Certo dia estavam Dª Lucilia e seu esposo na sala de jantar, contemplando as belezas do entardecer, que na cidade de São Paulo se reveste com freqüência de belos coloridos. Mas ela não se limitava a apreciar do ponto de vista natural a vivacidade cambiante das cores ígneas com as quais o sol, em seu declínio lento e majestoso, ia pintando os tufos de nuvens, na aparência espalhados no céu por mãos invisíveis. Seu espírito logo se elevava a considerações de ordem sobrenatural. E essa cena lhe trouxe à mente quão próximos estavam, ela e seu esposo, do ocaso da vida terrena e da aurora da eternidade. Fez-lhe então a seguinte proposta:
— João Paulo, vamos fazer um trato?… Já estamos idosos e não sabemos quem de nós vai ficar só. Aquele que restar reza pelo outro uma Ave-Maria, todas as tardes, diante do pôr-do-sol.
Dr. João Paulo aquiesceu. Seria ele o grande beneficiado desse acordo, pois em breve terminariam seus dias, e ela cumpriria fielmente a promessa até o fim de sua vida.
“Filhão, mamãe comprou isto para você”
Embora a felicidade eterna dos seus fosse a principal preocupação de Dª Lucilia, continuava ela a observar, até o último instante, as pequenas obrigações decorrentes do relacionamento familiar, nas quais o afeto era a regra primeira. Por isso, ao aproximar-se o fim do ano, ou o aniversário de alguém, Dª Lucilia já ia pensando nos presentes a dar. A escolha era feita segundo a medida do afeto, e jamais em função do valor das lembranças anteriormente recebidas. Ela nunca condescenderia em rebaixar uma amizade a uma relação quase comercial.
Para Dª Lucilia, as festividades de fim-de-ano começavam sempre uns dias antes, ou seja, a partir do aniversário de Dr. Plinio, a 13 de dezembro. Com muita antecedência ia separando as quantias necessárias para os gastos e — daquele seu modo peculiar — as guardava num papel no qual escrevia a finalidade, formando pequenos rolinhos. O que era muito concorde à meticulosidade e perfeição com que fazia as menores coisas.
As belezas do entardecer lhe trouxe à mente quão próximos estavam, ela e seu esposo, do ocaso da vida terrena e da aurora da eternidade. Então propôs a ele um acordo…
A seu filho oferecia sempre gravatas. Havia muito que ela já não fazia pessoalmente a compra, deixando-a a cargo de Dr. João Paulo, pois este desde moço vestia-se com muito bom gosto. E Dª Lucilia sempre achava que ele acertava na escolha. Por quê? Porque “João Paulo se veste bem”. Era o paradigma dela.
Para Dr. Plinio, o que dava real valor ao presente eram as palavras — envoltas em tanta benquerença que enchiam a alma de doçura — escritas por sua mãe, não num cartão, mas sim no papel de seda da própria caixa da gravata. Tal pormenor, um tanto inusitado, dava especial sabor ao gesto dela, por deixar transparecer um traço de sua personalidade.
Dona Lucilia, ao entregar a seu filho o presente, com afeto dizia:
— Filhão, mamãe comprou isto para você.
Numa ocasião, estando próximo o “grande dia” do aniversário de seu filho, Dª Lucilia entrou no escritório dele, no apartamento, a fim de preparar o presente. Dr. João Paulo se encontrava ali, no sofá. Ela sentou-se diante da escrivaninha, abriu a caixa de gravatas, retirou com cuidado o papel de seda e o estendeu sobre a mesa a fim de escrever a dedicatória. A tarefa, devido às suas condições, apresentava certas dificuldades, que o anseio de perfeição a levava a vencer pacientemente, uma por uma. O papel de seda não se firmava bem sobre o vidro da mesa, e sua vista, um tanto enfraquecida, lhe dificultava o traçado de sua bonita letra.
Enquanto escrevia os primeiros caracteres, ia conversando com Dr. João Paulo. Ao passar no corredor, Dr. Plinio observou a cena pelo vão da porta, ouvindo encantado o diálogo que entre eles se travava:
— João Paulo — perguntou Dª Lucilia — como é que o Plinio gostará mais que eu diga? Assim deste jeito ou de tal outro?
Com sua atenção voltada para assuntos diversos, Dr. João Paulo respondeu com uma evasiva:
— Senhora, qualquer das duas fórmulas serve.
Essas palavras não satisfizeram Dª Lucilia, que voltou a insistir:
— Não, João Paulo, pense um pouco, ajude-me aqui…
Por fim, tendo eles escolhido uns dizeres de preferência a outros, Dª Lucilia terminou de escrever, repôs as gravatas no papel de seda e fechou a caixa, levando-a em seguida para seu quarto, onde a guardou até o dia do aniversário do filho.
Os nobres deveres da viuvez
A partir de 27 de janeiro de 1961, o trato feito por Dª Lucilia com o esposo, de rezar uma Ave-Maria diante do pôr-do-sol, entraria em vigor. Alguns dias após um derrame cerebral, Dr. João Paulo, então com 87 anos de idade, rendeu sua alma a Deus.
Embora Dª Lucilia estivesse de há muito com seu espírito preparado para a eventualidade da morte do esposo, a rapidez do desfecho a abalou. Mas era tal a sua paz de espírito, e tão grande sua confiança na Providência que, sem deixar de demonstrar natural tristeza e dor, não perdeu a serenidade em nenhum momento, guardando um aplomb admirável. Aplomb, isto é, o estar de pé com aprumo, seguindo o excelso exemplo de Nossa Senhora aos pés da Cruz, era sua constante atitude diante da dor.
Uma vez falecido seu esposo, Dª Lucilia mudou alguns hábitos de acordo com sua nova situação. Guardou luto até o fim de seus dias, inclusive deixando de usar jóias. De início, Dr. Plinio achou tudo isso natural, mas, depois de certo tempo, perguntou-lhe:
— Mãezinha, a senhora deixou de usar seu colar de pérolas?
— Sim, meu filho, agora não usarei mais. Uma senhora só se adorna para seu esposo.
De fato nunca mais usou o colar, tão de seu gosto, por onde se vê com que despretensão e desapego, ao longo de toda sua vida, utilizara suas belas jóias.
Em agosto de 1961, tendo sido mudada a sede do grupo que ele dirigia para uma bela mansão situada na rua Pará, também no bairro de Higienópolis, Dr. Plinio convidou sua mãe a ir visitá-la, certo de que ela ficaria agradada e se distrairia um pouco. A resposta dela não deixou de surpreendê-lo, pela seriedade demonstrada no cumprimento dos deveres para com o falecido esposo.
— Eu vou — respondeu com sua firme mansidão — mas depois de ter visitado, uma vez pelo menos, a sepultura de seu pai. Antes disso, não irei a lugar nenhum.
De fato, fiel a esse seu propósito, ela acabou por não conhecer aquela casa, já que não pôde ir ao jazigo de seu esposo. Então não se permitia a entrada de automóveis no Cemitério da Consolação, o que obrigaria Dª Lucilia a percorrer considerável distância a pé, tornando impossível a realização de seu desejo.
“Filhão, só tenho a você.”
Com a morte de Dr. João Paulo, acentuou-se para Dª Lucilia o normal isolamento que o avançar da idade traz consigo. Desde jovem, ela previra essa eventualidade de ser incompreendida no seu modo de ser e de pensar pelas gerações seguintes, em vista das transformações que presenciava. Assim, não tinha qualquer ilusão. Notava que, se a Providência lhe concedesse uma vida longa, o futuro se lhe apresentaria, com o paulatino desaparecimento de seus contemporâneos, como uma lenta e inexorável marcha para o anoitecer.
Fazendo lembrar certas flores, que exalam o melhor de seu perfume quando esmagadas, Dª Lucilia se submetia com doçura e suavidade à provação do isolamento, mais doloroso para ela devido à sua grande comunicatividade.
Todavia, sua solidão não foi completa. Desde a mocidade de seu filho, a consideração da afinidade de ambos foi para ela um lenitivo, pois via na fidelidade dele aos mesmos princípios católicos que ela amava, a promessa de uma companhia até os últimos dias.
Sendo a sensibilidade de uma senhora naturalmente mais refinada que a do homem, formara Dr. Plinio, em certo momento, o propósito de amenizar esse isolamento de Dª Lucilia. Redobrou suas expansões de carinho para com ela, que bem discernia essa intenção de seu filho e, por isso, não perdia oportunidade de lhe manifestar gratidão.
Certo dia, ao sair do quarto, encontrou-o no corredor, junto à porta do hall. Parou diante dele, pôs-lhe as mãos sobre os ombros, e fixando-o no fundo do olhar disse:
— Filhão, só tenho a você, mas a você eu tenho inteiramente.
Ao se recordar dessa cena, anos mais tarde, Dr. Plinio comentaria:
“Tais palavras me ficaram no espírito para sempre. Tendo ela dito isto, eu nada respondi, pois não existem palavras capazes de exprimir os próprios sentimentos em situações como esta. Eu só a beijei e abracei, como sempre fiz. Mas posso tranqüilamente dizer que ela me tinha mesmo, e por inteiro!”
(Transcrito da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)