O ano de 1962 reservava a Dª Lucilia outra ausência do filho tão dileto. Esta foi determinada por um dos mais importantes acontecimentos do século XX: o Concílio Vaticano II que definiria os rumos da Igreja Católica nas décadas seguintes. Cônscio da gravidade desse evento, Dr. Plinio partiu para Roma em outubro daquele ano, a fim de acompanhar de perto os trabalhos do Concílio.
Seguindo o costume adotado nas vezes anteriores, não revelou imediatamente a Dª Lucilia o objetivo e a duração de sua viagem. Só quando ele já se encontrava na Cidade Eterna, Dª Rosée contou a sua mãe o verdadeiro destino de Dr. Plinio, e entregou a carta que este lhe deixara antes de embarcar.
Preciosa influência materna
É essa missiva mais um eloqüente testemunho, por suas inflamadas palavras de amor de Deus, de como a educação dada por Dª Lucilia produzira na alma de Dr. Plinio abundantes e benéficos efeitos:
Manguinha querida, de meu coração!
Então, no momento em que a Sra. ler esta carta, seu Filhão estará em Roma!
Esta viagem é fruto de longas reflexões. Não a faço para me divertir. Pelo contrário, no estado de cansaço em que estou, eu de boa mente preferiria ficar-me por aqui, sem me sobrecarregar com todas as ocupações e preocupações que em Roma terei. Mas (…), colocando o dever acima de tudo — máxime o dever para com a Santa Igreja — resolvi partir.
A Sra. bem compreenderá, meu Amor, quanto me pesa deixá-la, ainda que seja só por uns 15 ou 20 dias. Esteja certa de que eu jamais faria esta viagem por prazer. Mas, ainda uma vez, a Religião está acima de tudo. Por isto, meu bem, por mais dolorosa que lhe seja esta separação de umas tantas semanas, a Sra. deve alegrar-se. Com efeito, deve enchê-la de júbilo que Nossa Senhora se sirva de seu Filhão para algo. E, se a isto estou apto, é em grande medida pela influência que a Sra. exerceu sobre mim, a educação que a Sra. me deu, e o espírito religioso que me incutiu desde tão cedo. Ofereça, pois, a Nossa Senhora o sacrifício dessa separação, para que seja bem sucedido o esforço.
Algumas semanas passam logo, Luzinha. Pense, pois, na alegria da volta, e cuide bem de sua saúde, para que eu possa encontrar minha Lú fortezinha, alegrinha, pimpona, a me esperar. A Sra. bem sabe, pelo imenso bem que lhe quero, que valor dou à sua saúde, e toda a alegria que terei em encontrá-la forte e lindinha.
Reze muito por mim, e aceite mil e mil beijos do filho que com todo o afeto e respeito lhe pede a bênção
Plinio
PS: escreva-me logo, dizendo-me como vai, etc., etc., naquela letra tão bonita, que gosto tanto de ler. Quero saber tudo a respeito de minha Luzinha do coração.
Terminada a leitura, Dª Lucilia dobra com cuidado a tão carinhosa carta e num primeiro momento a coloca aos pés da imagem do Divino Redentor, iniciando pela viagem de seu filho piedosas e empenhadas orações. Oferece novamente com generosidade ao Sagrado Coração de Jesus o sacrifício da longa separação, mais difícil de suportar agora pela ausência de seu esposo, e pela já tão avançada idade.
A vista um tanto diminuída e o reumatismo nas mãos exigiam dela não pequeno esforço e bastante tempo para, com “aquela letra tão bonita” que tanto agradava a seu filho, redigir uma resposta. Entretanto, esse incômodo era compensado pelo gosto de manter, através daquelas linhas, o convívio com ele.
O invariável desvelo para com o “Filhão”
Na correspondência de Dª Lucilia nos anos anteriores, transparecia mais sua imensa bondade e um inigualável afeto materno. Sem esses aspectos perderem em nada sua intensidade, nas missivas que ela escreveu durante o Concílio, chama especialmente a atenção seu profundo amor à Santa Igreja. Por suas palavras, notamos como ela acompanhava com sumo interesse as notícias estampadas na imprensa sobre os trabalhos da magna assembléia reunida em Roma.
Após receber a primeira carta de seu filho, escreve ela estas belas linhas:
São Paulo, 18-10-1962
Filhão querido de meu coração!
Quando tiveres outra vez a necessidade de te ausentar por tantos dias e para tão longe, avisa-me com antecedência para me habituar um pouco a esta idéia, antes de te ver partir, e “por mais que o sinta!”. Se nesta ocasião podias prestar qualquer auxílio aos bispos e arcebispos, etc., do bom clero, e não o fizesses, faltarias com o teu dever!
Estou guardando o jornal “Estado de S. Paulo”, que poderás gostar de ler. (…)
Você foi convidado para o jantar oferecido aos arcebispos e bispos brasileiros pela embaixada brasileira junto a Santa Sé? Deve ser hoje! Tencionava escrever-te anteontem, mas tive tanta gente que veio visitar-me para me distrair de tua ausência, que não me foi possível fazê-lo!
Quero te pedir um favor… toma muito cuidado no que comes por aí, pois quando o cardápio é bom, você fica bem guloso, e se abusas, pode te fazer mal! Cuidado, hein?
Tenho rezado muito por você.
Com mil abraços e beijos e muitas bênçãos da mamãe, que tanto, tanto te quer,
Lucilia
No dia seguinte Dona Rosée escreveu uma carta a Dr. Plinio, dando-lhe conta do andamento de alguns assuntos em São Paulo. Referindo-se a Dª Lucilia, dizia haver suportado “relativamente bem o choque de sua partida e, como tem tido muita visita, a coisa vai bem. Devora todas as notícias sobre o Concílio”.
Notícias de Roma
No dia 20, chegaram às mãos de Dª Lucilia, vindas de Roma, as primeiras novas de seu filho.
Roma, 13-X-1962
Mãezinha, amor querido do meu coração!
Escrevo-lhe com tinta vermelha, pois se quebrou minha caneta de tinta azul, e no momento não disponho senão desta.
São 1h30 da noite. E é este o primeiro momento que encontro disponível para lhe escrever. Começo por minhas notícias.
A viagem foi excelente. Avião confortável, boa comida, pontualidade satisfatória, boa companhia, nada faltou. Ou por outra faltou tudo, pois não estava a meu lado a minha Manguinha querida…
[Na escala em Paris fomos] ver os Invalides, os dois prédios da Place de la Concorde, e a Madeleine, que foram raspados da pátina que tinham. Lucraram enormemente. Como é natural, fomos também a Notre Dame, maravilhosíssima como sempre. Depois de um lauto lanche no Café de la Paix (Place de l’Opera), voltamos para Orly, e de lá para Roma.
Orly é horrendo. Como é óbvio, Fiumicino, o Orly italiano, é ainda mais feio.
Roma, pelo contrário, está lindíssima. A cidade transborda de riqueza, a população está forte, alegre, nutrida e bem vestida. O número de automóveis cresceu prodigiosamente. As vitrines estão lindas, inclusive as que expõem comestíveis.
Quanto a mim, sinto-me bem, e com um apetite muito vivo.
A parte final desta tão interessante missiva era reservada à expansão de seu filial afeto:
Agora, passemos à Senhora. Como vai, meu Bem? E a preciosíssima saúde? E o que disse o [Dr.] Brickmann? Os remédios dele adiantaram? E o fígado? Diga-me tudo, porque a Senhora bem sabe quanto me interessa tudo quanto lhe diz respeito. Mande-me pois todos os pormenores.
Meu Amorzinho, a Senhora nem calcula quantas vezes por dia me lembro da Senhora, e como conto os dias para revê-la. Cuide com o maior esmero, da sua saúde.
Receba milhões de beijos, cada qual mais carinhoso que o outro, do filho que tanto e tanto a quer e respeita, e que lhe pede as orações e a bênção,
Plinio.
“Se soubesses como fica triste a vida quando viajas para tão longe…”
No dia 21 de outubro, Dª Rosée enviava a Dr. Plinio nova carta, com mais alguns detalhes sobre o dia-a-dia de Dona Lucilia:
Ontem foi dia de festa porque Mamãe e eu recebemos suas cartas. Nem posso te dizer a alegria que sentimos. (…) Mamãe está ótima. A Olga e a Carlota fazem “puzzle” com ela à noite, e tem tido muitas visitas. Já mandei vir duas vezes a preciosa Sinhá. O Brickman achou-a muito bem. Em casa estão só a Olga e a Carlota. Como esta última tem mania de limpeza e é muito ativa, a coisa vai bem.
A “preciosa Sinhá” era prima de Dª Lucilia. Ambas mantiveram estreitas relações a vida inteira, só interrompidas pela morte. Era das poucas pessoas que restavam dos antigos tempos, pelo que reinava entre ambas grande afinidade.
Levada por seu amor à Santa Igreja e pelo desejo de acompanhar em espírito seu filhão, Dª Lucilia conservava as vistas voltadas para Roma, procurando discernir o que se passava no Concílio.
São Paulo, 23-10-1962
Filho tão querido de meu coração!
Já recebeste a [carta] de Rosée? Ela e Maria Alice têm vindo todos os dias. Rosée veio ontem, e hoje o tempo está péssimo… tão frio, chuvoso, que enregela principalmente aos velhos reumáticos nos “pulsos” como eu!
Se soubesses como fica triste a vida quando viajas para tão longe!!! É verdade que têm vindo os meus parentes me visitar, menos Yayá, Dora, Gizela que estão no Rio.
Pensa bem no que te digo…. cuidado, muito cuidado com o teu apetite… se ficas doente, como vais fazer? Perdes o fim do “célebre Concílio”, bonitos passeios, etc!
Saudosíssima, peço a Deus e a Nossa Senhora para que te protejam e abençoem, e envio-te mil beijos e abraços de tua… manguinha…
Lucilia
É edificante observar nas cartas de Dª Lucilia como ela fala muito pouco de seus problemas pessoais. Quando o faz, é para satisfazer os insistentes pedidos de seu filho.
Por outro lado, tendo ficado muito só, em nenhum momento se queixa desse fato, pois sabe que a viagem de Dr. Plinio é feita para atender aos interesses da Igreja. Razão largamente suficiente para justificar tamanho sacrifício, que ela estaria disposta a repetir quantas vezes fosse necessário. Depois do bem da Causa Católica, sua primordial preocupação é o bem de seu filho, como se pode ver mais uma vez na carta seguinte em que, por distração, ela escreve “Congresso” em vez de “Concílio”…
São Paulo, 26-10-1962
Filho querido de meu coração!
Espero que já tenhas recebido duas cartas minhas; hoje mais esta. Recebi também uma tua, de Roma. Imagino o quanto deves estar apreciando esta bela morada dos Papas, e ainda mais, tudo isso em companhia de teus bons e caros amigos; só me faz pena de ver os que não puderam ir! Sempre que pode, manda-me notícias tuas… — os jornais não dão notícias que satisfaçam!
Esteve aqui o Castilho para fazer-me uma visita.
Francisco Eduardo me pediu um terço, para rezar nele todos os dias. Diz o Castilho que é muito fácil encontrar aí, terços muito bons e fortes.
Não me habituo a escrever com as canetas que temos aqui.
Quando acabará o Congresso? Quando pensas poder voltar? Sou eu quem te diz… deixa tanto trabalho, passeie bastante, coma bastante, mas sem exagero, vejam a catedral de Milão, que é uma beleza, e os inúmeros quadros de Florença, revejam Paris, e voltem logo, pois estou com umas saudades loucas do meu “caro”, caríssimo Filhão, de todo o meu coração!
Com muitos beijos, abraços e toda a sua bênção, de tua… “manguinha”…
Lucilia
Tal é o esquecimento de si própria que Dª Lucilia apenas se lembra de pedir um terço para o bisneto, Francisco Eduardo. Embora não o diga, talvez tenha sido ela que ensinou o menino a rezar o Rosário, explicando-lhe na sua maneira tão atraente os vários mistérios da vida de Nosso Senhor e de sua Mãe Virginal. Certa de que um objeto de piedade vindo da Cidade Eterna o incentivaria mais à devoção, pede-o a Dr. Plinio.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)