Dr. Plinio conseguia evocar grandes e pequenos episódios da História tornando-os vivos através de interessantes pormenores.
Para vingar-se de Napoleão por ter invadido seu país, D. João VI mandou ocupar a Guiana Francesa, ao norte do Brasil. Aquilo, naquele tempo, era o fim do mundo. Mas era como uma vingança. E não foi fácil fazer com que ele, depois de Napoleão cair, devolvesse a Guiana para a França, porque ele não a queria mais largar.
Um dos mais belos feitos da História da Cristandade
Abro aqui uns parênteses a respeito da resistência às invasões napoleônicas.
Napoleão queria ficar dono da Europa inteira e invadiu, quase ao mesmo tempo — não foi ao mesmo tempo, é claro —, a Espanha e a Rússia, os dois extremos da Europa. A partir de então, as coisas lhe ficaram difíceis…
Na Rússia, o problema foi o “general inverno”. As tropas napoleônicas foram avançando país adentro e, em certo momento, viram-se imersas num inverno horrível. Napoleão esperava passar o inverno em Moscou. Deixaram-no entrar e alojar-se ali.
Quando ele se alojou, os próprios moscovitas tocaram fogo na cidade. Ele teve de bater em retirada, e o seu império estava liquidado.
Tendo Napoleão invadido a Espanha, os espanhóis o combateram heroicamente. Foi um dos mais belos feitos da História da Cristandade!
O povo todo se levantou contra a invasão napoleônica. Quando as tropas de Napoleão entravam nas cidades, os homens, as mulheres, as crianças iam às janelas e jogavam o que tivessem à mão — móveis e toda espécie de objetos — em cima da soldadesca. Negavam alimento, queimavam as plantações de trigo, de maneira que o exército francês não tinha com que fazer pão. Os espanhóis caíam na pobreza, mas puxavam Napoleão para baixo na pobreza também.
Muitos historiadores sustentam que até os padres saíam dos conventos e iam com armas de fogo fazer guerrilha. E Napoleão não estava habituado à guerrilha. Em matéria de combate, ele só entendia da grande guerra convencional, com grandes exércitos.
Conta-se que, enquanto esses fatos se passavam, Napoleão, que era um anticlerical, perguntou para um padre:
— Quais são os dois povos mais religiosos da Europa? Devem ser os mais atrasados, não?
O padre respondeu:
— Julgue Vossa Majestade: são a Espanha e a Rússia…
Casamento de Dona Leopoldina com Dom Pedro I
Fechando os parênteses e voltando ao Brasil, podemos ver, por esses episódios, o senso político com que D. João VI fazia as coisas. Ele chamou um dia o filho dele, o futuro D. Pedro I, e disse-lhe:
— Pedro, mais dia menos dia, o Brasil vai ficar independente de Portugal, porque é grande demais para ser governado a partir de uma metrópole tão distante. Põe tu a coroa do Brasil na cabeça, antes que um aventureiro a tome.
Para muitos historiadores, o brado do Ipiranga “Independência ou Morte” não foi uma traição a Portugal. De fato, D. Pedro I seguiu o conselho do pai, e proclamou a Independência, conservando o Brasil para a dinastia. O homem sabia jogar.
D. João VI resolveu pedir ao Imperador da Áustria, que era o maior potentado do tempo, uma de suas filhas para se casar com seu filho e vir morar no Brasil. O Imperador da Áustria concedeu.
O monarca português nomeou o Marquês de Marialva como procurador do Príncipe D. Pedro, herdeiro do trono de Portugal, para realizar as tratativas do casamento com a Princesa Dona Leopoldina.
O Marquês de Marialva teve a ideia de que, para representar um homem com tal poder imperial como o de D. João VI — senhor do reino de Portugal, mas também de tantas colônias na América, na África e na Ásia —, era preciso gastar uma fábula no casamento. Ora, o Rei de Portugal estava com as finanças muito prejudicadas, devido à invasão napoleônica.
Por isso, o Marquês gastou toda a sua fortuna — que era grande — só nessa missão. Assim, o casamento da Arquiduquesa Dona Leopoldina, filha do Imperador da Áustria, com o Príncipe D. Pedro, representado pelo Marquês de Marialva, figurou entre as festas mais célebres da Europa.
Nessa ocasião, estabeleceram uma combinação pela qual a Áustria fazia uma expansão política do lado do Oceano Atlântico, para ajudar Portugal e Brasil contra a Inglaterra e outras potências coloniais, e garantir mais a independência do Brasil. Mais uma prova de como D. João VI sabia jogar bem.
Original presente ao Duque de Wellington
Dou outro pequeno exemplo.
Naquele tempo, nesse clima de pompa das monarquias, os monarcas costumavam dar presentes suntuosos a homens célebres.
Estou me lembrando de um diplomata francês que recebeu da mãe de Maria Antonieta, a Imperatriz Maria Tereza, uma mesa cravejada de pedras preciosas.
Um libertador da Europa foi o Duque de Wellington, o famoso vencedor de Napoleão em Waterloo. Então, todos os reis da Europa deram-lhe bonitos presentes. O que D. João VI lhe mandou?
Naquele tempo, mesa de banquete era para cem pessoas… Os palácios enormes com galerias colossais, com muitos lacaios, empregados, uma coisa pomposa… Ele presenteou o general vitorioso com um conjunto de jarros, de floreiras e de adornos para colocar na mesa de banquetes. O serviço era todo de prata maciça, e representava, de ponta a ponta, cenas do Brasil, com palmeiras etc. Uma coisa colossal, fazendo propaganda do Brasil.
Todos os anos, no aniversário da batalha de Waterloo, o Duque de Wellington, que tinha recebido da Inglaterra um grande castelo e vivia na fartura, oferecia um banquete às maiores celebridades da Europa com quem ele tinha relações, para comemorar a vitória. Em todos os anos, até ele morrer, sobre a mesa do banquete estavam os utensílios evocativos do Brasil, um presente de D. João VI.
Congresso de Viena, a primeira grande reunião de diplomatas
Vejam como se compunha o ambiente político da época:
Quando Napoleão caiu, realizou-se a maior reunião de diplomatas que até então tinha havido na história do mundo: o Congresso de Viena. Os dois gênios dessa reunião eram, da parte da Áustria, o Príncipe de Metternich; e do lado francês, Talleyrand.
O primeiro, uma fábula de homem inteligente, educadíssimo, finíssimo, com uma conversa muito agradável, um verdadeiro fidalgo e um diplomata de primeira ordem. Os reis da Europa inteira o consultavam, de tal maneira ele era um colosso.
Talleyrand era ministro do Rei da França, Luís XVIII, e passava por ser o melhor causeur1 da Europa. Apesar de Metternich ser um colosso, havia muitos que sustentavam que Talleyrand passava a perna nele, tão esperto era este ministro francês. Era um diplomata fenomenal!
Conto um pequeno episódio, para verem como os tempos eram diferentes.
Luís XVIII quis dar diretrizes a Talleyrand sobre as conversações em Viena. Este, de modo muito respeitoso, disse ao Rei:
— Sire2, diretrizes para mim? — ele era um político muito mais experiente do que o monarca! — Não, Majestade, não faça isso…
— Mas o que o senhor quer, então, como colaboração de minha parte?
— Oh! Majestade, eu lhe peço apenas duas coisas: envie-me muito bons cozinheiros, para eu poder dar grandes banquetes na embaixada; e, com regularidade, mande-me queijo Brie, de maneira a chegar fresquíssimo, e eu ter a mesa mais concorrida do Congresso de Viena. O resto eu arranjo…
O Rei mandou os cozinheiros, e periodicamente partia da França grande quantidade de queijo Brie, para os banquetes de Talleyrand. Sua atuação no Congresso de Viena ficou célebre.
Quanta pompa, quanta inteligência, quanta habilidade, quanta bondade e até quanta simplicidade! Todos esses predicados viviam juntos numa harmonia da qual talvez não façamos bem ideia.
Descendentes de Dom Pedro I visitam família de Dona Gabriela
Termino com um fatinho ligado à Família Imperial brasileira.
Quando foi proclamada a República, D. Pedro II foi expulso do Brasil com toda a sua família. Mas no ano de 1922 festejou-se o centenário da Independência do Brasil, e ficava muito mal celebrarem D. Pedro I estando os descendentes dele exilados do País. Por isso, o então Presidente da República, Epitácio Pessoa, revogou o decreto de banimento da Família Imperial, a qual pôde, então, regressar ao Brasil. E vindo a São Paulo, eles foram visitar, naturalmente, as famílias que conheciam, entre as quais estava a de minha avó, em cuja casa eu morava.
Foi-nos ensinada, então, uma série de regras de cortesia para recebermos os meninos de nossa idade da Família Imperial.
Havia em nossa casa duas salas de visitas: uma mais pomposa e outra mais íntima. Os príncipes adultos foram recebidos na sala mais pomposa; e na mais íntima ficou a criançada.
Junto ao porta-chapéus existia uma bandejinha para colocar cartões de visita. E os príncipes entraram — todos muito vivos, muito espertos e animados — e foram colocar seus chapéus no porta-chapéus. Ao verem aquela bandejinha, que tinha um desenho em alto-relevo representando um papagaio, exclamaram:
— Olha o papagaio! Olha o papagaio!
Estavam interessadíssimos pelo papagaio. Eu tinha um na cozinha, e julguei fazer o papel de bom dono de casa dizendo-lhes:
— Mas este papagaio não tem nada de extraordinário. Há toda espécie de papagaios aqui no Brasil. Aqui perto, na cozinha, tem um papagaio…
— Onde está?!
— Lá!
E foram todos correndo para ver o papagaio…
Os mais velhos ficaram aterrorizados quando verificaram que a recepção, tão pomposamente calculada, estava se dando, logo de início, na cozinha!
Veio então o decreto e toda a criançada — príncipes e não príncipes — teve que voltar para a sala de visitas, sentar em cadeiras e começar a conversar…
(Extraído de conferência de 26/10/1985)
1) Do francês: Pessoa que desenvolve conversa interessante e atraente.
2) Tratamento que se dava aos reis da França e aos senhores feudais.