jueves, noviembre 14, 2024

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Recordações de uma visita à África

Oavião da “Air France”, no qual Dr. Plinio viajava para Paris, desceu em Dakar, no Senegal, naquele 11 de junho de 1952 – há 50 anos. Por problemas técnicos, foi preciso adiar a partida por várias horas, para uma minuciosa revisão na aeronave. Isto permitiu a Dr. Plinio conhecer e analisar um pouco daquele continente, e tecer depois inúmeros comentários, alguns dos quais transcrevemos nestas páginas.

Não posso esquecer-me de uma noite que tive de passar em Dakar, numa de minhas viagens à Europa.

Estava viajando pela “Air France”. Em virtude do atraso relativo em que ainda estava a aviação, os aviões destinados à Europa eram obrigados a pousar em Dakar, para se reabastecer. Mas, quando meu vôo chegou àquela cidade, avisaram que nosso aparelho estava quebrado, e tínhamos de passar o restante do dia e a noite ali.

A companhia, evidentemente, providenciaria alojamento e, para nos entreter, punha à nossa disposição um ônibus que ia visitar os lugares mais pitorescos da cidade.

Contato direto com o Saara

Eu queria muito conhecer o deserto, e pensei comigo: “Não são só os lugares mais pitorescos da cidade os que quero visitar. Quero ir fora da área urbana e pisar na areia do Saara. Quero pegar um punhado de areia, fechar num pacotinho e levar comigo para o Brasil, e dizer: Esta é a areia do Saara! Do famoso, poético, terrível e admirável deserto do Saara!”

Meus desejos começaram a se realizar quando nos levaram para o alojamento. Eram casinhas redondas, de pequeno diâmetro, agrupadas no formado de uma semi-esfera, na boca do deserto, o que é uma coisa pitoresca. Gostei da idéia. Além disso, tendo ficado receoso quanto à qualidade do hotel ao qual anunciaram que iam nos levar, regozijei-me ao verificar que essas casinhas estavam equipadas do melhor modo possível, bem conservadas e limpas.

Entrei no deserto para pegar um pouco de areia. Era para mim um atrativo formidável, e está no meu modo de ser. Não consideraria que a realidade “Saara” ficasse satisfatoriamente conhecida por mim, se eu não fizesse esse exame: aplicação de todos os meus sentidos ao deserto. É o mesmo que se dá comigo a respeito do mar, por exemplo: eu nunca me daria por suficiente conhecedor do mar sem ter entrado na água. É preciso tocar.

Queria pegar a areia e esfarelá-la na mão, para ver como era. Foi uma surpresa sentir que estava ligeiramente úmida. Ao menos naquela porção de areia que peguei naquele momento. E, pelo menos naquele lugar, a areia não é branca e alva, maravilhosa, como se vê nos álbuns com gravuras para crianças. Era um pouco avermelhada, não limpa… Pode ser que, mais para o interior, se apresente diferente. Mas, naquela orla do deserta, fiquei meio desapontado.

O passeio pela cidade, no meio da sonolência

Dakar, também, foi uma surpresa para mim. Infelizmente, não a pude observar tanto quanto quisera, por estar tomado de sonolência excessiva. O motivo é simples: no avião, eu não estava conseguindo dormir por causa do barulho do motor. Naquela época, distribuíam a todos os passageiros uns comprimidos para dormir. Resolvi tomar uma pastilha, pensando: “Acordo onde Deus quiser!” O remédio teve um efeito prodigioso, causando-me uma dessas sonolências invencíveis que durou o dia inteiro.

Eu queria ver o famoso, poético, terrível e admirável deserto do Saara; e queria ver como o meu Oceano Atlântico, tão familiar, batia nas praias da África…

Quando o ônibus da “Air France” estava ia sair para o passeio pela cidade, pensei: “Vou acabar dormindo no caminho. Porém, tenho tanta vontade de ver um pouco como é Dakar… Vamos lá. Se eu adormecer…”

Com efeito, estava sonolento demais durante o trajeto. O passeio foi, pois, em certo sentido, uma pequena tragédia. Muitas vezes passávamos por um trecho interessante do deserto, e puf! dormia. E nessa situação de despertar diante de panoramas interessantes, e novamente adormecer, fiquei quase durante todo o giro.

Um dos lugares aos quais nos levaram foi a praia. Tanto quanto o Saara, eu queria ver também esse meu Oceano Atlântico, tão familiar, para o qual olho quase como para um parente, quando bate nos cais ou nas areias da praia do Zé Menino, em Santos. “Quero ver como ele é quando bate nas penedias e nas praias da África. Como é esse Oceano, quando ele acaba a viagem Brasil–África, e se quebra de encontro ao litoral africano?” Era uma de minhas grandes curiosidades.

Ora, o mar no Senegal é absolutamente igual ao de Santos, sem diferença alguma. É muito agradável de ver. Gosto de Santos. Mas, ficar na África para ver a mesma coisa que se vê em Santos, para mim, que não gosto de viajar, foi outra decepção.

A grande recompensa: ver os africanos

Minha grande recompensa foi ver os africanos.

As Áfricas são muito diferentes entre si. Um mundo que teria de ser reinterpretado, porque há certos tipos de negros que fazem pensar em civilizações ignotas, enigmáticas. Dakar, uma grande cidade, sob influência da França, modelou-se muito, sem deixar de ser uma grande cidade africana. O talento francês arranjou um jeito de fazer a moldura para os negros de Dakar, e eles ali são mais civilizados do que no restante do continente.

Quando meu sono passou, o ônibus havia parado no jardim zoológico, e desci com os outros passageiros. Vi que era mais ou menos como os daqui. Parece que a Arca de Noé parou entre o Brasil e a África: saíram os mesmos bichos em ambas as direções. Caminhei com um certo tédio. Mas o zoológico estava cheio de visitantes, e, como gosto muito de analisar as psicologias…

De repente, notei um certo movimento, e percebi que era uma celebridade que estava chegando. Realmente, cercada de um grande grupo de africanos, vinha caminhando uma mocinha, de uns dezoito a vinte anos, na flor de sua juventude, e negra como ébano.

Estava vestida de um modo que, creio, nunca me esquecerei na vida: uma saia meio rodada, de cor-de-rosa muito mimoso, muito leve, muito seco; um cor-de-rosa de sonho, parecido com uns esmaltes franceses que se faziam antes da Revolução Francesa, uma espécie de aurora imaginada que só eles eram capazes de fazer. E com panejamentos abundantes e um turbante da mesma cor. Dir-se-ia que o cor-de-rosa delicado faria um contraste violento com o negrume, e poderia parecer esquisito. Mas não. Combinava maravilhosamente! Pendentes sobre o colo, ela trazia uma porção de colares, missangas com vidros coloridos – via-se que ela sonhava com jóias mitológicas – com as quais brincava meio distraidamente, com muita graça. Modo indireto de chamar a atenção.

Caminhava e tomava atitudes com muita graça, mantendo uma postura graciosa, e com modos dignos e distintos, sem arrogância . Seu desembaraço e afabilidade, sabendo manter os outros a distância (pareceu-me bem moralizada), criava em torno de si uma atmosfera de gracejo leve, inocente, como uma brisa vinda do mar. Tinha um grande poder de expressão. Seu sorriso era como um perfume que, sem ser importuno, era penetrante, irresistível. Perfume de bom humor, de graça. Era literalmente encantadora, e tinha alguma coisa quase como o charme francês.

«Na hora do Angelus, os homens todos pararam, como guardas colocados à porta do palácio de um rei, e começaram a rezar…»

No seu rosto redondo, uns olhos redondos também às vezes olhavam para além da realidade material, exprimindo uma forma peculiar de refletir. Era uma sonhadora. Refletia olhando para cima, diferentemente dos brancos, que refletimos olhando para baixo. E havia nela uma doçura que os brancos não têm.

Foi só ela aparecer no meio dos passageiros da “Air France”, que todos tiraram suas máquinas fotográficas e só se ouvia o barulho dos “clics” dos botões disparadores. Só faltava subirem uns nos ombros dos outros para poder fotografá-la. Ela, com muita categoria, olhava para um quati qualquer, preso lá numa jaula, e, fingindo que prestava atenção no animal, se punha numa pose de três quartos para os fotógrafos.

O quati fazia qualquer movimento, e ela dava risada, pegava o maço de colares e sacudia como quem se diverte, olhando para os que estavam mais distantes, sorrindo também, como que perguntando: “Não é mesmo engraçado?” E as missangas fazendo seu ruído característico. Resultado: ficava interessantíssima! E tinha a amabilidade de deixar-se fotografar por todo mundo que quisesse levar dela uma recordação.

Professores catedráticos e janízaros

Chegamos ao centro da cidade, e eu estava muito interessado em observar o povo. Os negros do Senegal são altos, verdadeiras torres humanas, bem constituídos e com cara séria. Portavam fez, um chapeuzinho em forma de cone, truncado bem perto da base, mas o qual, se fosse comprido, tenderia a se fechar numa ponta. A cor era de um vermelho um pouco escuro, e alguns homens, talvez os mais cotados, traziam no alto um pompom preto.

Não sei se era moda, tradição ou um dia de festa, mas todos estavam vestidos de um mesmo modo: esse fez, e uma túnica que chegava até os pés, de diversas tonalidades da cor creme, e listas verticais um pouco espaçadas e de cores diferentes, mas muito discretas, através das quais víamos o fundo bem claro da túnica. Esse traje acentuava a altura deles, e lhes dava uma distinção e um ar de quem olhava de cima para baixo, inclusive para nós, brancos. À distância, os tecidos me pareciam feitos de lã, no meio daquele calor tremendo. Fiquei sem uma explicação. Além do mais, por cima da túnica tinham outra cobertura, sem mangas, e não fechada na frente. Era uma espécie de colete.

Conhecendo o povo do Senegal, Dr. Plinio compreendeu aquilo de original que a raça negra é capaz de produzir, e que seja supremo por muitos lados

Tudo lhes dava a atitude meio de professor catedrático de uma grande universidade, meio de janízaro.

Na maioria, os senegaleses são maometanos. Em certo momento, às seis horas da tarde, hora do Angelus, ouço um sinal qualquer, e percebo uma movimentação entre os homens que andavam por ali. Todos pararam, e pareciam guardas colocados à porta do palácio de um rei. Não tinham espadas, mas espiritualmente estavam com um iatagâ na mão, para abater qualquer um que tentasse entrar sem licença. Deitaram-se no chão, literalmente, e começaram a rezar, com gestos de mãos, e curvaturas, etc. A mim me cortava o coração vê-los rezar algo que não era católico. Mas, é preciso dizer, a cerimônia era bonita.

Todas essas cenas que vi em Dakar mostram que os africanos são capazes de construir uma realidade parecida com a fantasia.

O ônibus seguiu e eu pensei em três coisas: “Se pudesse, faria tudo para convertê-los já!” Segundo: “Como é pitoresca a raça negra!” E, por fim: “Como é grande a França, que soube emoldurar tudo isso!”

O charme da tulipa negra

Saí de Dakar, pois, com o espírito repleto de observações, que deram origem a uma série de reflexões. Por exemplo, tendo em vista as qualidades que os africanos demonstram hoje, pode-se perguntar: se o continente inteiro fosse convertido, e sofresse a influência civilizadora da Igreja, como brilharia? Temos a esperança de que, um dia, Nossa Senhora reine sobre toda a terra. Numa era assim marial, que papel representaria a raça negra no conjunto dos povos? Poeticamente, a pergunta poderia ser feita assim: no conjunto das flores que Deus criou, como conceber uma flor negra? E que relação ela teria com as harmonias do universo?

Certa vez, andando de automóvel em Paris, creio que a caminho do aeroporto, ia atravessando bairros da periferia. É preciso dizer: o centro de Paris tem as maravilhas que sabemos, mas suas periferias deixam muito a desejar. O comércio vai escasseando, a riqueza das vitrines é menor também, e muitas vezes o bom gosto.

Observava isso quando, de repente, dei com a vista num bonito e pitoresco vaso, arranjado com aquela nota picante que os franceses sabem pôr em tudo: no centro, uma tulipa negra, e, em torno dela, tulipas de vermelho cor de sangue, outras de vermelho menos acentuado, amarelas e brancas, formando uma policromia em que a cor preta era a nota firme, dando encanto a todo o resto. Não é de espantar que eu me tivesse lembrado da raça negra.

Em certas circunstâncias e ocasiões, ela manifesta uma capacidade de expressão que não é tanto a da palavra, mas a do porte, do movimento e do gesto, do riso, da compenetração, que lhes dá um poder inigualável. E, pensando particularmente nos negros do Brasil, eles têm uma forma de sentimento, de bondade, de afabilidade, de desejo de servir, que também é inigualável.

Deus quis que o gênero humano fosse capaz de conter e desdobrar todas as formas de beleza específicas e próprias, de modo a formar uma coleção completa. A cidade de Dakar, com o que tem de original e característico, ilustra bem como a coleção dos homens ficaria como uma boca na qual falta algum dente, caso Deus não tivesse criado os negros.

Através dos senegaleses, e sobretudo daquela moça do jardim zoológico, cresci na compreensão daquilo que os negros podem produzir de elevado, e que por muitos lados seja supremo.

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