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II – Sede de almas

A fim de alcançar de Nossa Senhora graças especiais e eficazes para aqueles que o seguiam, Dr. Plinio ofereceu-se como vítima expiatória, sendo em pouco tempo aceito pela Providência.

Conhecendo perfeitamente a origem dessa crise, tratei sobre isso com alguns membros do Grupo em conversas pessoais mais do que em reuniões coletivas, porque nestas, aqueles a quem incumbia prestar atenção, não o faziam.

Que esses filhos sejam salvos!

Flávio Lourenço
Dr. Plinio em 1973

Flávio Lourenço
Oração no Horto – Convento do Espírito Santo, Toro, Espanha

Entretanto, havia muito de bom – embora empoeirado e sujo – dentro da alma deles, e eu queria pedir a Nossa Senhora que tivesse a bondade de reerguê-los.

Então pensei: pedir isso a Nossa Senhora é fácil, mas eu não confio no valor das minhas orações. O que posso fazer é oferecer um sacrifício e, pelo valor deste, obter que esses filhos, que não são filhos da admiração, ou se quiserem, são filhos da admiração das coisas do demônio, sejam resgatados e salvos.

O discípulo deve ser como o mestre e, sendo Nosso Senhor nosso Mestre, nós devemos ter sede de almas como Ele. Eu tinha sede de almas, sobretudo, das almas da TFP. Vendo que estavam num período de depressão, de falta de entusiasmo e vitalidade, ofereci-me nessa ocasião para o que Nossa Senhora quisesse, a fim de evitar um grande número de defecções.

Uma moção interior

O oferecimento feito por mim teve um antecedente sem muita importância, mas narro para que tudo fique claro.

Arquivo Revista
Dr. Plinio despede-se da Sagrada Imagem, em 13 de maio de 1973

Antes da morte de mamãe1 – uns dez anos antes do meu desastre –, eu recebi a “graça de Genazzano”, a qual me trouxe uma grande distensão, uma tranquilidade única. Mesmo as situações mais críticas, essa graça fez com que fossem macias como o algodão.

Lembro-me de que certo dia eu estava vindo do Mosteiro da Luz de carro, passando naquele largo que fica antes do Estádio do Pacaembu. Numa esquina da avenida, ao lado direito de quem vai para o estádio, tem uma casa baixa, térrea. Eu tinha terminado as orações e – mais ou menos à altura dessa casa – vinha refletindo o seguinte:

“Alguma coisa não está correndo bem comigo, porque não estou sofrendo e devo sofrer. É evidente que não posso sofrer nas proporções que sofri antes da “graça de Genazzano”. Mas eu estou acabando por levar uma vida inútil, porque há quase dez anos sinto este macio. Durante algum tempo, para me refazer, está bom, mas depois, onde fica o holocausto?”

Sofrer por aqueles que não queriam sofrer

Naturalmente eu podia oferecer a minha vida para o bem de nossa Causa.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em meados da década de 1970

De outro lado, eu sabia – e tenho certeza que foi comunicado por Nossa Senhora –, que Ela me manteria vivo até que eu cumprisse minha missão. Ou seja, Nossa Senhora não queria a supressão de minha existência; se Ela quisesse, eu a teria entregado e, portanto, não seria sério eu oferecer o sacrifício de minha vida, pois era pôr em dúvida a palavra d’Ela, e estaria em contradição com a “graça de Genazzano”. Eu temia que, se o fizesse, cometeria uma infidelidade a essa graça e, por castigo, Nossa Senhora me levaria. Eu então não deveria oferecer a vida, mas sim um holocausto. O que eu poderia oferecer? Qual seria esse holocausto?

Então Lhe ofereci aquilo que Ela poderia aceitar: que acontecesse comigo alguma grande desventura que me fizesse sofrer muito, mas compensasse o déficit existente; e que esse sofrimento fosse aceito e padecido por mim, em reparação por aqueles que não queriam sofrer.

Ao fazer o oferecimento, não me ocorreu um desastre de automóvel, pois nunca imaginara que me pudesse acontecer de ficar ferido e quebrado fisicamente como fiquei, mas pedi a Nossa Senhora para fazer de mim o que entendesse, como quem possui dinheiro no banco: saca quanto precisa. Que Nossa Senhora sacasse quanto Ela quisesse deste modesto banco chamado Plinio Corrêa de Oliveira: “Fazei o que Vos pareça melhor”. Deixei nas mãos d’Ela.

É claro que quem oferece o mais, oferece o menos, e quem estava disposto a oferecer sua vida, em todo caso estaria disposto a oferecer o que é menos. Depois, teria a relativa e pobre vantagem de conciliar as duas coisas: a vida mais o sofrimento.

Arquivo Revista
Salão Azul do Primeiro Andar

“Minha Mãe, eu Vos ofereço esse sacrifício”

Isso não se passou apenas entre Nossa Senhora e mim, senão eu não contaria. Lembro-me bem de que no sábado anterior ao desastre – o qual foi numa segunda-feira –, numa conversa entre alguns amigos, membros do Grupo, no salãozinho azul de casa, no Primeiro Andar, atentávamos para as circunstâncias gerais internas e externas ao Grupo e comentávamos a situação perigosa em que estava a TFP. Eu então disse, em termos mais ou menos expressos, não me recordo bem, que era preciso uma expiação, porque o Grupo estava em tal posição de tibieza e eu achava tão difícil mudar essa mentalidade, que seria só mesmo uma pessoa se oferecendo como vítima expiatória para endireitar as coisas, obter o perdão desse estado de espírito e o seu afastamento de nosso caminho.2 Do contrário, aquilo ruiria e a tristeza das tristezas seria que o desbotamento do Grupo fosse não como o de um campo sobre o qual passa uma nuvem que transitoriamente o obscurece um pouco, mas como o de um campo que vai derivando e afundando na lama. Era preciso evitar isso.

Todos ouviram, mas ninguém disse: “Eu faço”. Deixaram-me caminhar sozinho.

Eu não me lembro se disse aos amigos, mas enquanto eu falava, pensei de mim para comigo: “Está bom, se você acha isso necessário, então comece por oferecer-se você mesmo! Por que um outro? Por que não você? Ninguém acha bonito outro fazer o sacrifício se não tem coragem de fazê-lo ele próprio. Então, agora ofereça-se, quero ver sua coragem! Se você é chefe, o primeiro responsável é você e se para alguma coisa tem de ser chefe, seja para isso! Pule dentro do caldeirão você mesmo!”

Essa foi a minha impressão. É o diálogo violento de um homem consigo mesmo. A violência que se tem com os que desobedecem à vontade de Nossa Senhora deve começar por nós mesmos. O homem que não é violento contra si não tem direito de ser enérgico contra os outros, nem tem a seriedade de alma pela qual os outros o levem a sério.

Com efeito, o medíocre tão imprevidente, tonto e desprezível que não vê o assédio dos piores adversários, sente quando está tratando com uma alma séria e capaz de praticar violências contra si mesma; mas também sente quando está tratando com um outro medíocre. Diante da alma séria ele fica um pouco intimidado; em face do outro medíocre, eles se olham como comparsas e passam o recibo mudo um para o outro, são amigos…

Isso é um estímulo de passagem, para não termos ilusão e sabermos ser enérgicos conosco.

Não cheguei a fazer um ato formal nem uma oração especial no momento, mas durante a conversa eu disse interiormente a Nossa Senhora: “Minha Mãe, eu vos ofereço este sacrifício”.

E ainda comentei com eles: “Se eu vier a falecer, dez minutos depois de ter morrido, em torno de mim estarão fazendo mundanismo com pessoas de minha família e com outros que eventualmente venham”.

Não insisti no assunto, despedi-me de todos. Era tarde, fui dormir sossegado, os outros também se dissolveram e eu não tomei mais nenhuma deliberação expressa a respeito do caso.

Pressentimento de uma tragédia

Passei um domingo comum e, no dia seguinte, muitos fatores levam a crer, que Nossa Senhora aceitou o sacrifício!

Recordo-me muito bem de que na segunda-feira saí de casa por volta das nove da manhã, com uma pequena insegurança que não me é comum. Não viajei diretamente, pois antes de partir para o Êremo do Amparo de Nossa Senhora,3 onde iria para escrever um trabalho, eu tinha que dizer uma palavrinha muito rápida a um membro do Grupo que estava, naquele momento, no Êremo de Nossa Senhora da Divina Providência. Combinei com ele de nos encontrarmos numa ruazinha de Perdizes,4 perto do êremo, numa espécie de belvedere, de onde se tem uma visão do bairro. Eu desci do automóvel – nesse tempo eu estava começando a usar a minha Mercedes bordeaux –, e andei um pouquinho com ele de um lado para outro, talvez uns dez minutos, conversando, combinando umas coisas. Depois me despedi dele e entrei no meu carro para ir a Amparo.

Arquivo Revista
Carro de Dr. Plinio após o desastre, em 3 de fevereiro de 1975

Arquivo Revista

Lembro-me de que estava com muito sono e, ao entrar no veículo, deu-se um fato curioso: eu – que vinha sob a sombra do lumen de Genazzano e de Fátima que se retiravam – não estava pensando no oferecimento que tinha feito. Assaltou-me uma dúvida: “Eu sento atrás ou na frente?” Pensei: “É mais contrarrevolucionário ir atrás”. Mas depois refleti: “Estou tão abatido, tão cansado e tão provado. Eu viajo com mais conforto na frente.”

Veio-me à mente o seguinte: “Eu vou dormir e esse automóvel de repente dá uma trombada – nunca tive medo disso – e me apanha dormindo. Se me sento na frente, posso ser liquidado. Seria mais prudente ficar na parte de trás que é menos perigosa para um desastre e não dormir, porque, se houver um acidente, eu me protegerei e me defenderei melhor.”

Depois pensei: “Vamos andando! Isso são sonhos, eu não posso me deixar levar por simples impressões. Esses prognósticos podem não querer dizer nada. Não há nenhuma razão para pensar em desastre mais especialmente do que em outra ocasião. O razoável é ir na frente, é dormir. Então, vou na frente e vou dormir”.

E me sentei onde vou sempre quando viajo, ao lado do chauffeur. Se eu resolvesse ir atrás teria tido pena do rapaz que estivesse na frente, mas quanto a mim, teria sido poupado.

Quando parti, tive a impressão terrível de que ia afundar-me num perigo muito grave. E pensei: “Sinto uma dilaceração e que algo está me levando para uma tragédia; eu não sei o que é. Será uma pura imaginação ou uma fantasia?” Mas deixei isso de lado.

Às vezes, as pessoas têm pressentimentos sinistros que depois não se verificam, eram meras impressões; comigo já aconteceu duas vezes a respeito de outras circunstâncias.

Rezamos as orações comuns do trajeto, o automóvel seguiu e a certa altura da saída de São Paulo, depois de entrar na estrada, veio-me o desejo de dormir. Inclinei o banco para me esticar e adormeci.

Esses foram os pressentimentos que eu tive antes do desastre.

Consumação do oferecimento

Eu só vim a dar acordo de mim quando estava no hospital de Jundiaí, todo quebrado, espatifado, recebendo os primeiros curativos. Apenas me ficou a ideia de ter visto rapidamente um caminhão muito alto que esbarrava conosco.

Minha irmã, a filha e o neto dela receberam a notícia do desastre e viajaram de São Paulo para Jundiaí para estar comigo. Eu soube que caiu uma chuva tremenda sobre a cidade, como um verdadeiro dilúvio. Foi tão forte que eles foram obrigados a parar o automóvel e ficaram duas horas na estrada esperando a chuva diminuir, porque era uma loucura continuar. Isso foi um sinal de tragédia, uma coisa horrorosa.

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Hospital da Caridade de São Vicente de Paulo, Jundiaí, onde Dr. Plinio foi socorrido

Quando me encontrava no solo, estava desmaiado. Disseram-me que, ao ser levado ao hospital de Jundiaí, eu tinha um certo conhecimento de mim mesmo, mas eu me recordo só de lampejos. Perdi de novo os sentidos e só acordei quando entrei no hospital de São Paulo, onde comecei a perceber algo e vi alguns antigos membros do Grupo que me esperavam na parte exterior do hospital para saudar-me. Então os reconheci e lhes disse uma palavrinha. Mas logo depois perdi o conhecimento outra vez.

O desastre estava feito, tudo tinha se passado, tudo tinha se liquidado, tudo tinha redundado neste resultado: anos de muletas ou cadeira de rodas, com várias outras sequelas realmente muito pesadas, de diversas ordens, até coisas pequeninas que se seguiram como consequência da operação… Começou aí uma série de padecimentos muito maiores do que eu imaginava. Uma verdadeira barbaridade! Daqui para frente, quanto tempo haverá? Deus o sabe.

Um homem de admiração

Não se pode negar que o holocausto por mim oferecido foi muito bom para o Grupo. Nossa Senhora me deu a graça de fazer isso porque procurei, durante a vida inteira, ser um homem de admiração.

Arquivo Revista
Detalhes do carro de Dr. Plinio após o desastre, em 3 de fevereiro de 1975

Arquivo Revista

Eu designo como homem de admiração, não um homem admirável, feito para ser admirado, ou que merece admiração, mas um homem que é feito e vive para admirar. E como eu era assim, Nossa Senhora me deu bastante admiração pela Igreja, pela Causa Católica, pela Cristandade, pela Contra-Revolução, para que eu quisesse me jogar nesse lance por inteiro.

1) Ocorrida em 21 de abril de 1968.

2) Décadas antes, tendo tomado conhecimento da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus, Dr. Plinio tornou-se grande devoto desta Santa e passou a admirar nela o caráter expiatório de sua missão. Como outras almas contemplativas, ela se ofereceu a Deus pelos pecadores a fim de que estes se salvassem e para que os planos da Divina Providência se realizassem de modo pleno.

3) Localizado no município de Amparo, Estado de São Paulo.

4) Bairro nobre da cidade de São Paulo.

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