Um dos períodos de maior sofrimento para Dr. Plinio foi o que ele chamou de “Bagarre azul”, durante o qual os membros do Grupo, atolados na mediocridade, puseram em risco a continuidade da obra. A essa provação somou-se um aparente distanciamento de Nossa Senhora que não mais se manifestava a ele, como outrora, por meio de algumas de suas imagens. Nesse panorama sombrio, ocorreu o desastre de automóvel.

A pedido do meu João, farei uma análise do Grupo antes e depois de meu desastre de automóvel, e também de todas as graças que depois Nossa Senhora derramou abundantemente sobre nós a esse propósito.
Dificuldade para narrar a história recente
Quando tomamos conhecimento da história dos assírios, dos babilônios, dos javaneses, por serem civilizações antigas, temos a ideia de que é difícil escrevê-las, e que muito mais fácil seria registrar a história de nossos dias. É um engano. Todos os técnicos em escrever tratados de História dizem que a história mais difícil de se escrever é a dos fatos presentes ou recentes, porque será sempre condicionada às circunstâncias psicológicas do leitor ao qual se destina.
Por exemplo, se alguém quisesse publicar um best-seller histórico contando sobre a Segunda Guerra Mundial, deveria fazê-lo de modo a ser lido pelas nações que pertenceram a um e a outro partido; logo, não poderia tomar posição ao descrever os fatos. Teria de narrar de modo comercialmente neutro, a ponto de ambos os lados julgarem: “Que bem feita esta obra, como esse homem é imparcial!” Ora, às vezes a imparcialidade não é a verdadeira história. O escritor deve tomar posição para provar com quem estava a verdade.

A história sobre a qual o João deseja que eu fale é recente, recentíssima! E mais: de todos os episódios internos, o mais difícil de contar. Se eu fosse expor uma briga de Napoleão com sua mãe – com quem teve várias discussões e que, guardadas as proporções, era uma mulher ainda mais dura do que ele –, os meus ouvintes tomariam como uma história do mundo da lua! Narrar sobre Napoleão e sua mãe ou falar sobre o planeta Júpiter seria a mesma coisa.
No entanto, apresentar um fato interno, acontecido com pessoas que conhecemos, toca na pele, desperta muito mais vivacidade de reações. Por isso, torna-se difícil fazer a narração exata. Não a farei de modo inexato, mas apenas a apresentarei em alguns de seus aspectos. Por amor à verdade, que deve ser a guia do que dizemos, eu previno isso desde logo. São aspectos que valem a pena conhecer, porque dão uma boa ideia de conjunto. Há pormenores e traços que não entrarão em consideração.
Soldados vitoriosos, ávidos de descanso
Ao longo de vários anos, tive provações muito grandes no Grupo, e a “graça de Genazzano”1 me sustentava momento a momento, para que aflições muito agudas não me devorassem, as quais, sem essa graça teriam sido terríveis e devastadoras, e me levariam à morte. Mas ela me dava a certeza de que minha vocação se realizaria, enquanto a hipótese contrária constituía o meu grande tormento.
E com isso cheguei até o desastre. Qual era a situação interna quando ele ocorreu?
Os primórdios da TFP se deram pouco antes de 1945, não ainda como sociedade, mas como grupo dos que saíram do Legionário e formaram um conjunto na “sedezinha” que corresponde ao andar térreo da Rua Martim Francisco. Nessa ocasião, iniciamos uma caminhada dura.
De 1945 para 1975, foram trinta anos de caminhada, feita inteira por alguns que estavam desde o começo comigo. Trinta anos nos quais eles tinham obtido um resultado digno de nota. De sete ou oito pessoas – porque se passaram uns seis anos sem conseguir recrutar um só, o Grupo parecia murado vivo –, chegou-se a uma organização estendida por boa parte do Brasil e por grande número de países, a qual já havia florescido em êremos amplos que começavam a se constituir em vários lugares, embora ainda não tivessem dado, nem de longe, tudo quanto deram depois. Várias batalhas ganhas, inúmeros resultados extraordinários.

Isso dava aos membros do Grupo uma impressão de estarem no alto da colina, podendo se definir como soldados beneméritos e vitoriosos, que, portanto, podiam, afinal, descansar um pouquinho. Era o perigo da hora do descanso. Nesse patamar a que tínhamos chegado estávamos com sombra, sapato largo e água fresca.
Afastado o perigo, ambiente de modorra e tédio
Em tal situação, havia os que estavam infestados, ou infectados, por aquilo que podíamos chamar a doença do calor e do tédio.
Não se tratava de uma tentação formal contra algum ponto do nosso modo de viver, contra nossas estratégias, ou, o que seria muito mais grave, contra algum ponto de nossa doutrina. Nada disso era contestado, tudo se admitia como provado, assente. Entretanto, havia uma espécie de tédio e modorra que os levavam a considerar como já sabido o que era dito e a julgar que, apesar de as conferências novas aumentarem o depósito de doutrinas e de táticas ensinadas por mim, o Brasil passava por um período de calmaria para os anticomunistas e os inimigos da Revolução, pois o perigo comunista parecia jugulado pela ditadura militar e, em consequência, a ação da TFP tornava-se desnecessária e, até certo ponto, impossível.
De imediato, nenhum adversário estava nos atacando. Levávamos a nossa vida na calma, com uma harmonia interna bem considerável e a satisfação pelos triunfos alcançados… O resultado era voltar o olhar para dentro: “Como é boa e bonita nossa casa…!”
Não havendo uma ação imediata a desenvolver, um inimigo urgente a combater, para as almas superficiais e pouco amorosas isso produzia um tédio, o qual degenerava em brincadeirotas.
Nas várias Sedes do Grupo, inclusive nos Êremos, a brincadeira, a graça, a última piada – sem jamais haver nada de imoral e intrinsecamente censurável – mantinham um ambiente de superficialidade, fazendo com que houvesse um relaxamento semelhante ao verificado em nossa natureza física em certos dias de calor, quando temos a impressão de que o asfalto da rua não só amolece, mas evapora; as árvores mais altaneiras têm uma tendência a se dobrar e a dormir; os bichos quase não se movem, os pássaros não cantam, os rios correm, mas as águas não borbulham, e tudo parece chorar a inutilidade de si mesmo.

Esse não era o estado de todos os membros do Grupo, menos ainda de todo eremita; era o mal de muitos e, por isso, um mal grave. Numa família, quando há uma indisposição de vários, é um mal grave, embora alguns possam estar bem saudáveis.
Crise de admiração
Verificava-se, no fundo, uma crise de admiração, que consistia numa atitude de modorra tanto em relação a mim quanto à TFP: “Dr. Plinio afirma, está bem… Ele diz coisas muito boas, razoavelmente bem ditas, mas não aguento mais, quero outro estilo de vida”.
Isso correspondia à posição de uma pessoa que, em um dia de extremo calor, raciocinasse: “Há muito tempo estas janelas estão abertas; estou farto disso, vou fechá-las”. Não tem sentido, pois, se faz calor, elas precisam ser mantidas abertas. Assim também devemos estar voltados para quem nos dá a boa doutrina e não para quem não oferece orientação alguma, o que significaria entrar pelo mundo afora e cair na desorientação, na loucura, no pecado.

Havia os que, pelo contrário, confiavam em nossas esperanças de sempre, sabiam que os dias prometidos por Nossa Senhora em Fátima chegariam, as provações também, e se preparavam para um futuro, quiçá remoto, se Deus assim dispusesse. Mas estavam dispostos a servi-Lo a qualquer preço, quando e como Ele quisesse. Estes pensavam: “Eu admiro tanto a Santa Igreja Católica, sua doutrina e tudo quanto vem dela, e que me é transmitido por Dr. Plinio, que eu quero estar junto a ele o maior tempo possível”.
Em suma, havia os espíritos voltados para a admiração e os não voltados para ela. Essas duas famílias de alma coexistiam no Grupo pacificamente; não brigavam, mas não se fundiam. Essa é a primeira visão da situação de crise como ela se apresentava.
Voltados às trevas e não à luz
Ora, nenhum homem fica sem admiração. No fundo, ou ele admira as coisas de Deus ou as do demônio. Os da corrente do tédio e da modorra, aqueles que não admiravam o Grupo e as suas doutrinas, não é verdade que não tivessem nenhuma admiração; de fato admiravam enormemente o mundo moderno de então.
Eles eram entusiastas de motores, de mecânica; começavam a nascer neles pequenas pontas de más tendências. A primeira e a mais perigosa de todas, a que perde qualquer alma, era a de formar pecúlio próprio. Fazer business à maneira hollywoodiana, montar uma loja, uma fábrica…
O raciocínio consistia no seguinte: “Eu sofro de tal doença, preciso ir ao médico com certa frequência. Eu receio não ter dinheiro nessa ocasião. Se o caixa não tiver, como vou me arranjar? Começarei a pedir em casa um dinheirinho, guardá-lo, de maneira que, se eu precisar, terei. Farei também tal negocinho: recebi de tal parente um donativo, herdei de tal outro mais uma quantia… Guardarei um dinheiro pessoal”.
A pessoa não percebe, mas isso entibia, azinhavra a alma completamente.

Feíssimo era levar uma vida em que o indivíduo não estivesse continuamente mexendo com dinheiro. Era o deus deles. Mais de um pediu-me licença para fazer negócio, com uma tal vontade, que percebi bem que se não se metessem nisso eram capazes de abandonar o Grupo. Por prudência, assenti. Eram pessoas ricas e, como castigo, perderam o dinheiro, porque os negócios não tinham a bênção de Nossa Senhora, deram todos errado. Se um só deles tivesse dado ao Grupo o que perdeu, nossa situação teria sido outra. Era o fruto da modorra e da adoração ao dinheiro.
Por que essa adoração? Porque o mundo adorava o dinheiro naquele tempo, e ainda hoje; e os membros do Grupo que não tinham admiração pela Igreja e pelos que são da Igreja, tinham-na pelo mundo e pelos que são do mundo. Tratava-se, literalmente, de uma admiração desviada, voltada às trevas e não à luz; uma admiração não por uma doutrina, mas pelo prazer de imitar os demais.
Defeitos, interesse pessoal
Outros gostavam de obter cargozinhos: cargos, cargos! “Que bom, tal posto vai ficar vago. Quem sabe se arranjo um modo de ser nomeado no lugar deste outro que foi transferido? Tenho jeito para o que ele faz”. É nomeado um outro, e este fica ressentido! Outros formavam grupinhos de amigos dentro do Grupo, logo constituíam-se dois partidinhos políticos, brigando um contra o outro.
Tudo isso podia dar-se sem que eles tivessem o mínimo desejo de abandonar o Grupo; pelo contrário, estavam firmemente resolvidos a continuar, a trabalhar, a agir para que ele progredisse. No entanto, era como um marinheiro disposto a se dedicar para que o navio chegasse ao porto, mas disposto a trabalhar ao mesmo tempo para comandar o navio, caso o comandante morresse… “Ele está muito doente; eu quero ser o comandante!”
Isso produzia o seguinte estado de espírito: começavam a se importar prodigiosamente mais pelo interesse pessoal do que pela Causa. E de cinquenta vezes por dia que cogitassem num tema, quatro ou cinco eram a respeito da Causa e umas quarenta e tantas vezes sobre o “negocinho” ou a “politiquinha” que estavam fazendo, o que lhes tomava a atenção. E o resto ficava completamente relegado.
Isso ia tão longe que a pessoa podia presenciar os fatos mais admiráveis na ordem da vocação e não se incomodava. Mas se lhe avisassem durante uma reunião a mais importante: “Olhe, agora alguém está organizando a Sede e vai mudar a posição de sua cama”, ele não poderia mais prestar atenção, e até o fim, porque tinham mexido na cama dele.
Lentamente, esse foi o estado de espírito criado no Grupo. Por mais que eu os prevenisse contra isso e chamasse a atenção, era como se as minhas palavras fossem ocas, não tinham alcance. Eu expunha, todos ouviam com respeito: “Como é bem intencionado o Dr. Plinio, não é? Mas… e a minha cama que mudou de lugar?!” Ou então: “Será mesmo que eu consigo tal cargo para mim?” Ou: “Conseguirei ser nomeado encarregado de tal setor?” Isso tomava completamente o interesse do indivíduo e ele se tornava um tíbio.

De vez em quando havia uma defecção. Podíamos evitá-la com muito esforço e muita graça de Nossa Senhora, mas de si a crise tendia para uma apostasia. Naturalmente, onde há muitos que tendem para algo, alguns caem nesse algo.
Um exemplo ocorrido no Antigo Testamento
Isso me faz lembrar um episódio da história dos judeus que, como se sabe, no Antigo Testamento eram o povo eleito, o povo bem-amado de Deus, descendente de Abraão. Houve um tempo em que eles eram governados por autoridades, a quem davam o título de Juízes. Não eram meros juízes; eles julgavam casos, mas tinham o governo geral do povo de Israel. Eram varões de altíssima virtude, e tudo quanto faziam era por inspiração de Deus. O que equivale a dizer que era um povo governado por Deus, o povo mais feliz da Terra.
Ora, eles deixaram de admirar os Juízes e suas decisões, e passaram a olhar para os outros povos da Terra que eram governados por reis. Então pediram a Deus que eliminasse o governo dos Juízes, dando como razão isto: “Dá-nos um rei, para sermos como as outras nações” (1Sm 8, 5). Deus Se desagradou do pedido insolente, prometeu atendê-los, mas os advertiu da dureza de serem governados pelos homens. Pelo exemplo que eles teriam de si mesmos, saberiam como era dura a vida cotidiana dos povos os quais invejavam (cf. 1Sm 8, 5-20).
Foi o que aconteceu. Eles tiveram reis, mas no geral lhes deram trabalho, fizeram irregularidades… O próprio Davi que fora tão santo, pecou. Os reis se dividiram em dinastias opostas, cometeram desatinos, castigando dessa forma o povo que não admirara o que Deus lhe dera, mas o que Ele havia dado aos outros, que era muito menos do que aquilo que tinham. E porque eles pecaram contra a admiração, caíram nos outros pecados.
Os que entraram para a TFP e se transviaram pela admiração dos negócios, de um modo ou doutro pecaram, porque admiraram mais as coisas dos homens do que as de Deus. Daí surgirem encrencas de toda ordem na vida espiritual; daí insucessos na vida temporal; daí também as crises internas.
Atitudes fora de propósito
Por exemplo, a provação do malogro dos êremos, que coisa tremenda!2
Os êremos haviam se formado todos cheios de esperanças… A graça de eremismo tinha surgido como último fruto, mas já debilitado, seco. Por exemplo, o que ruiu estrondosamente foi o Êremo de São Bento I! E, um pouco antes do desastre, estava nas últimas.

Houve uma reunião festiva por ocasião de um aniversário realizada numa sala do andar superior do São Bento, para a qual congreguei membros de outros êremos, já que o São Bento se encontrava meio vazio. Sentei-me, comecei a discorrer sobre certos pontos doutrinários, e um dos presentes interrompeu-me dizendo: “Mas é sobre estas coisas que o senhor vem nos falar nesse aniversário? Isso não nos importa nada”. E um outro logo reagiu, parece que estava combinado: “Isso não nos importa nada, e sim que o senhor trate de assuntos concretos. Isso é perfumaria, tintura!”
Interroguei sobre quais seriam esses assuntos e eles entraram em problemas logísticos, os quais eu não conhecia e eles não haviam mencionado. Eu tratei dos problemas e, quando desci, aproximou-se um deles que, com voz embargada, me disse recear ter faltado ao respeito comigo. Eu ainda tive de tranquilizá-lo, porque notei que se eu confirmasse que ele faltara ao respeito, ele se revoltava.
As asas de corvo da mediocridade
É preciso reconhecer que as circunstâncias internas de nossa instituição eram altamente preocupantes, devido a essas infidelidades enormes, às provações e dificuldades que podiam facilmente determinar o fechamento do Grupo. Não se pode ter ideia das fragilidades dele, e quantas e quantas vezes ele esteve para ir água abaixo, por cindir-se internamente durante esse período.
Uma das coisas mais pungentes era ver vocações de primeiro quilate de repente se esboroarem. Houve muitas graças recebidas no entusiasmo dos primeiros momentos, gradativamente recusadas depois, rumo à fossa das almas, chamada mediocridade.
A mediocridade causava apreensões… não aos medíocres, porque são os únicos que se sentem seguros dentro dela. Quem não é medíocre percebe os riscos da mediocridade; o medíocre, pelo contrário, se instala nela como quem está acomodado numa magnífica poltrona. Ele julga dirigir e ter uma tribuna do fundo de sua mediocridade, e não percebe estar num precipício. Esse é o medíocre.
A mediocridade estendia suas asas negras de corvo sobre o Grupo, e não se via bem qual o modo de atalhar a situação.
Atmosfera hipopotâmica da mediocridade
Sobre a conjuntura internacional e a nacional pairava a esperança, firme como uma promessa, de que a “Bagarre”3 viria, se desataria e resolveria tudo. A insistência em esquadrinhar todos os cantos do horizonte para ver onde havia possibilidade de “Bagarre”, equivalia à afirmação de que os fatos, de si, falavam a favor dela. Entretanto, esses não eram os únicos do panorama, eles configuravam apenas um aspecto deste, pois o que o dominava era mais bem a ideia da estabilidade.
Estávamos no governo do malfadado antecessor do Carter,4 com o Kissinger5 como Secretário Geral de Estado dirigindo tudo. Havia almas desse gênero, inteiramente “kissingerianas”. A détente6 dos Estados Unidos com a URSS; a Ostpolitik7 da Alemanha Ocidental; e depois, a do Vaticano com a URSS, em pleno, caudaloso e despreocupado curso. Quanto mais esse fenômeno se estendia, mais parecia que a paz nos estrangulava e as esperanças da “Bagarre” rareavam.

Se o adjetivo “hipopotâmico” existisse em português… Nossa língua é como o rio Amazonas, o qual não pode ser bebido por pessoa alguma, nem em um nem em mil goles; assim, não há quem conheça a língua portuguesa inteira, e ela pega umas surpresas: de repente, talvez encontremos num dicionário a palavra “hipopotâmico”; nunca, porém, a ouvi dizer. Se ela não existe, fica me servindo aqui para exprimir o pensamento como me está no espírito.
A calmaria hipopotâmica pairava sobre a terra, deitando-se asquerosamente sobre ela. Não era a calmaria da paz, da tranquilidade da ordem, mas a euforia da desordem, rindo dos que amam a ordem, como que dizendo: “Estás vendo? Sou a desordem, e também tenho minha tranquilidade morna, poluída e infindável. Vou estendê-la sobre ti como um tapete de poluição”.
Eram os dois panoramas: o interno, com a mediocridade e as sinistras seguranças de si mesmo; e o externo, cada vez mais vergando sob o peso morno e asqueroso dessa falsa tranquilidade.

Internamente, era a mediocridade daqueles que, contagiados pela tepidez do “hipopótamo”, não queriam viver dos grandes ardores do Reino de Maria. E, impressionados pelo nina-nana maldito dessa situação externa – quando todo o mundo estava contente e feliz, era a “Bagarre azul”,8 e parecia que essa tranquilidade da desordem não terminaria mais –, se deixavam contaminar e não só perdiam a esperança da “Bagarre”, mas também o amor por ela. “Ah, se tivéssemos o morno do ‘hipopótamo’ para nos aquecer a vida inteira!”
Esfriamento do fervor por causa do egoísmo
Creio que dois ou três anos antes do desastre se deu este fato: publicou-se uma notícia espantosa para aquele tempo, de que o Nixon,9 então Presidente dos Estados Unidos, faria uma visita à República Popular Chinesa.10 E isto foi um “estrondo” pelo mundo inteiro: “Por que, como é?! Um país comunista!” O Nixon deu esse passo amaldiçoado, realizando a visita em atmosfera de cordialidade.
Eu fiz uma longa reunião demonstrando a gravidade disso. Era a “Bagarre” que vinha! Vinha de longe, estava dando um passo marcante no caminho. O próprio Lanusse,11 Presidente da Argentina, usou esta fórmula abominável: a “queda das barreiras ideológicas”. Mas a reunião foi ouvida num desinteresse enorme! Deixei passar a semana sem mencionar o assunto.

Havia umas janelas basculantes no auditório da Sede São Milas na qual se realizavam as reuniões nesse tempo. Na próxima reunião de sábado perguntei: “Os senhores ouviram a reunião passada com um desinteresse notável. Proponho um assunto, respondam-me com toda a franqueza. Se enquanto eu falava, entrasse um gato através desse basculante e pulasse em minha mesa, o que chamaria mais a atenção e comentariam mais: o caso do Nixon ou o gato?”
A grande maioria optou pelo caso do gato… Isso representava bem todo o esfriamento daquela gente, na sua quase totalidade correta, direita, mas completamente enlaçada em seu próprio egoísmo. Quando deixamos o egoísmo formar-se na alma, ele nasce como cipó enrascado na árvore: ela cresce e ele vai junto, asfixiando-a. A árvore é a vocação, o cipó é o egoísmo que agarra e acompanha exclusivamente o interesse próprio. Cada vez mais a árvore vai ficando fina e o cipó grosso! É fatal!
A “Bagarre” era anunciada com insistência para mostrar a possibilidade de ela estourar e para nos dar o conforto dessa esperança de que em breve Nossa Senhora haveria de intervir, afastando o “hipopótamo”.
O sentido da Reunião de Recortes12 era dar este aviso: “Não vos iludais, porque a ‘Bagarre’ vem e ela julgará a vossa mediocridade. Ela já está nos confins do horizonte: ei-la aqui, ei-la lá, ei-la acolá! Eis tal gesto que faz sentido com tal exclamação, com tal acontecimento, com tal previsão. Vede o quadro no morno e no poluído desse ar sujo que a respiração do ‘hipopótamo’ cria em torno de si. Deitai a vista e percebereis a ‘Bagarre’ que vem com seu gládio de justiça! Ó, prestai atenção, este é o sentido desta insistência”.
Eu não estava chamando a atenção para um perigo imaginário; era um perigo real que ocupava parte do horizonte.
Nossa Senhora parece afastar-se
O que me sustentou durante todo esse tempo foi a “graça de Genazzano”. E a tal ponto que a minha saúde, em vez de ir água abaixo como em 1967,13 manteve-se tão razoavelmente, que pôde suportar de um modo bem galhardo, tomando em consideração a minha idade, a catástrofe do desastre que viria.
Pois bem, em nossa vocação existe um vai-e-vem e uma prova axiológica de as coisas aparentemente não darem certo. Isso tem uma importância fundamental, inclusive para antevermos a “Bagarre” e o que pode nos acontecer durante ela.
Um exemplo disso: eu havia feito todo o possível para vir a Sagrada Imagem,14 e correu tudo bem na primeira visita dela. Ao fim, levado pelo discernimento dos imponderáveis, tinha a certeza de que a Sagrada Imagem voltaria.
Quando a Imagem veio pela segunda vez, ocorreu um primeiro fato que me deixou desconcertado: ela, aos poucos, foi se atolando na frieza geral, perdendo a expressão, ficando completamente átona, apagada, como se ela não fosse nada. E presenciei a diminuição do fervor do Grupo para com ela.
Uns meses antes do desastre, a Sagrada Imagem começou a não me comunicar mais nenhuma expressão e, mais ainda, o quadro de Genazzano, que nunca deixara de me ser expressivo, também se apagou completamente para mim. Do lado intelectivo evidentemente não, mas sim do lado sensível, o qual tem uma importância muito grande! Porque nesse caso não se trata de nossa sensibilidade comum, corrente, mas de uma manifestação da graça sobre os sentidos da alma. É uma ação de Deus, portanto. Quando a alma deixa de perceber essa ação divina, é evidente que se passa nela um depauperamento muito grande, pelo menos aparente.
Outra luz tão expressiva para mim também se apagou. Era relacionada com Nossa Senhora do Bom Sucesso, a respeito da qual tantas vezes eu pensava: “Aqui há algo para mim, para a minha vocação, que eu não percebo o que é, mas veremos”. Entretanto, em meio a tal degringolada do Grupo, ela estava de igual modo inteiramente inexpressiva.
Veio o desastre de automóvel, com todas as incógnitas que ele trouxe…
1) Em 16 de dezembro de 1967, durante a crise de diabetes que o assaltara gravemente, Dr. Plinio recebeu de um amigo vindo da Itália um quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano. Ao fitar a estampa, teve a inesperada impressão de que a figura da Santíssima Virgem, sem mudar em nada, exprimia para com ele maternal doçura, confortando-o e incutindo-lhe na alma a convicção de que não morreria sem ter realizado a própria missão.
2) Ver Revista Dr. Plinio n.322, janeiro de 2025, cap. 5.
3) Do francês: conflito desordenado e profundo. Palavra usada por Dr. Plinio para se referir ao grande castigo de Deus à humanidade, se esta não se voltar para Ele, profetizado por Nossa Senhora em Fátima.
4) Gerald Rudolph Ford (1913-2006), precedeu James Earl Carter Jr. na presidência dos Estados Unidos.
5) Henry Kissinger (1923-2023), Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos durante os governos do Richard Nixon e Gerald Ford (1969-1977), pioneiro na política de détente.
6) Do francês: distensão. Termo usado para designar o período no qual houve uma distensão das tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética, durante a Guerra Fria.
7) Do alemão: Política do Leste. Termo usado para descrever os esforços para normalizar as relações da Alemanha Ocidental com a República Democrática Alemã e os países do leste europeu, ambos subjugados pelo comunismo.
8) A expressão “Bagarre azul” alude ao estado de espírito surgido na época do desenvolvimentismo brasileiro, no qual, mesmo em meio ao caos, as pessoas se deixavam iludir pela prosperidade e pelo avanço da industrialização.
9) Richard Milhous Nixon (1913-1994).
10) Viagem realizada em fevereiro de 1972.
11) Alejandro Agustín Lanusse Gelly (1918-1996).
12) Conferência na qual Dr. Plinio comentava os acontecimentos mais recentes ocorridos no Brasil e no mundo, recolhidos de jornais.
13) Quando foi acometido por uma forte crise de diabetes.
14) Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima que derramou milagrosas lágrimas em Nova Orleans, Estados Unidos, em 1972.