu em Pentecostes, quando o Espírito Santo baixou.

E creio que a Sagrada Escravidão cumprirá a sua missão.

Magnificat pela fidelidade

De outro lado, quanta fidelidade houve! Por esse prisma, de lá para cá foram tantas graças, que é uma verdadeira maravilha. E com uma circunstância: o que está realizado até o momento é realmente algo grande e maior do que muitos de nós imaginávamos.

Chamo a atenção para dois pontos: duração e resistência! Porque resistir tanto tempo a condições tão desfavoráveis representa uma graça muito especial, própria a nos encher de alegria e a nos levar a agradecer a Nossa Senhora e cantar o Magnificat! Uma parte substancial desse cântico se deve às graças que Ela concedeu por meio do meu João.

O João dirá que apenas aproveitou o que recebeu de mim. Ora, não entro nessas cogitações… São coisas que ele deve pensar, mas com as quais eu não sou obrigado a concordar. Cada um enxerga a realidade com os seus próprios olhos. Eu me interesso em olhar o que foi feito por meio do meu João. Tenho isso numa conta que ele pensa que imagina, mas não pode calcular!

Formação sistemática que conduz ao mirante profético

Reputo importante assinalar um aniversário, o qual desejo que fique inscrito em nosso calendário, por ser de muita significação para a vida do Grupo: no já remoto ano de 1969, iniciou-se o esforço das “Itaqueras”,6 lançadas pelo João Clá e um outro membro do Grupo. Pode-se dizer que com essa primeira turma começaram as inumeráveis graças que Nossa Senhora não deixou de derramar lá.

O que devemos dizer a respeito da “graça de Itaquera”? Qual foi o papel desses cursos no Movimento? O que podemos esperar deles?

Esses cursos nasceram de um modo completamente inesperado, sem que eu os tivesse elaborado com os dois. Apraz-me muito notar o caráter sobrenatural desse surto de “Itaquera”, o qual se fez sentir na inteira falta de planejamento com que a obra nasceu, de repente, e na graça de entusiasmo que a acompanhou; depois, pela propagação desse frêmito por todo o Movimento e, sobretudo, pelos frutos duráveis. Tudo o que é verdadeiramente sobrenatural confere ao homem a possibilidade de fazer sacrifícios duravelmente.

Mário Shinoda
Sr. João Clá cumprimenta Dr. Plinio após uma cerimônia no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, em 9 de dezembro de 1991

Podemos dizer, com o recuo dos anos, que nos desígnios da Providência aquilo que se chamou “graça de Itaquera” tem um sentido profundo, que é preciso compreender. E, à medida que corre o tempo, a noção a respeito dessa graça vai ficando mais clara. Vamos percebendo mais nítida e definidamente que, com a pressão revolucionária, não bastaria uma simples formação espiritual e doutrinária nos moldes clássicos. Era preciso uma formação intelectual com cursos, conferências, argumentação fria, lógica, clara, correta, dando primado à coerência a serviço da Fé; uma formação espiritual pensada, raciocinada, refletida, séria, com fundamento em toda a Doutrina da Igreja.

A “graça de Itaquera” representou algo que se pode exprimir desta forma: a deliberação de fazer cursos sérios, com adestramentos, tornando obrigatório o aprender. Ou seja, era a aceitação voluntária de uma coerção, para garantir a efetividade de um propósito tomado. Tratava-se de uma espécie de exercícios espirituais muitíssimo originais, que deixaram um sulco na vida dos escravos de Nossa Senhora.

Do que valia isso do ponto de vista espiritual? Tinha o valor da seriedade, que é o ponto pelo qual as “Itaqueras” constituem um felicíssimo prolongamento do nosso sistema quotidiano de formar. Isso também se refletia na formação da vontade, na deliberação de adquirir reflexos, de se tornar flexível, rápido, decidido, de ser capaz de sacrifícios em toda gama, na disposição para aceitar com entusiasmo qualquer serviço, ainda que árduo, e cumprir o dever com alegria.

Sob esse ponto de vista, o grande vencido em “Itaquera” era Sancho Pança, ou seja, a concepção da vida civil na qual o homem julga que a felicidade consiste em ter todos os perigos e esforços afastados de si, imaginando que a vida mole é a delícia da existência. Essa concepção é repudiada em “Itaquera”, pois constitui precisa e diretamente um dos obstáculos mais fundamentais, se bem que mais impalpáveis, a que se responda bem à vocação.

Arquivo Revista
Êremo de Elias, onde se realizaram as primeiras “Itaqueras”

Pelo contrário, a “graça de Itaquera”, própria a despertar a varonilidade, a intrepidez e a coragem, nos mostra que há uma luta da qual participamos desde já, e que é pródromo de um combate muito maior no qual participaremos de futuro. Assim, toda a técnica e o ambiente de “Itaquera” são feitos para nos conduzir a esta altura do mirante profético de onde se julgam não só os fatos atuais, mas também os acontecimentos e a vida interna do Grupo.

A grande “graça de Itaquera” é crer na “Bagarre”, nas promessas de Fátima; crer, portanto, na instabilidade do mundo pagão de hoje e na imensidade da luta que esse castigo trará consigo, bem como em nossa missão durante ele e igualmente, depois, no Reino de Maria. Essa esperança é o pensamento nuclear de tudo aquilo.

O que o espírito de “Itaquera” nos diz, com todas as forças, é que há uma incompatibilidade absoluta e eterna entre os filhos das trevas e os filhos da luz, entre o bem e o mal, que deve ser tomada profundamente a sério. Pode-se dizer que as palavras “Inimicitias ponam” – “Porei inimizade entre ti e a Mulher, entre tua descendência e a d’Ela” (Gn 3, 15) – são o sal de “Itaquera”.

Arquivo Revista
Sr. João Clá, em 1969

Nós não devemos medir as “Itaqueras” pelos que participaram delas, pelo proveito que estes ou aqueles tiraram da graça. Temos de considerar essa instituição no modo pelo qual os exercícios eram dados; são coisas completamente diferentes: uma é o convite feito pela Providência, outra é o nível de aceitação. É bem verdade que dessa graça decorre uma série de transformações. Basta ver, como resultado dela, as campanhas fatigantes, duras, que os membros do Grupo realizaram correndo riscos, o que tempos atrás não fariam. O que houve, entretanto, de incorrespondência é colossal. Mas essa graça de tal maneira tem resistido a tudo, que realmente devemos julgá-la invencível.

Depois o João se “eremizou”,7 e ficou só o outro membro do Grupo à frente das “Itaqueras”. Mas este, sem o João, não me parece que daria tudo quanto podia. Ele e o João tinham uma espécie de simbiose, e não era possível ele tocar as coisas sem o João Clá. Eu estremeço pensando o que seria do Grupo se não fosse o João.

Que Nossa Senhora, a quem devemos agradecer essa graça do fundo da alma, consolide em nós o apreço por ela, torne-a fecunda em nós e cada vez mais abundante pela misericórdia d’Ela, de maneira que o opus tuum fac8 em nós se realize, e nos tornemos eminentemente varões como os Apóstolos dos Últimos Tempos preditos por São Luís Grignion de Montfort.

Arquivo Revista
Dr. Plinio na Sala dos Alardos da Sede do Reino de Maria, em 1965

1) Sigla pela qual se tornou conhecida a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, movimento fundado por Dr. Plinio em 1960.

2) Rua Aureliano Coutinho, n. 23, em São Paulo, onde os membros do Grupo se instalaram a 20 de abril de 1957.

3) Conferência dedicada aos mais novos, inicialmente destinada a comentar alguma ficha hagiográfica.

4) Do latim: ninguém se torna grande repentinamente.

5) Relato do Sr. João Clá a respeito da Sagrada Escravidão:

À medida que eu convivia com Dr. Plinio, no dia a dia, ia tendo cada vez mais noção da grandeza dele; passei a observá-lo em seu modo de ser: a entonação de voz, o olhar, os gestos de mão, o comportamento, o trato. A graça começou aos poucos a tocar minha alma para ver nele não apenas um homem que transformaria o mundo, mas o varão no qual se concentravam todos os desígnios da Providência, constituindo-o o representante de Deus para nós na Terra.

Isto foi num crescendo até o momento em que, em 1965, enquanto ouvia música e percorria as páginas do Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, constatando como São Luís Grignion de Montfort provava que deveríamos ser escravos de Nosso Senhor Jesus Cristo pelas mãos de Nossa Senhora, Medianeira entre nós e Ele, tive um “flash” pelo qual percebi qual era o imbricamento de alma que deveríamos ter com Dr. Plinio: a mesma dependência indicada por São Luís Grignion de Montfort a respeito de Nossa Senhora.

Aprofundei um pouco mais e, a cada página, concluía: “É isso mesmo! A melhor forma de louvarmos a Nossa Senhora é estar nas mãos dele, louvá-lo pessoalmente, estar no caminho dele, segui-lo, servi-lo, ser escravo. Não há dúvida!” Isso veio com um jorro de luz interior, pelo qual a Providência me fez ver mais claramente quem ele era e me concedeu uma maior penetração na alma dele. Essa graça foi se consolidando até o momento em que resolvi escrever a ele uma carta expondo tudo e pedindo-lhe a graça da escravidão na sua explicitação plena: a consagração à Santíssima Virgem Maria, conforme os princípios apresentados no Tratado da verdadeira devoção, realizada por intermédio dele.

Anos antes dois membros do Grupo haviam pedido para fazer os votos religiosos, sobretudo o de obediência, nas mãos dele. Porém, Dr. Plinio estava à procura de uma solução do ponto de vista jurídico. Quando recebeu minha carta, disse ter encontrado um caminho para resolver a questão. Mandou que se estudasse a possibilidade, chegando a fazer reuniões conosco, em seu apartamento, a propósito do assunto.

Posteriormente foi feita uma cerimônia de entrega de todos os bens nas mãos dele. Já estava mais ou menos esboçado o cerimonial da Sagrada Escravidão que seria utilizado no dia 18 de maio de 1967.

A primeira cerimônia se realizou ao meio-dia, na Sede do Reino de Maria e transcorreu com muita graça. No final, Dr. Plinio declarou: “Com esta cerimônia fica fundada a Instituição dos Apóstolos dos Últimos Tempos”.

6) Simpósios realizados numa das Sedes do Grupo, situada no Bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Consistiam numa série de reuniões sobre doutrina católica, seguidas de debates e adestramento intelectual e físico, visando preparar os participantes para o estado de incondicionalidade, característica essencial da perfeita escravidão a Nossa Senhora.

7) Em 1971, o Sr. João tornou-se eremita no recém-fundado Êremo de São Bento, mais tarde denominado São Bento I, antiga propriedade beneditina adquirida para nela ser dado início ao ideal de vida eremítica que Dr. Plinio tanto desejava.

8) Do latim: faze tua obra.

Artigo anterior
Próximo artigo

Artigos populares