Como antecedente de uma das mais insignes graças recebidas por Dr. Plinio encontra-se também uma das situações mais dramáticas vividas por ele. Provações, apreensões e dissabores, associados à infidelidade de seus seguidores, contribuíram para minar sua saúde, enquanto lutava com afinco por manter-se fiel à graça.
Em 1967 eu sofri uma crise de diabetes, doença que se desenvolve em certas pessoas por razões físicas, mas em outras, por razões emocionais. A aflição, a preocupação, o receio, uma série muito grande de sofrimentos alteram o funcionamento do pâncreas e são determinantes no desencadeamento dos excessos da doença.
Dissabores e apreensões
Tenho como certo de que minha diabetes era fruto de uma série de dissabores muito graves, relacionados com o apostolado, mas causada também por circunstâncias como, por exemplo, apreensões que se aproximavam e ora se realizavam ora não. As que se realizavam conferiam uma carga de ameaça especial às que não se realizavam, de maneira que a cada momento havia uma ameaça iminente…
É como se a todo instante passasse um homem por uma sala e estalasse um chicote para um prisioneiro e, de vez em quando, o chicoteasse. Cada vez que entrasse o carrasco e estalasse o chicote, o prisioneiro se crisparia inteiro. É natural, porque as ocasiões em que ele era chicoteado deixavam-no muito alarmado.
A metáfora dos becos sem saída não é muito completa para descrever a situação diante da qual estávamos nos dois ou três anos anteriores à crise de diabetes, mas serve para ilustrar algo. Imaginemos um conjunto de becos no fundo dos quais é preciso ir abatendo os muros para formar uma avenida, e uma pessoa percorrendo esta avenida de ponta a ponta; de vez em quando, nos trechos mais inesperados do trajeto, vê erguer-se um muro à frente, tomando a avenida de lado a lado, e outro muro também por detrás. A pessoa fica cercada… Então ela derruba o muro que está na frente e anda mais um tanto, até outra parede se levantar.
A trajetória do “rio chinês”
Eu creio que muitos talvez nunca tenham ouvido falar no “rio chinês” como a trajetória característica da vocação profética.
Os rios chineses, como todos os rios do mundo, tendem para o mar. Mas, enquanto a maioria dos rios tendem ao mar fazendo ligeiras ondulações em torno de uma linha reta, alguns dos rios da China, pelo contrário, seguem o curso do modo mais caprichoso possível. Caminham para frente e quando o navegante pensa que está se aproximando do mar, ele nota de repente que está enganado, porque as águas do rio fazem uma volta e refazem, em sentido oposto, todo o percurso que já tinham realizado. E mais ou menos vai num zigue-zague, aproximando-se do mar e depois voltando para trás. Ora, os acontecimentos daquele tempo se pareciam com o curso de um desses rios.
Nós estávamos, naquela época, a uma distância tal da “Bagarre”,1 os acontecimentos que então se passavam pareciam tão improvavelmente capazes de gerá-la, a ordem relativa, mas muito aparente, muito lustrosa, que reinava naqueles dias parecia distanciar tanto o mundo do caos nos bordos do qual ele se encontra hoje que, realmente, era uma coisa improvável para aqueles que julgam apenas as probabilidades segundo os aspectos humanos e terrenos. A distância para percorrer entre a nossa situação naquele tempo e a “Bagarre” pareceria uma distância infinita. Daí a alusão aos rios chineses.
Ou seja, os fatos pareciam encaminhar-nos para os acontecimentos preditos por Nossa Senhora, mas, caminhávamos um pouco, depois o curso dos acontecimentos retrocedia, parecia voltar para aquela ordem laica, ateia, amoral, para aquela ordem “hollywoodiana”, prenhe de ameaças de comunismo, que haveriam de se realizar de um modo tão íntegro, mas tão diferente do que de fato se realizou, que se tinha a impressão de que nunca as águas do “rio chinês” chegariam ao oceano da “Bagarre”.
Tentação de desespero
Isso nos levava a nos consolar e, ao mesmo tempo, a sentir uma tentação de desespero.
O consolo vinha da ideia de que, por mais que parecêssemos distantes dos acontecimentos prometidos em Fátima, afinal de contas haveria de chegar um dia que, pelo traçado dos “rios chineses”, se chegaria ao mar e este seria o mar da “Bagarre”.
No entanto, de outro lado, desolação. Tendo em consideração que eram tantos os zigue-zagues, tantas as voltas, as pessoas se punham a pensar se algum dia esse rio haveria de chegar ao mar e se não seria uma ilusão de ótica histórica pensar que fatalmente a “Bagarre” estaria como o mar na desembocadura dos rios de nossas vidas.
Era essa a pesada interrogação que caía sobre o Grupo. Dúvida que está na raiz de muito entibiamento, de muita desistência. Pelo menos de muito “desafervoramento”, se assim se pode dizer. Enfim, era um fator continuamente atuante em sentido oposto ao da graça dentro do Grupo.

Princípio para esperar a “Bagarre”
Essa constatação nos levava a um ato de confiança.
Apesar de tudo ou quase tudo o que nós víamos em torno de nós nos tirar a esperança da “Bagarre”, havia uma razão pela qual devíamos esperá-la. Essa razão era de uma ordem superior, transcendental, que passava por cima de todas as objeções que se lhe poderiam fazer. Era uma ordem que supunha fé, que supunha amor de Deus, e que, portanto, supunha circunstâncias de alma que significavam um verdadeiro abandono da pessoa a todas as esperanças e vantagens humanas, para navegar, navegar… navegar nesse “rio chinês” que se poderia chamar de rio do absurdo, certos de que um dia os que mais tivessem esperado, os que mais animosos tivessem sido nessa navegação absurda, de repente, numa volta de caminho exclamariam: “Ali está o mar!”
O princípio que nos levava a esperar a intervenção de Deus a respeito de tudo poderia se enunciar assim: o mundo estava imerso no pecado, no qual ia se atolando cada vez mais numa marcha tão uniforme, que para o Inferno não havia “rio chinês”; era para frente e para baixo, para a frente e para baixo, arrastando o mundo inteiro à perdição.
Diante dessa visão, a marcha rumo à virtude e à santidade apresentava uma “caracolagem” decepcionante e impunha uma espera tremenda. Mas não era possível que esse mundo merecedor de castigo, e de um castigo na proporção apocalíptica dos pecados que cometia, não fosse punido.
E não é afirmar que se tratava de uma punição na outra vida, a qual se recebe depois de se ter morrido e sido julgado. Essa punição vem, e é de fé: se morreu em estado de pecado vai para o Inferno e não tem por onde escapar. Não se tratava apenas disso; não são só os homens que pecam, as nações pecam também. E, segundo ensina Santo Agostinho,2 quando uma nação peca, é um pecador que não vai ser castigado no dia do Juízo Final. Os homens vão ser julgados, mas, quando o mundo acabar, não haverá mais nações e não haverá, portanto, uma punição própria a elas. Então, quando serão elas punidas?
Evidentemente nesta Terra, já que na eternidade não há gregos, não há turcos, não há curdos, nem há chineses, nem há brasileiros ou europeus; existem somente os indivíduos que se salvaram e os que se perderam. Portanto, nesta Terra as nações têm que sofrer.
Se não houvesse uma conversão de todas as nações de maneira a configurar um verdadeiro “Grand-Retour”,3 então não haveria remédio; o resultado teria que ser que um castigo neste mundo haveria de destroçá-lo, pois estava se perdendo pelo mal ao qual se tinha entregue.
Se era certo que o mundo estava no pecado, se era certo que o pecado se agravava cada vez mais, se era certo que não havia esperança razoável de uma emenda, então tinha que haver a convicção certa de um castigo. E sejam quais forem as aparências e as circunstâncias, o castigo virá porque Deus não falta.
Um grande ato de confiança
Esse ato de confiança em que os acontecimentos previstos em Fátima um dia viriam, em que por mais que caracolasse o “rio chinês” um dia ele desembocaria nas águas da justiça de Deus e que nessa ocasião as nações em que se reúnem os homens haveriam de receber o seu castigo, era o fundamento transcendental e verdadeiro de nossa confiança na “Bagarre”.
O esquema era portanto: uma situação que parece dever conduzir a um fim; esse fim é o castigo pelo pecado, castigo das nações e não apenas o dos indivíduos. Porém, tudo parece, na ordem concreta, palpável dos fatos, conduzir ao contrário.
Em vista disso o que pensar?
Negar os princípios fundamentais que nenhuma alma de fé pode negar? Não pode ser. Mas negar o que parece evidência? Não deve ser. Mas é por onde se inclina a fraqueza do coração humano, da maldade humana.
Então há um determinado momento dentro dessa provação ou das provações desse tipo, em que a alma tem que retesar a sua posição e dizer: “Tornou-se mais improvável a ‘Bagarre?’ Mais eu creio nela!”
E diante do desafio, por assim dizer, sarcástico do “rio chinês”, que vai arrastando por imprevistos e por vaivéns as minhas esperanças, eu confio mais nas minhas esperanças do que confio nas mentiras desse rio. Pode ele caracolar como quiser, eu tenho para ele uma resposta: “Minha confiança é retilínea, porque minha fé é verdadeira; eu creio, e porque eu creio, eu creio também, rio mentiroso, rio das mentiras, que chegará um dia em que o mar vai devorá-lo!”
Esse esquema – em que o improvável parece que é a realização de nossas esperanças, ou, quase certo parece o fracasso de nossas esperanças –, faz aparecer diante de nós a necessidade, pela oração e pela fé, de um recurso empenhado à oração, ao pedido. Pedir, pedir, pedir e sempre pedir mais, e nós pediremos quanto mais recusado for, até que a um momento as portas do Céu se abrirão e os dias luminosos da era do Reino de Maria entrarão pela História adentro.

Foi uma conjuntura estritamente individual e à qual não vale a pena fazer maiores referências, foi uma situação dessas que exigiu de minha parte um ato de confiança todo especial.
Há provações as quais achamos natural que cortem o caminho de nossa vida. Elas são do gênero do que esperávamos, são axiológicas. Mas há provações que nos perturbam especialmente, porque são provações que não se esperava que uma determinada pessoa tivesse que sofrer. Entretanto, eis que essas provações – elas são sempre permitidas por Deus para o nosso bem – cortam nossa vida como um tropel de demônios e parecem arrasar com todas as nossas esperanças.
Essa era propriamente a minha situação.
Graças torrenciais, não correspondidas
O Grupo estava começando a florescer e a se espalhar por todo o Brasil, havendo já alguns contatos no exterior. Eu tinha feito viagens para a Europa e estabelecido relações várias lá e na Argentina. Outros tinham realizado viagens pela América do Sul. Nós deixávamos de ser um grupo meramente acantonado naquele minúsculo prédio da Rua Martim Francisco, para ser um grupo que tinha expressão para fora, em vários lugares, e prometia florescer ainda mais.
Por outro lado, naquele tempo já as circunstâncias internas e externas me davam muitas preocupações, e eu vinha sofrendo havia dez anos uma série enorme de provações.
Tinha havido toda a degringolada primeira da qual se salvou um grupinho; começavam a ser derramadas graças e vinha a degringolada desse grupinho; aparecia um outro grupo, desandava também. Alguns participaram dos “Giordanos”,4 por exemplo. Quantas graças! Choviam, mas choviam à maneira de nuvens que se transformavam em um rio que cai.
Lembro-me das reuniões da Comissão de Opinião Pública – chamada Comissão B –, realizadas aos sábados de manhã, na Sede do Reino de Maria. Eu nunca havia feito um gênero de reunião na qual de tal maneira as graças caíssem às catadupas. Eram cascatas, uma coisa colossal. As pessoas chegavam ávidas, vinham correndo dos aviões, dos trens, dos automóveis, para alcançar uma reunião inteira ou ao menos parte dela. Faziam os maiores sacrifícios para estarem presentes. Se eu, por alguma razão, quisesse excluir alguém daquelas reuniões, daria uma crise por onde a pessoa era capaz de abandonar o Grupo, e com argumento: “Faz muito bem à minha alma, portanto, não quero ser privado disso”.
Falta de espírito metafísico e filosófico, penetrado de amor
No entanto, quando se tratava de falar e debater sobre os temas, de eu notar que uma reflexão tinha caminhado, havia uma espécie de abstenção pela qual me dava a impressão de entrar numa câmara onde havia uma série de pessoas com a mão aberta e o braço estendido, mudas e de olhos fechados. O movimento pessoal de adaptar-se, de interessar-se pelas questões levantadas, de adotar um espírito metafísico, filosófico, pelo qual se penetra com amor, era uma questão muito mais difícil e mais rara, de maneira que ficava uma espécie de desconexão entre o meu planejar e o agir de todos.
E, com base nisso, uma falta de entrosagem que sou o primeiro a lamentar. Eu, quando procurava intervir para pedir a alguém um serviço ou outro, a pessoa não sintonizava bem, porque não era para onde suas cogitações estavam voltadas. No campo primordial, em vez de assumir esse estado de espírito filosofante, de reflexão de alto padrão, havia uma espécie de abstenção, que correspondia a um defeito presente no espírito brasileiro, “do mar às cordilheiras, do Prata ao Amazonas”.5
Exaurindo o cálice por fidelidade à graça
Eu não previa que fosse adoecer, mas lembro-me que, pouco antes de minha diabetes ter sobrevindo, fiz uma reunião na qual estavam presentes todos os membros do Grupo; não sei por que não se realizou na Sede da Rua Pará, mas na sala do fundo da Sede da Rua Martim Francisco.
Nessa ocasião, cheguei a dizer a eles o seguinte: “Nossa reunião não tem futuro. Tenho a impressão de que os senhores não aproveitam nada e a cada vez que venho é como se eu estivesse diante de uma série de múmias. Entro na sala, distribuo umas tantas pérolas depositando-as na concha das mãos. Na próxima reunião, vejo que não frutificou nada, não deu em nada, não perdeu nada. Conservaram as pérolas, não jogaram fora, mas isso não lhes faz bem nenhum, porque são como mortos”.
Eles tomaram com inteira normalidade; saíram contentes escolhendo os restaurantes nos quais comeriam e logo pensando como seria o jantar. Faziam daquilo uma fruição, na melhor das hipóteses.
Ora, eu chegava a essas reuniões muitas vezes atrasado, no momento que podia, por ter ido dormir tardíssimo na noite anterior, pelo eterno atender de gente. Não tinha recursos físicos, já com a saúde minada sem o saber, para me levantar antes da hora a fim de chegar lá.
Eu sentia que algo em mim ia se debilitando cada vez mais; no entanto, julgava que, com minha constituição robusta, eu venceria aquele mal-estar. E como eu tinha a impressão de que as graças fluíam às cascatas na reunião, eu comparecia exausto, pensando: “Se não fossem estas graças, eu pecaria fazendo tais exposições, porque estou prejudicando minha saúde. Mas há tantas graças, que fico com remorso de interrompê-las”.
As reuniões da Comissão B terminavam tarde, eu chegava em casa aos sábados a horas malucas para almoçar. Ficava em seguida conversando com mamãe, tratando de distraí-la e entretê-la dentro da solidão dela, e passando daquele extremo para o mundinho dela com uma imensidade de carinho recíproco, mas, muitas vezes, vociferando carícias, para depois cair meio desmaiado na cama e me levantar para a próxima reunião.
Eu sentia que ia afundando, afundando, afundando, dando de mim e vendo a inutilidade… Minei minha saúde, não só por isso, mas isso concorreu. Não vamos dramatizar nada.
O fato concreto é que, quando adoeci, a Comissão B estava por morrer. Encerrei-a e tive mais facilidade em fazer isso do que teria em colher a flor de uma árvore. A atitude unânime foi de conformidade, de um silêncio completo com essa decisão. Todos levaram a vida normal, sem mais lamentações… Se um homem tivesse pisado uma formiga, a reação seria a mesma; não sentiram a menor dor pelas reuniões terem acabado, e ninguém me pediu para retomá-las. Era um dom tão pouco prezado! Não se pode calcular como isso para mim foi lancinante.
O duro peso do isolamento
Os membros que compunham a Sede da Martim, quando os conheci, eram todos ricos e levavam uma vida fácil, com uma posição social muito boa. Um deles, particularmente, tinha uma situação esplêndida. Ora, um membro novo do Grupo, que naquela época servia como empregado na fazenda de Amparo, me contou o que eu já pressentira: quando eu ia à fazenda, baixava um chumbo sobre eles por onde não ficavam alegres. Eles não se lamentavam, mas ele notava da parte de todos um peso. Quando eu saía, um alívio: eu tinha ido embora. Isto era eu entre aqueles que tinham deixado tudo para me seguir… Era o peso do isolamento.
Porque eu era, na relatividade das coisas, completamente fiel, donde vinha a recusa. Eu poderia citar, neste sentido, dezenas de fatos. Vê-se como o homem fiel é rejeitado, não escapa. Nosso Senhor foi rejeitado, todos os homens verdadeiramente fiéis também o foram. Era a lamentação de São Pio X: “De gentibus nos est vir mecum”.6
A triste derrocada de almas
Depois, era o convívio pouco ameno de uns com os outros, problemas individuais, perigo de abandonarem o ideal, coisas muito desagradáveis… Crises internas dentro do Grupo iam fazendo com que vocações das mais promissoras entrassem em derrocada. Uma, duas, três. E o meu tormento era esse: naquele tempo o Grupo era muito menor, mas tinha várias almas em provação grave. E as almas que estavam nessa situação eram especialmente chamadas para um alto padrão de virtude, uma correspondência à graça muito boa etc.; era o contrário do que estava se dando. Sem contar que eram almas muito especialmente queridas por mim e que sofriam essas tentações, essas derrocadas, essas coisas tão, tão e tão penosas. E isso se dava com várias, mas especialmente com algumas e com o perigo de desedificar e de arrastar para trás todos os outros.
E o Grupo era tão pequeno que se alguns abandonassem nossas fileiras podia dar um desânimo em todos e dissolver o Grupo. Isso tudo me causava um receio muito grande pelo futuro do Grupo. Era a minha vocação que se arrebentava.
Inundado de aflição e tristeza pelo aguilhão da consciência
Há uma fotografia minha no quarto de mamãe. Quando ela foi tirada eu pensei: “Eu devo dar a impressão de um homem inundado de calma e bem-estar, e alguém que olhe dirá: ‘Quanto vale a consciência tranquila!’ Isso é verdade até uma meia periferia do meu ser, mas daí para o fundo eu sou um homem inundado de aflição e de tristeza, o que ninguém vai perceber”. Era por causa da situação do Grupo.
Sobretudo, precisamente, o declínio das graças de 1967 me deixou num desapontamento enorme… Se a graça da Sagrada Escravidão não tivesse entrado em declínio, creio que eu, talvez, não teria sido acometido pela diabetes. Em minha família ninguém sofre desta doença, o único sou eu.
Ora, o que me levou mesmo a tal estado foi o receio de não corresponder à vocação. Nesse quadro de conjunto eu era sempre perseguido pela ideia de haver alguma falta, não pecado mortal, porque a pessoa sabe se o cometeu ou não, mas alguma infidelidade grave, que Nossa Senhora levasse em consideração para permitir que a toda hora estivesse ameaçada de ruína a obra d’Ela.
Eu raciocinava da seguinte maneira: “De acordo com D. Chautard, se o chefe de uma obra recebe graças e se a vida espiritual dele está em ordem, ele pode ser o canal das graças para aqueles a quem ele está orientando. Se isto é assim, eu devo ser o canal das graças para estes que estão aqui. Ora, parece que este canal está entupido, porque não vejo as graças produzirem efeito; logo, a culpa deve ser minha. Então, chegou a hora de meu exame de consciência, de pensar no mea culpa.7 De mim para comigo tenho de ser implacável. Eu posso ter misericórdia e condescendência com todos os homens da Terra. Comigo, não! Tenho que ser o meu próprio tirano. Agora, vamos ver: preste suas contas!”
Eu me examinava muito para ver se encontrava o defeito que poderia estar na raiz do problema. Para mim esse era o pior dos tormentos, porque fazer o sacrifício que eu tinha feito a favor dessa obra – praticamente sacrificar minha vida – para vê-la ruir por presumível culpa minha… nem sei o que dizer. Primeiro, vê-la ruir era o mais grave de tudo. Em segundo lugar, vê-la ruir por culpa minha… Era verdadeiramente atroz.
Queda na Rua Martim Francisco
Além disso, havia certas coisas que impressionavam do modo mais penoso, parecendo confirmar essa sensação. Lembro-me de que certo dia vínhamos a pé, subindo pela Rua Martinico Prado. Era noite. Estávamos conversando a respeito da possibilidade de ser um castigo essa encrenca contínua de nossas coisas, e quando viramos na Rua Martim Francisco, tropecei numa raiz de árvore que tinha por debaixo do calçamento e caí de bruços no chão. Eu andava com muito ímpeto antes do desastre, portanto, meus tombos eram impetuosos. E nesse momento, toda a iluminação pública se apagou, por uma coincidência.
Pode-se compreender como isso era algo impressionante e torturante! Um tormento… Eram necessárias razões muito firmes para aguentar o tranco. Eu tinha quase 60 anos naquele tempo.
1) Do francês: conflito desordenado e profundo. Palavra usada por Dr. Plinio para se referir ao grande castigo de Deus à humanidade, se esta não se voltar para Ele, profetizado por Nossa Senhora em Fátima.
2) Cf. Santo Agostinho. A cidade de Deus, Livro I, cap. IX
3) Do francês: grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “Grand-Retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “Grand-Retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.
4) Segundo seu costume, Dr. Plinio, após fazer sua última conferência do dia e atender a algumas consultas, saía para fazer uma refeição ligeira no Giordano, um dos poucos restaurantes que funcionavam na noite paulistana.
5) Palavras iniciais do Hino das Congregações Marianas.
6) Do latim: “Entre todos os povos não há nenhum homem comigo”.
7) Do latim: minha culpa.