sábado, noviembre 23, 2024

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“Minha governanta alemã, Fräulein Mathilde”

Dando continuidade às suas narrações autobiográficas, Dr. Plinio recorda como a educação que recebeu de uma preceptora alemã o levou a robustecer sua própria vontade, a admirar o heroísmo e a comparar os povos com suas qualidades e seus defeitos, o que muito
contribuiu para a formação dele.

Sendo minha mãe muito doente, sobretudo nos meus anos de menino e adolescente, necessitava ela de ajuda
para educar minha irmã e a mim. Assim, contratou em Paris uma Fräulein alemã de primeira ordem. Embora provida de recursos pecuniários moderados, mamãe costumava dizer: “Num ponto eu não farei economia: é na educação de meus filhos. Eles terão o que for preciso.”

É difícil imaginar pessoa mais competente, inteligente e capaz de influenciar seus pupilos do que foi Fräulein Mathilde.

Tinha ela, como em geral os alemães, muito gosto em aconselhar. Passava o tempo inteiro pensando, elucubrando e dando conselhos. Mas possuía também um senso de adaptação ponderável, pois devendo educar três crianças (minha irmã, uma prima e eu), percebeu que, para afirmar sua autoridade, era preciso contar histórias.

Plinio, a prima Ilka e Rosée, sob os cuidados da Fräulein Mathilde, sua governanta alemã  “de primeira ordem”. Na página anterior, vista de Regensburg, cidade natal daquela excelente educadora

Narrava memórias suas e da pequena família da Baviera, de onde provinha. Era natural de Regensburg, e durante algum tempo fora governanta em uma família inglesa muito rica, que tinha negócios no Uruguai. Fora também governanta de duas meninas da aristocracia britânica, chamadas Gladys e Monona, e de uma família chamada d’Auvigné, da nobreza francesa. Ela fazia questão de sublinhar que não era Dauvigny e sim d’Auvigné, pois era a estirpe à qual pertencia a Marquesa de Maintenon, segunda esposa de Luís XIV, enquanto Dauvigny era outra família, menos célebre. Havia sido também governanta de umas meninas polonesas. Ela percorreu o mundo.

Em suas narrações, eu prestava muita atenção em como eram as pessoas e os ambientes que ela descrevia, para compará-los com o meio em que eu vivia. E assim fui formando aquele gosto de analisar
que redundou em meus artigos da seção Ambientes, Costumes, Civilizações, no jornal Catolicismo.

Contraste entre Brasil e Alemanha

Ela era muito alemã, e com uma forte nota prussiana dominante. Eu observava o modo de ser dela e ia se estabelecendo em meu espírito o contraste Brasil-Alemanha do qual resultou, a meu ver, algo de curioso:

De dentro dos meus olhos brasileiros, fiz uma análise própria da Alemanha que, desde o tempo de menino até hoje, foi sendo ampliada e completada, mas nunca desmentida. De outro lado, através dos prismas alemães da Fräulein, fui fazendo também uma análise do Brasil.

De maneira que, se não fosse em função de determinados defeitos dos alemães, eu nunca teria descoberto certas qualidades dos brasileiros as quais nós mesmos não prezamos tanto quanto devemos. Mas, se não fosse em função de certos defeitos do Brasil, eu nunca teria visto tão bem certas qualidades da Alemanha.

Estavam assim diante de mim dois pólos de comparação, acima dos quais, entretanto, permanecia intacta minha admiração pela França, que só de soslaio eu comparava com a Alemanha e um pouco com o Brasil. A França eu a via como um astro: na terra pode-se discutir e lutar, mas a estrela assiste tudo de cima…

O permissivismo

Um ponto em que incidiu minha análise diz respeito ao que denominamos de “permissivismo”. Ou seja, a atitude de espírito e a convicção moral — portanto filosófica — de que se deve deixar as pessoas atenderem a todos os seus gostos, sem se aterem a nenhuma regra.

A Alemanha é um país onde há muito permissivismo. O Brasil também caminha avançado nessa matéria.

Quais as origens do permissivismo na Alemanha e no Brasil? E como foi possível que atingisse o ponto em que chegaram?

O permissivismo no Brasil teve por mãe a bondade. A afirmação pode chocar, mas traduz a verdade dos fatos. Diante de uma atitude errada de alguém, o brasileiro é tendente a dizer: “Coitado! É preciso ter bondade e misericórdia! Este é o espírito cristão.” É bastante usual a famosa expressão: “deixe correr o marfim”, isto é, aceite tudo em nome do bom coração.

Embora o permissivista defenda o princípio de que “não se deve roubar”, quando toma conhecimento de que alguém roubou, comenta a priori: “Pobre coitado! Sabe-se lá por que necessidade ele passou para ter que roubar!”

A educação dada pela Fräulein era portadora de uma tradição que frutificou ao longo de mil anos de civilização católica, ainda presente em certos aspectos da sua Alemanha natal
(Acima, vista de Heildelberg; na página seguinte, a Fräulein Mathilde alguns anos antes de sua morte)

Em nome dessa bondade, nos ambientes tradicionais eu via que as regras mais
fundamentais eram violadas impunemente. Notava também que os modos grosseiros e revolucionários iam substituindo as boas maneiras, mais ou menos como a jóia falsa pode inundar o mercado e roubar clientes às verdadeiras.

A enérgica formação dada pela governanta contrariava o permissivismo brasileiro

Em última análise, o raciocínio subjacente ao permissivismo era: cumprir uma regra pode ser desagradável; obrigar alguém a realizar algo desagradável é fazê-lo sofrer; e fazer sofrer é maldade.

O brasileiro é afetivo, desinteressado, acolhedor, afável, gosta de querer bem e de ser querido. Aprecia a vida calma em que todo o mundo se entende sem bagunça, onde tudo termina em acordo. Com esse temperamento, se não for vigilante, corre o perigo de olvidar as regras e cair no permissivismo.

O ambiente criado pela Fräulein Mathilde

Ora, eu via no ambiente criado pela Fraulein o contrário disso. A regra era saliente, protuberante. O modo de ela chamar minha atenção, se eu fizesse alguma coisa errada, era severo:

“— Pliniôô!!!”

Ouvir meu nome assim pronunciado me punha em alerta máximo, pois eu já sabia que algo não estava direito.

Ela me aplicava também castigos pelas coisas incorretas que eu fazia. Nunca eram castigos físicos, mas em geral privação de alguma guloseima à qual eu era sensibilíssimo, e outras punições do gênero.

Fräulein Mathilde considerava que se uma pessoa, tendo um dever a cumprir, não o fazia, era preguiçosa, e ela infligia uma sanção terrena. Ela não falaria do Céu. O sobrenatural eu o hauri de mamãe e dos padres no colégio São Luís. A Fräulein Mathilde era católica, mas não fervorosa. No entanto, era portadora de uma tradição que em muitos aspectos era o fruto de mil anos de civilização católica. De maneira que a educação dada por ela estava bem encarrilhada.

Além da punição, ela sabia fazer comentários depreciativos acerca da pessoa indolente, ilógica ou que não soube prever nem arrancou de si a força para cumprir o dever. As histórias que ela contava sublinhavam a coerência e a força de vontade que exigiam do homem uma leistung1 na qual se empenhasse inteiramente. Quem não agisse assim era desprezível e a vergonha do universo.

Diante do que via e ouvia, eu naturalmente filosofava.

“Ela exigia de mim uma vida difícil, mas tinha razão quando falava do fracasso dos indolentes…”

Mas havia um primeiro obstáculo para a aceitação do que ela propunha: eu era uma criança muito preguiçosa. Eu pensava: “Essa mulher está exigindo de mim uma vida difícil! De que maneira vou pegar essa minha moleza e pô-la em movimento como ela está indicando?”

Mas, de outro lado, eu não deixava de perceber que ela tinha razão quando falava dos fracassos do indolente. E se em vários pontos o meu modo de ser originário me desservia, num ponto, entretanto, servia-me: o que eu julgava desejável, eu anelava com todas as veras de minha alma; e o que eu achava indesejável, eu não queria!

Não tardei em compreender isso: ou eu teria uma vida de luta contínua para obter o que almejava, ou me transformaria num armazém de pancadas, levando uma existência não desejada por mim. No plano terreno o sobrenatural entrou um pouco depois, e eu me perguntava qual era a vida pior: a do esforçado que leva o seu barco para onde quer, ou a do moleirão que se deita, mas cuja embarcação não se sabe onde vai parar? Eu concluía: No total, ainda é melhor ser esforçado. A Fräulein tem razão!

A língua alemã e o francês

Em mil circunstâncias, esses pensamentos me voltavam à mente.

Por exemplo, a respeito da língua alemã. Eu falava alemão correntemente, mas os meus amigos criticavam essa língua por ser áspera, cheia de consoantes, dura e dando impressão de agressiva.

De fato, para ouvidos brasileiros, essa língua causa a sensação de um exército alemão marchando em passo de ganso em cima da pobre França, esmagando as papoulas e os trigais do caminho. O brasileiro gosta da língua flexível, sonora, com muitas vogais e bem abertas. Das línguas do Ocidente, creio que poucas têm vogais tão abertas quanto o português.

Para o brasileiro que também aprecia sobretudo os escritores mais recentes, a frase breve, a ordem direta e o
pensamento claro, fácil de entender, a construção da língua alemã soa completamente diferente. Nesta, com freqüência a ordem é inversa e muitas vezes aparecem palavras longuíssimas, compostas de dois ou três vocábulos distintos.

Mas entendi bem que essa língua, em torno de mim tão atacada como feia, tinha uma bonita força, ou, se quiserem, uma forte beleza. É preciso dizer: sem dúvida um tanto rude, agreste. Não é a flor de jardim, mas por vezes pinheiro da floresta. Espetado, verde, alto e combativo! Enfim, é a beleza enquanto concebida por um povo entusiasta da regra, da lógica, da força de vontade, e que, por causa disso, joga com as palavras, compõe, define seu sentido, inverte a ordem delas na frase para que dêem mais suco e sejam mais vigorosas. Nessa língua, tudo é força, energia, ênfase e resolução.

Essa beleza agreste me encantava e entusiasmava. Isso não impedia que depois eu me enternecesse com as mil suavidades, bem inteligentes e finas como lâminas de cristal, da língua francesa.

Com sua organização quase inocente da vida quotidiana e as peculiaridades de cada uma de suas
classes sociais, o povo alemão se constituiu num dos elevados veios da humanidade
(Acima e ao lado, aspectos da Alemanha tradicional; na página seguinte, o Chanceler Bismarck e o Kaiser Guilherme II)

A França e a Alemanha tinham culturas totalmente diferentes, que muitas vezes entravam em atrito. Eu observava a controvérsia de fora e —como é próprio ao temperamento brasileiro — selecionava o que havia de bom e incorporava a mim o que gostava. O brasileiro aplaude os dois lados bons, e não opta por um com exclusão do outro. Com os meus botões eu pensava: um espírito que soubesse admirar essas nações e recolhesse o néctar de ambas, estaria acima delas.

França e Alemanha tinham culturas diferentes, não raro entrando em conflito

Considerações sobre a Prússia

Com o tempo, fui percebendo que o foco das qualidades aguerridas que eu
apreciava na Alemanha, estava na Prússia, a qual, entretanto, não me causava admiração. A Baviera me parecia muito simpática, encantadora, artística ao último ponto e terra das comidas excelentes. Mas não era tanto a terra do espírito batalhador e da portentosa força de vontade quanto a Prússia.

Contudo, não se pode negar que em matéria de diplomacia a Prússia havia sido menos favorecida.

Molière, um dos grandes escritores franceses do Grand Siècle2, tem um verso que exprime bem o conceito de diplomacia prussiana: “Saia daí para que eu me ponha no seu lugar! Se não quiser sair, levará pancada!” Ora, como diplomacia isso não funciona. É bom por um lado, e não por outro. Pois se é verdade que existe uma qualidade chamada energia, há outra chamada inteligência. E nesta última, a sutileza, de uma beleza admirável. E a sutileza não é o forte dos prussianos.

Não era só essa a minha objeção contra a Prússia. Ela tinha sido o foco do erro dos que se levantaram contra Roma, negaram o papado, e instituíram o livre exame, o qual está na origem do caos moderno.

Por outro lado, eu percebia em não poucos prussianos a mania pelo pensamento laico, meramente baseado nas ciências positivas e naturais. E por causa disso com tendência a serem “quadrados”, só reconhecendo como verdadeiro o que é evidente. E por isso também, quando dados à filosofia, muitos deles são levados a admitir como autêntico somente aquilo que eles mesmos perceberam ou pensaram. Porque, com essa mentalidade, para cada um é evidente o que ele pensou.

É o caos mental! Não tenho minhas reservas apenas, mas tomo todas as distâncias e oponho todas as objeções a esse espírito.

Mas, de outro lado, tive grande contentamento quando soube que cerca de dez por cento dos habitantes da Prússia se conservaram católicos e que esses foram os mais contra-revolucionários da Alemanha no século XIX. Até hoje há um filão apreciável de católicos ali.

O inocente da vida quotidiana na burguesia alemã

Nessa minha análise da Alemanha eu timbrava por manter um justo equilíbrio. Assim, por exemplo, admirava muito o ambiente da pequena e média burguesia germânica que conheci. Os alemães desse estrato social tinham uma organização quase inocente da vida quotidiana.

Na Alemanha, cada classe social tem o ar de si própria. A começar do Junker — o gentilhomem prussiano, tão agreste.

Bismarck era mais ou menos um Junker. Amante da cervejona, dos sanduíches com abundante manteiga fresca e outros recheios formando vários andares, que ele mordia enquanto conversava muito seriamente com o interlocutor sobre política ou filosofia. Ou então os dois cantavam. Podiam ser dois velhos, mas cantavam animadamente. Um povo assim, desde o Kaiser (imperador) até o último pequeno funcionário público, constitui um veio da humanidade que é como um píncaro.

Em contraste com essa vida, eu percebi também que no meu tempo de menino começava a surgir a Alemanha que se “modernizava” no ulular das fábricas e das máquinas, da organização no corre-corre que já postulava a Alemanha dos arranha-céus, dos fichários e do anonimato. Morria a velha Alemanha…

Na nova Alemanha que nascia havia uma mania de limpeza levada ao ridículo. Limpeza é uma boa coisa, mas nem tudo deve estar tão asseado como se tivesse sido limpo na hora. Nas memórias da Infanta Eulália de Bourbon, tia do Rei Afonso XIII da Espanha, é narrado esse episódio: o Kaiser, no seu exagero pela limpeza, desceu da carruagem em que viajava com ela para recolher folhas de jornal velho que viu pelo chão.

Um exagero.

O valor de ser brasileiro

Nessas considerações sobre a Alemanha, na qual havia uma imensidade de coisas para conhecer e algumas para assimilar, por contraste aprendi a apreciar o Brasil.

Só conscientizei o valor do nosso País, quando fui à Europa em 1950, 1952 e 1959, e tomei contato com esse tric-trac de que falei. Então compreendi o que é o vôo do espírito brasileiro, com sua rapidez, elasticidade e facilidade em entender as coisas e conjugar as reflexões para formar um todo. Pensei comigo: “No total, é uma grande coisa ser alemão. Mas, se soubermos continuar a sermos nós mesmos, corrigindo-nos e assimilando o que os outros países têm de bom, ainda é melhor ser brasileiro”. Entendi o valor de ser filho de uma nação que não se levantou contra o Papa, como fez parte da Alemanha, nem gerou a Revolução Francesa, como fizeram os filósofos e revolucionários de 1789, e que possui o gênio latino na sua fosforescência e cintilação incessantes.

Tudo isto foi se formando em mim, e ficando como reminiscências da educação da Fräulein Mathilde…

1) Em alemão: alta potência, alto rendimento, eficiência.

2) O Grande século das artes e letras, que floresceu durante o reinado de Luis XIV (1643 a
1715).

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