No dia 28 de agosto de 1952, Dr. Plinio desembarcava em Londres, na única vez que esteve em terras inglesas. Depois, em diversas ocasiões, compartilhou com seus amigos recordações dessa viagem, na qual ele discerniu uma Inglaterra mítica, que esperava voltasse um dia ao redil da verdadeira Igreja.
Quando estive em Londres, vi, no tapa-vento — portanto, no lado de fora — de várias igrejas anglicanas, fotografias do Papa. Entre eles há sempre uma tendência para estabelecer um tertium genus entre protestantismo e catolicismo, como uma necessidade de toda uma família de almas. A Igreja Anglicana, de Henrique VIII até hoje, ficou dividida em duas tendências, que representam duas famílias espirituais. Uma delas é nostálgica do catolicismo e sempre quer voltar a ele.
É curioso que eles não se reputam protestantes, mas se dizem católicos anglicanos.
Eu sempre tivera dificuldades em relação à Inglaterra, a tal ponto que realmente só vim a compreendê-la melhor quando já era bem maduro, ao visitar Londres. Ao chegar ali, soube que o país teve muitos mártires. Pensei: “Sim senhor! aqui há valores que eu não conhecia”.
Acima, fachada da Abadia de Westminster; ao lado, a nave central
Levaram-me para ver, numa esquina muito comum de um bairrozinho de terceira ordem de Londres, um local em que havia um quadrado de madeira branca, posto em torno de um certo ponto com metal cravado na pedra. Quando vi, gravado nessa placa, a informação de que ali morreram tantos mártires da Igreja Católica na perseguição anglicana de tal época assim, compreendi o que era tudo aquilo, e comecei a ver uma outra Inglaterra.
Na Abadia de Westminster
Lembro-me da surpresa que tive visitando a, infelizmente hoje protestante, Abadia de Westminster. Entrei de repente numa espécie de capelinha lateral, toda ela como uma imensa palmeira, tendo ao centro uma coluna cujo capitel parecia girar e dele saírem mil nervuras que se agarram no teto. Embaixo havia jazigos de reis e rainhas orantes, dormindo seu sono eterno. Achei isso maravilhoso, uma das mais ousadas concepções da arte gótica.
O que isso me lembrou? As tiradas de Santo Agostinho, sobretudo nas Confissões, elancés, belas, ousadas, elegantes, dignas, superiores como aquela capela. A alma dele já tendia, pois, para a arte gótica. É um exemplo de onde ela nasceu: nos primeiros que começaram a originar essa sede de beleza que depois resultou numa abadia como aquela. O gótico que floresceu foi criado gradualmente, do fundo para cima, como os bancos de coral que vão sendo formados ao longo dos tempos por tais e quais animais até aflorarem na superfície do mar e constituir ilhas. Assim também o banco de beleza foi se formando do ponto inicial até o momento em que aflorou o estilo gótico, a arte maravilhosa.
O Big Ben e o amor à pontualidade inglesa
Emocionei-me ao ver o Big Ben. Uma torre lindíssima, além de ser o próprio símbolo da pontualidade britânica, ela mesma símbolo de uma porção de qualidades da alma inglesa. De tal maneira que, se um dia derrubassem o Big Ben, a Inglaterra se desfaria. A Inglaterra inglesa — naquilo que ela se diferencia dos outros povos, com seu gosto da exatidão, da precisão, da coisa bem-disposta, bem-organizada — deixaria de ser a Inglaterra.
Acima, o pórtico da Virgem: ao lado, a Capela de Henrique VII, em Westminster
A meu ver, no gênero dela é uma torre perfeita à qual nada há que acrescentar, nada que tirar, e que paira acima da contingência da vida humana. Sinto-me apoiado no meu desejo de continuidade, ou seja, sinto-me apoiado nas fontes de minha própria fortaleza, sabendo que a torre do Big-Ben está de pé. Se eu soubesse que ela foi arrasada, ficaria indignado. Tenho idéia de que ela representa tão bem a estabilidade, e faz tanto bem à alma do homem contemplar essa qualidade de vez em quando, que o senso da estabilidade encontra uma certa nutrição em saber que a torre do Big Ben está sempre de pé e não mudará.
Lembro-me de que comprei um jornal a esmo e vi uma fotografia da Place de l’Étoile — um dos lugares mais civilizados da Terra — em Paris, onde está o Arco do Triunfo, num dia de trânsito engarrafado. Uma fotografia tirada com toda a objetividade, bem cheia de fleuma, e o cabeçalho em cima dizia o seguinte: “A África começa na França”. Eu achei a tese muito singular. Como é que a África começa no litoral francês? No subtítulo vinha: “Vejam a desordem do trânsito, na Place de l’Étoile. Isso indica que a ordem britânica não vigora na França. Já é a África!”
Achei muito pitoresco, porque era evidentemente um exagero intencional. Mas ilustra como a exatidão do trânsito e outras coisas estão na alma inglesa. O Big Ben é o símbolo de tudo isso.
Florzinhas com gosto de alfazema
Fui convidado pelo diretor do jornal católico The Tablet — naquele tempo, um dos maiores jornais católicos do mundo — para jantar no Catholic Club.
Ele perguntou-me de que queria servir-me. Escolhi, não propriamente um beef, mas um assado. Desejava saber ele o que eu queria para acompanhar esse assado, e sugeriu-me uma hortaliça. Não entendi a sugestão, mas disse: “Quero!” Pensei que fossem batatas ou similares…
De súbito, vejo chegar um tufo de umas ervinhas fininhas, de um verde muito tenro e delicado, na ponta de cada qual surgia uma florzinha branca. Percebi que era uma ervinha com um gosto muito especial, e comê-la era quase maltratá-la, mas certamente uma delícia. Meti a faca sem dó nem piedade naquelas ervinhas, e as degluti. Tinham um gosto de alfazema delicioso. Era um verdadeiro petisco, e nunca me esqueci delas.
Essa ervinha muito delicada tornava mais saboroso o avanço, um tanto brutal, de um homem de muito apetite em cima de um pedaço de carne. Era um traço de suavidade. A sua fragilidade tornava-a preciosa. Quanta sabedoria e maravilha na desigualdade!
O simbolismo do “five o’clock tea”
Estive presente a um five o’clock tea — o chá das cinco da tarde — num hotel médio onde eu estava hospedado. Em certo momento começou a chegar gente, a chegar gente… Perguntei a um brasileiro que estava comigo: “É uma recepção?” Ele respondeu: “Você está esquecido? É o five o’clock tea”. Então deitei um olho em cima para ver como é que transcorria aquilo.
Nessa hora tudo se interrompe, todos vão para o chá com aquela pontualidade que supõe um estado de espírito, uma mentalidade que — metafisicamente falando — é de uma cor de cristal.
O chá é de preferência ligeiramente ácido, um tanto forte, num momento em que mais se bebe do que se come. Come-se apenas para a bebida não fazer mal. Mas não é hora de se alimentar truculentamente com gordos sanduíches de pão preto com língua e mostarda, por exemplo, mas com uns biscoitinhos plutôt secos.
O five o’clock tea é animado por certas idéias levadas a uma unilateralidade exagerada, mas que constituiriam qualidades do povo inglês se ele fosse católico. Por exemplo, a idéia de saborear uma bebida, comendo pouco, dá um certo primado do espírito. Olhem que sou levado ao contrário por minha natureza, mas de bom grado reconheço que isso representa um certo primado do espírito. Depois, não ser álcool, mas sim uma bebida que simboliza a inocência do não-alcoólico, e cuja preparação permite pôr matizes de toda ordem, de modo a se poder fazer uma degustação discreta desses matizes, eles mesmos discretos… E a conversa é num meio tom em que as pessoas comunicam meias palavras, e comunicam sensações tamisadas¹ num ambiente silencioso no qual uma gargalhadona, depois de uma piada, seria considerada uma violação.
“O Big Ben, uma torre lindíssima, símbolo da pontualidade britânica,” sem o qual “a Inglaterra se desfaria…”
Há nisso algumas coisas que têm sua morada, seu habitat, no mundo do cristal.
Quando numa nação inteira, numa hora certa, blocos de pessoas tomam essa atitude e orientam seu espírito de maneira a refletir esse lúmen, passa-se algo na ordem de uma realidade superior e mais profunda.
No fundo, dá-se que as perfeições divinas se espelham nos homens. E essas perfeições, na medida em que os homens as refletem, atraem graças de Deus. Se todos os homens praticassem as perfeições que lhe são próprias, o Céu se rejubilaria, porque a vida dos Anjos é essa. Os Anjos são o cristalino puro, e eles têm uma densidade de ser e um modo de ser pelo qual irradiam tudo isso.
Esse hábito, que é característico do espírito inglês, produz uma consonância de todas aquelas almas naquele mesmo estado de espírito. E dá ao observador a sensação de que essa consonância faz todos esses espíritos se fundirem num como que espírito mais eminente e mais alto, que paira sobre aquilo. E que há uma permeação de cada alma com aquele espírito coletivo, e daquele espírito coletivo com cada alma, dentro daquela sala de chá.
Um homem que percebesse esse “unum”, teria compreendido a beleza do five o’clock tea. Há na criação miríades e torrentes de coisas assim, que são realidades psicológicas, espirituais, que se revestem de aparências materiais, ao alcance dos homens. Quem entendesse que isso não é senão o símbolo de um Anjo, e soubesse degustar o símbolo, poderia praticar um ato de piedade excelente para com esse Anjo.
Um país de lordes
Todo inglês tem qualquer coisa de “gentleman”, até o plebeu. Não posso me esquecer de algo que vi, logo após desembarcar em Londres.
Os aeroportos costumam ter, nas saídas, o que vulgamente se chama de “borboleta”, uma catraca. Em Londres, diante de cada borboleta se achava um homem, sentado sobre uma espécie de banco alto, para controlar a saída. Quem passava tinha de apresentar a ele a passagem.
Na minha passarela, olhei maquinalmente e encontrei um “mister”, muito bem vestido: gravata borboleta, que ninguém usava mais naquele tempo; uma risca de cabelo bem-feita no centro da cabeça, impecavelmente bem penteado dos lados; camisa rapada, mas sem nada de costurado nem de manchado; roupa muito usada, mas bem conservadinha. Aquele homem e seus colegas estavam tão bem-arranjados, tão limpos, com tanta dignidade, que se tinha a impressão de verdadeiros gentlemen. Fiquei encantado de ver um funcionário exercendo uma função tão humilde e, entretanto, com tanta dignidade.
Tinha o ar de um lorde sentado na Câmara dos Lordes para assistir a uma sessão. Quando passei perto dele, entendi: “Este é um arquétipo”. Compreendi as funções, a psicologia, o papel e o efeito do papel sobre a psicologia desse homem e dos congêneres dele no mundo inteiro. Para mim, a partir desse momento, o arquétipo de um homem que toma conta de uma borboleta ficou sendo esse.
Os Couraceiros da Rainha
Eu quis ver a Guarda da Rainha, e para isso fui relativamente cedo para diante do Palácio de Buckingham.
Era uma manhã brumosa, mas de tempo bonito. Não era o famoso “fog” londrino, que é tão escuro e denso de fumo e nevoeiro, que às vezes as pessoas esbarram umas nas outras; pelo contrário, era uma neblina prateada, bonita e leve. Uma banda de música militar, no parque da rainha, tocava uma qualquer coisa para se ouvir. De repente, eu vejo emergir de dentro da bruma, parecendo heróis míticos e demiúrgicos, os Couraceiros da Rainha.
Andavam — digamos, pois não me lembro bem — em filas de quatro, com aquelas couraças e elmos reluzentes, com aquela crina caída atrás, espada, e guiando o cavalo. A música militar tocando. Passaram como se não houvesse ninguém. O povo rebentava de bater palmas, mas eles eram superiores a tudo isso. Cavalgavam dentro de seu próprio mito. Quando se abriram os portões do parque da rainha, entraram solenemente e sumiram sob um arco…
Nostalgia de uma Inglaterra ideal
Perante toda essa cena, compreendi bem a nostalgia que os ingleses têm da Inglaterra como ela devia ser, e não é.
Ainda ficam de pé na Inglaterra restos esplendorosos de um passado pré-anglicano, que justificam a exclamação de São Gregório Magno no mercado de Roma: Non angli, sed angeli, si fuissent christiani. [“Não anglos, mas anjos, se fossem cristãos”, exclamação do Pontífice à vista de uns meninos ingleses não batizados, que iam ser vendidos como escravos.]
Quer dizer, existe no espírito inglês uma idéia teórico-prática (não é meramente teórica) de como as coisas deveriam ser. E um desejo muito grande e muito exigente de que elas sejam assim, adaptando a isso todas as exterioridades.
Alguns dizem que agir desse modo é hipocrisia, porque eles não observam a moral que as aparências parecem simbolizar. A questão é um pouco diferente: por maior que seja a decadência moderna, na qual estão engajados, ainda lhes resta uma nostalgia de como as coisas deviam ser. E isto é um ideal. Ele será atingido no dia em que a Inglaterra for novamente católica.
1. Tamisa: peneira de seda. Tamisar: depurar. De onde o termo “tamisado”, bastante utilizado por Dr. Plinio nas suas exposições sobre metafísica, para se referir a raios de luz atenuados por um voile, ou um vitral, bem como a aspectos da realidade delicadamente filtrados pelos sentidos.