A escravidão de amor a Nossa Senhora é um ato de suprema liberdade que nos deve dar apetência de todas as obediências e ser a fonte de inspiração de todas as altivezes, porque é só na união de cogitações e de vias com a Santíssima Virgem que se alcança essa plenitude do espírito católico.
O que vem a ser propriamente a consagração como escravo de Nossa Senhora? O que ela traz consigo, quais são seus elementos constitutivos e que ideias devem povoar nosso espírito a esse respeito?
Verdadeiro significado da escravidão de amor
A maior sujeição que uma pessoa possa ter a outra consiste na escravidão. Em termos pagãos, portanto não católicos, do direito romano, o escravo era tido como um objeto inanimado, do qual o dono podia fazer o que queria, inclusive matar. Isso é contra o direito natural, ainda mais quando se trata de um batizado! Ele é um ser vivo e remido pelo Sangue preciosíssimo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, um ser que foi sagrado pelo Batismo.
Contudo, mesmo entre os batizados e tomando as limitações impostas pelo direito natural, a escravidão representa a maior sujeição que uma pessoa pode ter a outra.
São Luís Grignion de Montfort dá à Consagração a Nossa Senhora o título de escravidão de amor. O que é a escravidão de amor? Dentro dela, o que faz a palavra “amor”?
A palavra “amor” tem sido de tal maneira profanada – inclusive nos livros de piedade, não no sentido corrupto, mas no de devoção sentimental – que me parece necessário considerar bem o seu significado neste contexto.
Na Sagrada Escritura, quando Deus repreende o povo eleito por sua falta de amor a Ele, usa esta fórmula: “As vossas cogitações não são as minhas e as vossas vias não são as minhas” (cf. Is 55, 8). Quer dizer, o que pensais não é conforme o que Eu penso e o que fazeis não é conforme o que Eu quero.
Então, o amor o que é? É o contrário disso. É um pensar, um querer e um agir do mesmo modo. O que significa, em última análise, o seguinte: se possuímos a mentalidade inteiramente ortodoxa, isto é, temos a mentalidade da Igreja Católica, se nosso querer não é senão o desejo do triunfo da Santa Igreja e se nosso agir é inteiramente a favor da Contra-Revolução, então dessa maneira nós amamos.
Pensar, querer e agir como Nossa Senhora
Ora, antes de tudo a escravidão a Nossa Senhora é uma atitude da alma pela qual pensamos tudo como Ela pensa. E nós temos ao nosso alcance um elemento que nos indica qual é a mentalidade de Nossa Senhora: é a da Igreja Católica, porque Ela e a Igreja têm uma reversibilidade, em certo sentido, completa.
Em segundo lugar, devemos querer tudo quanto a Santíssima Virgem quer. E no querermos tudo quanto Ela quer já entra um alargamento de horizontes. Nossa Senhora é bem verdade que deseja a salvação de minha alma, mas Ela não quer somente isso. Ela deseja a salvação de todos os homens e a glória da Igreja e do Filho d’Ela agora, sicut erat in princípio, et nunc! Agora, et semper! Ela não Se contenta com a glória passada e com a futura, Ela quer a glorificação presente do Filho d’Ela, da Igreja Católica, d’Ela mesma. Devemos querer a glória d’Ela agora.
Se eu estou inteiramente unido a Nossa Senhora, não posso ter o meu horizonte limitado à minha vida espiritual. E o modo mais seguro de eu fazer da minha vida espiritual um pneumático furado, que não presta para nada, é preocupar-me exclusivamente com ela, é limitar egoisticamente o meu horizonte a ela: está liquidada, minha vida espiritual não adianta nada.
Então, amar a Causa de Nossa Senhora. Depois, fazer também as coisas que Ela quer.

Assim, uma pessoa que se coloque nessa posição de escravidão deve estar ratificando a toda hora seu pensamento para acertá-lo com o da Igreja. Precisa expulsar de si a mentalidade revolucionária, o espírito mundano, para ter somente a mentalidade católica.
Em que sentido isso é um ato de escravidão? A pessoa quereria agir de um determinado jeito, mas age como não quer para seguir a mente da outra. E nisto entra um ato de verdadeira sujeição, de verdadeira humilhação, pelo qual a pessoa abaixa a cabeça e aceita a autoridade que sobre ela se exerce. É até a mais interna e requintada das escravidões, em que o homem sacrifica a sua própria ideia, o seu próprio cogitar, que é o ponto de partida de sua operação, de seu agir.
Então se compreende como isso verdadeiramente pode se chamar uma escravidão.
Escravidão feita de amor?
Por que se chama escravidão de amor? Porque consiste nessa união, que é um dos elementos de amor. Formalmente, a substância dela é um ato de amor, é por um ato de amor que nos escravizamos a Ela. Isso é um modo de amar.
A vontade. Com a vontade, isso é mais fácil de perceber. Nós queremos a toda hora coisas que não deveríamos querer. Nós praticamos um ato de escravidão querendo o que Ela quer e não aquilo que nós queremos. É o próprio do escravo, exatamente. Ele não tem vontade própria. Mandam-lhe fazer alguma coisa que ele não quer, ele executa porque lhe mandaram.
Chama-se, portanto, escravidão de amor porque é feita por união e não por medo de uma ameaça, de uma força física, nem por opressão ou aterrorizando, mas é realizada por um ato livre. Poderíamos fazer de outra maneira, mas queremos fazer assim por amor.
Todas as nossas ações nesta vida constituem, nesse sentido, atos de escravidão, porque Nossa Senhora quer que nós façamos a coisa de um determinado modo. Nós queremos de outro modo e fazemos como Ela quer. É uma ação de escravo, que faz o que não quer.
Mais uma vez eu volto a dizer: é feito para realizar aquele ideal, que é a união de cogitações e de vias com Ela e, portanto, é feito num ato de amor. Isto é coidêntico com o amor, é um ato de amor a Ela que fazemos. Aí se configura a ideia de escravidão de amor.
No que consiste a verdadeira liberdade
Há, entretanto, algo de paradoxal, que é um título a mais para nos fazer amar verdadeiramente essa escravidão. Tibi servire regnare est – Servir-te e ser teu escravo é ser rei. A mais alta liberdade do homem consiste em ser escravo de Nossa Senhora.
Em que sentido essa afirmação é verdadeira? Consideremos a doutrina da Igreja a respeito da liberdade dos homens, isto é, do livre arbítrio.
Todo ser humano conhece os princípios básicos da moral. Porém, por debilidade da inteligência, precisa do apoio de outrem para encontrar a totalidade das regras da moral. Ademais, ainda quando o homem tenha conhecido todas as regras do bom procedimento, se ele não tiver o apoio de alguém que o estimule, controle e oriente, não será capaz de cumprir essas regras morais que ele conheceu.
Assim, normalmente falando, para praticarem a Lei de Deus, as virtudes que qualquer um deve praticar, os homens estão uns em relação aos outros numa dependência quanto ao pensar e ao agir.
A Doutrina Católica ensina que a verdadeira liberdade para o homem consiste em, tendo conhecido o bem, praticá-lo. O que diminui ou elimina essa liberdade? É a apetência desregrada que cria dificuldades a ele para fazer aquilo que sua razão indica, escravizando-o ao vício.
Logo, a liberdade não é a faculdade de escolher entre o bem e o mal indiferentemente, mas a possibilidade de fazer o bem.
Por exemplo, uma criança vê outra chorando porque não tem alimento, e ela tem comida que sobra. O movimento normal de sua alma é de ver que ela deve dar uma parte de sua comida para a outra criança. E a sua liberdade consiste em atender àquele movimento despertado retamente na natureza dela. Nisto ela será livre.
Ou então, a pessoa vê que vai ser declarada a Cruzada e tem um primeiro movimento: vamos à Terra Santa defender o Sepulcro de Cristo. A liberdade do homem consiste em levar esse movimento nobre, despertado nele pela natureza e pela graça, ao seu termo final, que é de ir à Guerra Santa.
O medo constitui para ele um vínculo que lhe tira a liberdade de ir à Terra Santa, ou lhe diminui a liberdade de ir à Guerra Santa, como no caso da criança de não dar, porque qualquer vício que a leva a não dar a comida para a outra tira sua liberdade de fazer aquilo. A Revolução encharca as almas do conceito oposto a isso, mas essa é a doutrina da Igreja.
Ninguém é mais livre do que os Anjos no Céu. Ora, os Anjos não têm nenhum impulso para o mal.
Ninguém é mais livre do que Nossa Senhora. Ora, qual era a liberdade d’Ela? Era de ficar hesitando entre a pureza e a impureza? A hipótese é blasfema! E, pelo contrário, o impulso que todo ser tem para a pureza, n’Ela atingia seu termo excelentemente, sem entraves, sem embargo de nenhuma maneira. Eis a liberdade d’Ela.
Em última análise, se a liberdade fosse a possibilidade de pecar, Deus não seria livre, porque Ele não pode pecar. Portanto, a essência da liberdade é a possibilidade de fazer aquilo que a razão indica nos seus elementos primeiros, inocentes, nobres, verdadeiros. O resto não é liberdade.
Ao enviar a prova, Deus não tolhe a liberdade, mas a aperfeiçoa
Ao permitir que os anjos, Adão e Eva e nós fôssemos tentados, Deus não tirou a liberdade, porque não ficamos impedidos de praticar o bem. Ele permitiu que aparecessem entraves, obstáculos a essa liberdade, para que ela se superasse a si própria, afirmando-se contra o obstáculo. Era uma prova de amor que Ele queria.

É mais ou menos como numa corrida de cavalos em que o organizador da prova coloca obstáculos na pista. Não é para o animal não chegar, mas para ele desenvolver melhor as suas possibilidades de encontro aos obstáculos e chegar, de um modo mais excelente, com o perigo de quebrar as pernas.
Um outro exemplo seria o de alguém cuja uma das pernas não funciona bem. Ele não é de todo paralítico e, fazendo um esforço, pode andar e chegar aonde ele quiser. Ele terá um mérito maior por ter andado naquelas condições do que um outro a quem isso não representa nada. Então, a liberdade de ele andar foi de algum modo cerceada, diminuída pelo defeito, mas é reafirmada vitoriosamente quando ele anda apesar da deformidade.
Portanto, a prova não tira a liberdade, apenas lhe coloca o entrave, com possibilidade de o homem superá-lo por um uso superlativo de sua própria liberdade.
Na obediência se encontra a fina ponta do exercício da liberdade
Se é verdade que a liberdade para mim consiste em que os bons movimentos que brotam de mim, ora pela ação da natureza, ora pela ação da graça, cheguem a seu termo normal, como esses movimentos são sempre de acordo com os Mandamentos, acontece que, quando obedeço aos Mandamentos, exerço minha liberdade. Nesta perspectiva, a plenitude da liberdade é idêntica a obedecer.
Entretanto, na minha liberdade, vejo que sou concebido no pecado original. E que eu conheço o suficiente a respeito do bem para saber que ele é mais amplo do que minha mentalidade pode abarcar, de maneira que algo eu vejo e algo não vejo. Logo, eu devo me apoiar em quem vê. Assim, minha liberdade consiste em procurar quem vê e pedir-lhe que me leve, que me esclareça para eu andar.
Conformando meu modo de ver ao daquele que me explica, que me persuade e que eu vejo que vê mais do que eu e que, portanto, devo seguir, embora eu não compreenda, eu obedeço. Mas, no fundo, exerço minha liberdade, porque sigo aquele caminho que devo querer seguir e que há de levar a bom termo os bons movimentos de minha alma.
Por fim, há um terceiro modo de liberdade. Quando vários querem fazer uma obra, está na natureza das coisas que haja um que mande, porque do contrário a obra não se faz. Isso era assim mesmo antes do pecado original e é um ponto aceito pelos teólogos unanimemente. Se Adão e Eva não tivessem pecado, teria havido governo, teria havido estados, teria havido nações, teria havido uma organização incomparavelmente mais perfeita do que a atual, mas com uma autoridade.
Por que eu, obedecendo à autoridade, que eventualmente pode até ver menos do que eu, mas que é autoridade, exerço minha liberdade? É porque se eu quero que as coisas estejam em ordem, eu hei de compreender que há de haver uma autoridade que possivelmente veja menos do que eu, mas que mande. E eu farei o que a autoridade manda.
De maneira que continuamente, segundo a Doutrina Católica, o exercício da obediência é o exercício da fina ponta da liberdade. E a dignidade do homem não consiste, como diz a Revolução, em não obedecer, mas em obedecer a quem se deve.
O êremo é um “refugium libertatis”
Por aí podemos considerar o valor da regra de um êremo.1 Um êremo não pode viver sem regra. E se um indivíduo entra para um êremo, ele aceita um amparo para exercer por inteiro sua liberdade, para se ver livre das paixões que constituem um entrave para seu ato livre. Um êremo deveria chamar-se refugium libertatis. A pessoa vai para lá a fim de assegurar sua liberdade contra os movimentos desordenados que a impediriam de ser plenamente livre. Um eremita é mais livre do que um não eremita; e o eremita que cumpre a regra é mais livre do que aquele que não a cumpre. Esta é a visão católica das coisas.

Por isso, frases como esta: “Sóror tal rompeu os vínculos do século, libertou-se dos grilhões do mundo, entrando na plena liberdade dos filhos de Deus, no Convento da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, no ano de tal…”; ou esta: “Libertam-se dos grilhões deste século e entram na eterna liberdade do Céu”, exprimem uma verdade muito profunda. De fato, no Céu a pessoa se torna impecável e a tal falsa liberdade de pecar desaparece. Ali é a suma liberdade, enquanto a Terra é o cativeiro, chamado na Salve Rainha de degredo. O que estou dizendo é o leite mais delicado e mais fino da Doutrina Católica.
Essas considerações nos levam a compreender que o sentimento de nossa dignidade deve estar muito ferido quando praticamos uma ação contra a nossa liberdade, isto é, uma ação má, que impediu nosso movimento natural de se realizar até seu termo final. Pelo contrário, nossa alma deve se sentir muito confortada quando praticamos uma boa ação.
Aquele dito admirável de Santa Teresinha do Menino Jesus: “Eu sou fraca demais para não dar tudo” equivale a dizer: “Eu sinto um tal peso das minhas paixões, que para me conservar inteiramente livre, não posso ter grilhão de nada, entrego tudo porque tudo é grilhão para mim; mas, acima de tudo, quero ressalvar a minha liberdade de pensar a verdade e de fazer o bem. É a única liberdade que há, não há outra”.
Então, quando praticamos a virtude, é um dado positivo, um fator estimulante o fato de não termos a seguinte vivência revolucionária: “Agora estou podando, diminuindo, comprimindo algo em mim. Eu queria fazer algo e não posso”. Isso é precisamente o que mingua a virtude e deforma a mentalidade do homem virtuoso. Ele deve ter consciência da realidade do contrário: “Agora estou sendo livre, estou atingindo a minha plenitude, porque me libertei das coisas que para mim eram grilhões. Consegui rejeitar coisas que me atormentavam, me prendiam. A cada recusa que faço a mim mesmo, na linha da virtude, devo me sentir mais glorificado, mais dignificado, mais plenamente homem batizado, filho de Deus, porque realizei isso”.
Eu estive no Êremo de São Bento, passei a Semana Santa lá. Havia ali eremitas de dois outros êremos: o Præsto Sum2 e o de Nossa Senhora da Luz Profética.3 Em certo momento, entrei na biblioteca e encontrei alguns eremitas de diversos êremos, em pleno dia, sentados; cada um fazia a sua leitura, atentos no que liam, tão calmos e tranquilos que, conhecendo-os e sabendo bem que pula-pula eram antes, a primeira impressão que eu tive foi: “Que liberdade! Como as almas deles estão flutuando por esses espaços espirituais, desprendidas de tudo! Dir-se-ia que eles têm asas”. Exatamente porque essa é a realidade, essa é a liberdade de que nós devemos gozar.
Oposição entre o conceito católico e o mundano de obediência
É bem verdade que essa não é a única razão pela qual nós devemos obedecer a Deus. Devemos obedecer-Lhe não porque nisso encontramos nossa liberdade, mas porque Ele é infinitamente mais do que nós, tem o direito de mandar e é um holocausto nosso a obediência. É uma outra ordem de ideias, sacratíssima, indispensável; mas não vou analisá-la, porque a respeito dela não há dificuldades. Eu estou querendo tratar de um aspecto do problema da liberdade no qual existem dificuldades vivenciais criadas pela Revolução.
O conceito corrente nos ambientes mundanos é este: toda lei, toda autoridade é uma limitação para o homem. São verdadeiramente livres os homens que conseguem galgar, de maneira a irem se libertando das leis, da autoridade e mandando em vez de serem mandados. O ápice da liberdade será o homem que manda em todos. Receber um conselho é um ato degradante, porque todo homem deve resolver tudo por si. Recorrer ao apoio de alguém para praticar a virtude é um ato humilhante, porque o homem deve encontrar exclusivamente em si os recursos necessários para praticar a virtude. Fazer a vontade de um outro é humilhante, porque é colocar um homem acima do outro, mandando no outro e, portanto, degradar a natureza humana.
A Igreja Católica instituiu na Idade Média a civilização da obediência, em que toda a escala social, de alto a baixo, era feita de submissões entrelaçadas, cuja missão era de uns ajudarem os outros na plena prática da liberdade. A fórmula liberdade-obediência era medieval. A Revolução Francesa proclamou o contrário: todos os homens são inteiramente iguais e toda desigualdade importa numa superioridade e, portanto, na limitação da liberdade.
No que a obediência se tornou mais pesada para nós do que era para o homem medieval? Ele tinha dificuldade em obedecer, mas estava certo de que devia obedecer. Nós temos dificuldade em obedecer e estamos certos de que não devemos obedecer. Por isso a obediência para nós é mais pesada.
A Santa Igreja elaborou a civilização da obediência na Idade Média, mas com a ideia de que a verdadeira liberdade está na obediência. A Revolução Francesa elaborou a civilização da desobediência, levada pela ideia de que a desobediência é a verdadeira liberdade. Ora, para nós, a desobediência é o contrário da liberdade, é a sujeição a todos os impulsos que tolhem o desenvolvimento de nosso bom movimento até o seu termo normal. Este é o princípio.

Daí decorrem duas consequências: uma é que a obediência, se bem compreendida pelo católico, deve torná-lo ufano e varonil, não um pescoço torto e amolecido. Segunda consequência: o homem, quanto mais obedece, mais se sente dignificado, desde que seja uma obediência que tenha propósito, que seja razoável, sapiencial. Ou seja, obedecendo às autoridades competentes, nos modos e nas formas adequadas, ele se dignifica.
Nós devemos ser sequiosos de obedecer, fáceis, ágeis em obedecer. E naquilo que eu vejo necessitar de um auxílio de um outro, devo pedir com igual normalidade. É o movimento próprio, adequado, que corresponde à ordem natural das coisas. É como a pessoa deve ser.
A alma católica é um maravilhoso misto de humildade e altivez
Compreende-se bem como pode haver naquelas almas tão obedientes da Idade Média tanta altaneria. Tomemos um guerreiro daqueles que iam para a Guerra Santa, varão a mais não poder. Se aqueles não foram varões, então não haverá varões sobre a Terra. Aqueles homens, os nobres sobretudo, em pequenos, eram levados para longe da casa dos pais, mandados servir na casa de outro senhor feudal como pajem; serviam comida, serviam tudo. Eles, com outro senhor feudal, vivendo da vida dele, aprendiam a guerrear, a governar, aprendiam toda aquela vida dura do senhor feudal. Aprendiam a mandar obedecendo. Vejam o conceito superior de liberdade que há nisso.
Quando ficavam maduros, a primeira ação era um ato de vassalagem ao senhor feudal superior; era procurá-lo, ajoelhar-se diante dele, pôr as mãos entre as mãos do senhor feudal superior, gesto que a Igreja conservava até há pouco tempo e que é um sinal de entrega da liberdade. Então, prometia obediência àquele, tornava-se seu vassalo, encaixando seu destino no do outro, para irem juntos à realização das proezas da vida. Vão mandar ou obedecer a vida inteira e para eles isso era o normal. Que homens altaneiros, combativos, corajosos!
Que alto sentido de dignidade! Por quê? Porque se tratava de um conceito de dignidade que era um rio que corria cristalino, transparente, magnífico, dentro do canal da obediência. Essa era a civilização medieval, a civilização da obediência.
Daí também aquele fato tão extraordinário, narrado por Montalambert,4 de um árabe maometano viajando pela Europa e preso sob palavra. Ele podia viajar, mas não podia sair dos limites do reino. Era um homem rico, mandava vir dinheiro e viajava. Ele viu aquelas catedrais e perguntou: “Quem construiu esta catedral?” Mostraram-lhe os irmãos leigos. Ele comentou: “Mas como homens tão humildes podem construir monumentos tão altivos?”
Exatamente esse maravilhoso misto de humildade e altivez é a alma católica e é o que eu gostaria que os meus filhos, sobretudo os meus filhos eremitas, tivessem. Isso exprime inteiramente o meu ideal.

Nessa perspectiva, a escravidão de amor a Nossa Senhora é um ato de suprema liberdade que nos deve dar apetência de todas as obediências e ser a fonte de inspiração de todas as altivezes, o que é justa e completamente o contrário da arrogância, da empáfia e da covardia dos revolucionários.
É mandar como um Anjo manda. Ele manda em nome de Deus. Quantos decretos da Santa Sé começam invocando o nome de Deus.
Jorge V5 reinou durante o tempo de Hitler, Mussolini e Stalin. Era um protestante, mas neste ponto ele perpetuava uma tradição católica: toda noite, quando não tinha recepção no palácio, ele passava numa sala com a rainha, na intimidade. A certa hora, entrava o secretário e ligava um gramofone que tocava o God save the King.6 A rainha se levantava e punha-se em atitude de oração, e o rei se colocava numa atitude de continência até acabar o hino. Terminada a soirée, eles iam dormir.
André Malraux7 comenta o seguinte: Esse homem, tomando uma atitude de continência diante de um hino cujo objeto é ele mesmo, reconhece que ele não é senão um objeto secundário desse hino e que há uma autoridade mais alta do que ele e que passa através dele, da qual ele mesmo é o sujeito. Esse supremo ato de obediência desse homem a essa autoridade indica que, apesar de ele ser um rei, cercado de um protocolo real mais coruscante, mais nobre do que o de Hitler e o de Mussolini, o verdadeiro humilde é ele. Porque, quando o indivíduo fala em nome da verdade e do bem, fala por obediência. Só falar por obediência faz passar por ele toda a majestade de Deus e ele fica como um Anjo irresistível.
A obediência ajuda a solucionar o problema dos nervos e da prática da pureza
Estou certo de que prepararão enormemente suas almas para a Consagração a Nossa Senhora aqueles que pedirem a Ela que lhes dê essa compreensão e esse amor à obediência vista como o mais genuíno da liberdade e da dignidade, e assim se disporem a ser pedras vivas da civilização da obediência. Porque, se a Idade Média foi a civilização da obediência, o Reino de Maria, que vai ser a Idade Média multiplicada pela Idade Média, tem que ser ainda muito mais a civilização da obediência.
Se tiverem essa disposição de alma, encontrarão a solução, não digo automática, mas por via de repercussão, ao menos parcela da solução, para dois problemas que preocupam enormemente várias pessoas, algumas das quais devem ter a impressão de serem problemas sem solução. Um é o problema dos nervos, outro é o da pureza.

Como o homem foi feito para se encaixar numa estrutura de obediência, fora dessa estrutura fica como um membro fora do organismo, um cidadão das “cidades livres” da Revolução, obrigado a resolver sozinho todos os seus problemas e decidir no seu isolamento o seu destino, carregando o peso de uma falsa liberdade que arrasa com os nervos de qualquer um.
Uma vez, um líder monarquista francês recebeu uma acusação pelo seguinte: ele tinha formado uma espécie de ministério não para governar a França, mas para ajudá-lo a tocar a política da Accion Française, uma espécie de corte que correspondia a um ministério.
Então começaram a debicar dele, dizendo que brincava de rei com os súditos. Ele disse: “Não, eu não brinco de rei, eu brinco de eleitor. Os senhores pensam que eu sou rei? Todo eleitor é rei, vocês convocam uma eleição para o indivíduo se pronunciar a respeito de todos esses assuntos. Eu confesso que sou mais burro do que o comum dos eleitores, porque não sei resolver esses assuntos sem especialistas. Os eleitores sabem, mas eu não sei. Então constituí um corpo de especialistas para resolver, para me ajudar a exercer a realeza que os senhores puseram nas mãos de qualquer perequeté que anda pela rua”.
Por detrás dessa resposta ele pôs em evidência um fato: é que um homem desvinculado de todo mundo, totalmente independente, carrega um peso que ninguém pode carregar. É um pobre coitado. Isso concorre muito para a neuropatia progressiva das gerações. Donde aquela grande calma medieval e a grande agitação moderna.
No mundo moderno, cada pessoa tem que resolver sozinha todos os problemas de sua própria vida, sob pena de sentir-se achincalhada diante de si mesma. Depois, os outros não querem resolver os problemas da vida dela porque ela é uma concorrente. Quem quer resolver problema do outro? Deixa que o outro se encalhe para ver se ganha a corrida… Resultado: cada um carrega este fardo tremendo, que é o peso do próprio eu.
Pelo contrário, numa civilização da obediência ou numa vida toda ela hierárquica, dessa hierarquia altaneira de que eu falei, a confiança mútua encanta, os nervos serenam, cada um se encaixa no outro, a realidade fica completamente outra.
Por outro lado, o homem habituado a obedecer tem uma paz de alma que diminui os impulsos da sensualidade. Quem não está habituado a obedecer não tem essa paz de alma. Uma prova experimental disso está no seguinte: os mais dissolutos são sempre os menos obedientes. Isso vai desde os bancos colegiais até os prostíbulos dos homens adultos.

Tomem uma procissão dos bons tempos, com um milhão de católicos desfilando. Cinquenta homens bastavam para manter a ordem. Vai ver, é o nível de gente mais casta da população.
Faz-se um baile de carnaval com duas mil pessoas presentes, precisam pelo menos de uns cento e cinquenta policiais e armados. Por quê? Porque está solta a sensualidade. Quer dizer, quanto mais sensual, mais desobediente. Logo, quanto mais obediente, menos sensual.
Para ter paz de alma, ser filho da civilização da obediência
Quantos problemas se resolveriam admiravelmente se as pessoas se aproximassem de Nossa Senhora e dissessem:
“Minha Mãe, fazei de minha alma uma dessas almas flexíveis para Vós e inflexíveis em relação a Satanás. Flexíveis para Vós de maneira que tudo quanto me mandem, que esteja nesta concepção da obediência, eu faça com a alegria e a dignidade de quem exerce a sua liberdade. Tudo quanto queiram me obrigar a fazer ou a pensar contra esta linha e esta ordem, eu reaja com a indignação de quem defende a sua própria liberdade. E sobretudo Vos defenda, ó minha Mãe, porque sois a minha liberdade! Vosso Filho é o Caminho, a Verdade e a Vida, e Vós sois para mim o caminho para o Caminho, a verdade que conduz à Verdade, e a Mãe que deu origem Àquele que é a Vida”.
Isto dito no ato de Consagração como escravo de Nossa Senhora prepara muito a alma para a autenticidade desse ato.
Outro dia eu estava lendo uma ficha que falava da convocatória da Primeira Cruzada pelo Bem-aventurado Urbano II. O Papa começou por proclamar a paz de Deus e a guerra de Deus, ao mesmo tempo. A paz de Deus dentro da Cristandade: proibidas todas as guerras, proibidas todas as rivalidades, as pessoas dos cruzados protegidas, todos os processos judiciais engajados contra eles, suspensos. As esposas, os filhos, os pais idosos dos cruzados, os bens de todos eles, colocados sob proteção especial da Santa Sé. Era a paz da Cristandade para poder fazer a guerra fora da Cristandade. Então a paz de Deus junto com a guerra de Deus.
Como eu gostaria de, aos pés de Nossa Senhora, proclamar uma Cruzada, com a paz de Deus, com a paz do Reino de Maria entre nós e a guerra de Maria fora de nós. A começar pela guerra contra o demônio e a seguir pela guerra contra todas as formas de Revolução, inclusive dentro de nós!
Quando vemos os gisantes da Idade Média, aqueles guerreiros que jazem deitados, muitas vezes ao lado da respectiva esposa e dormindo… Aquelas figuras têm uma paz, uma tranquilidade! Estão armados dos pés à cabeça. São guerreiros representados com a própria armadura, muitas vezes, sobre a própria sepultura. A armadura, os traços falam de guerra, mas os olhos fechados falam de paz. São almas que possuíam paz dentro da guerra.
Como eu quisera essa paz de Deus nas almas chamadas a travar as guerras de Deus!
O modo de conseguirmos isso é sermos filhos da civilização da obediência e, portanto, da civilização da liberdade.
(Extraído de conferência de 26/4/1973)
1) Sobre os êremos ver Revista Dr. Plinio, nº 322, janeiro de 2025, “Os êremos: profético anuncio de um caudal de graças”, p. 5-15.
2) Êremo Præsto Sum, situado numa espaçosa chácara, no Bairro Santana, em São Paulo.
3) Êremo localizado na cidade de Curitiba.
4) Charles Forbes René de Tryon, conde de Montalembert (*1810 – †1870).
5) George Frederick Ernest Albert (*1865 – †1936). Rei do Reino Unido de 1910 a 1936.
6) Hino nacional britânico que se inicia com a saudação: “Deus salve o Rei”.
7) Escritor francês (*1901 – †1976).