No primeiro artigo desta seção, Dr. Plinio abordava um tema central de seu pensamento sociológico: a sociedade temporal não tem mera função logística, mas deve também ser ordenada de modo a auxiliar a Igreja na tarefa da salvação das almas. Hoje publicamos a conclusão da mesma conferência, quando Dr. Plinio trata de questões relacionadas com essa tese.
Um ponto que não me parece ter sido suficientemente ressaltado, mesmo entre os melhores tratadistas de Direito Natural do século XIX, é que a sociedade temporal abarca uma realidade mais vasta do que apenas o Estado. Em geral, quando se falava da sociedade temporal, focalizava-se de preferência o Estado.
De fato, a ordem temporal é uma sociedade da qual o Estado é o ordenamento supremo. Contudo, ao deitarmos sobre ela nossa atenção, devemos ter em vista muitos outros valores e aspectos. O Papa Pio XII, entre outros, tem ensinamentos muito bons a esse respeito, sublinhando, por exemplo, o princípio de subsidiariedade, e mostrando que em algo a sociedade se distingue do Estado.
Uma sociedade católica ideal, estruturada em conformidade com a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve refletir as perfeições de Deus e despertar nas almas o amor a Ele.
(Ao lado, um castelo francês com a aldeiazinha nascida ao seu redor)
Responsabilidade em todos os cargos de direção
Todos os dirigentes de corpos constituídos dentro de um Estado — diretores de colégios, reitores de faculdades, pais de família, presidentes de academias de letras, dirigentes de sindicatos, de bolsas, de atividades comuns temporais — por seu próprio cargo, têm importante papel dentro da sociedade, inclusive naquele sentido que vimos estudando, do apostolado dos leigos.
Se cada um deles estruturar seu ramo e seus subordinados segundo a boa organização natural e em conformidade com a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, presta o serviço simbólico a Deus, do qual falamos — a organização social refletindo as perfeições de Deus.
Tomemos uma repartição pública, por exemplo, ou mesmo um escritório de datilografia, ou uma loja de fotografia. Se for bem organizado, exprimindo a ordem natural, segundo a verdadeira moral que é a Moral católica, cristã, ele tem uma perfeição e uma excelência onde a rutilação da alma humana se apresenta inteira. E, pela alma humana, sobe-se até Deus.
Qualquer pessoa que seja diretor ou subordinado numa ordem dessas, e tenha o intuito de organizá-la dessa maneira, presta, do ponto de vista simbólico, um ato insigne de colaboração à Igreja na ordem do amor de Deus. Faz uma ação de apostolado.
Um exemplo muito característico é o de um fazendeiro com seus colonos, seus funcionários administrativos e as respectivas famílias. Ele pode formar uma como que aldeiazinha tão católica que seja miniatura da sociedade católica ideal. É uma minúscula sociedade temporal, encaixada na sociedade muito maior; é uma célula viva da sociedade temporal.
Essa miniatura da sociedade católica ideal deve procurar — e destaco este ponto — desenvolver seus aspectos simbólicos, de modo a refletir os atributos de Deus. Refiro-me especialmente aqui à questão da forma da autoridade — majestosa, paternal, justa —, muito própria a despertar o amor de Deus.
O primeiro mandamento, vida dos demais
Sendo o primeiro mandamento da Lei de Deus a vida dos outros mandamentos, o título de mérito do cumprimento destes últimos é o homem amar a Deus sobre todas as coisas.
Com seu talento iluminado pela graça, Santo Agostinho pintou a sociedade católica perfeita, símbolo de Deus, na qual todos — governantes e súditos, patrões e criados, pais e filhos — viveriam segundo os ensinamentos de Cristo
(Ilustração para o livro “As duas Cidades”, de Santo Agostinho)
Segundo São Paulo, as qualidades que não têm relação com o amor de Deus de nada valem. Assim, a tal ação simbólica deve ser orientada diretamente para o primeiro mandamento. Com essa afirmação, apresento o apostolado a ser exercido pela ordem temporal de um ângulo que não me parece ter sido muito tratado até hoje.
Um trecho famoso de Santo Agostinho diz que uma nação cujo “exército [fosse] composto de soldados que observam fielmente os ensinamentos de Jesus; e assim também os governadores; e os maridos e as esposas; e os pais e os filhos; e os patrões e os criados; e os reis e os súditos; e os juízes; e até os contribuintes e os cobradores de impostos; todos sendo segundo quer a doutrina de Cristo”, tal nação teria um sustentáculo inapreciável (Ep. 138 ad Marcellinum, 2, 15).
Não há quem leia esse trecho e não tenha uma ardente pulsação do coração. Por quê? Porque evoca, com aquele talento no qual há cintilações da graça, algo que nos coloca diante de uma sociedade idealmente católica, que é um símbolo de Deus.
Atividade própria dos leigos
Há na sociedade temporal outros apostolados a fazer. A propósito dela, há outras reflexões que também conduzem a Deus. Não é minha intenção aqui abarcar o enorme leque de questões a tal respeito.
O que desejo é acentuar este ponto, que não vi comentado em outras fontes: o valor simbólico e apostólico da sociedade temporal, das sociedades que integram a sociedade temporal, da vida temporal, em ordem ao primeiro mandamento, e devendo ser atuada pelos leigos com uma intenção apostólica.
Uma sociedade a qual, vista por esse ângulo, é toda ativada por leigos. Homens, portanto, na sua imensíssima maioria casados e com filhos.
Se todos acionassem a sociedade temporal com intuito apostólico, quer dizer, não apenas visando fazê-la funcionar para ganharem dinheiro (é legítimo e até necessário o dinheiro, a fim de proporcionar a seus filhos e à sua mulher um status digno; porém é fim secundário), mas principalmente para que o amor de Deus se espalhe pela Terra, essa sociedade temporal viveria habitualmente em estado apostólico.
O padre em face do apostolado dos leigos
A tal propósito, chamo a atenção para outro ponto dessa questão, no tocante a uma igreja matriz paroquial.
Tomemos uma imagem corriqueira: a relação do coração com o resto do corpo. A pulsação e toda irrigação vêm da matriz. E o pulsar da matriz dá a vida espiritual a toda a paróquia.
Alguém poderia objetar que atribuímos um sentido tão carregado ao apostolado leigo, que não se entende bem qual é o papel do pároco: fica reduzido a algo supérfluo.
A alma da vida paroquial é o sacerdote, que “constrói” os leigos, batiza-os, forma-os, santifica-os; porém, não lhe cabe viver na sociedade temporal, campo de apostolado próprio ao laicato que recebe do clero o sustento espiritual
Uma objeção como esta lembra uma cena na qual alguém estivesse descrevendo longamente o corpo humano, e estivesse elogiando, por exemplo, o papel dos braços. Neste momento, fosse interrompido por um cardiologista ciumento, cioso da preeminência do coração, que dissesse: “E o que faz o coração?” Mas que pergunta! Evidentemente, o coração é a vida do homem! Se lhe for tirado, ele morre!
Ora, o padre também, ele “constrói” o leigo: batiza-o, forma-o, ensina-lhe, dá-lhe os princípios, confessa, dá-lhe os sacramentos, organiza associações que o ajudem. Ensina, santifica e governa as almas. Ele é a alma da vida paroquial. Sem ele, os leigos morrem de inanição!
Possibilidades que só os leigos têm
Logo, o pároco é o coração da paróquia. Mas vejamos a situação do leigo que não seja das almas felizes que freqüentam associações religiosas pertencentes à paróquia. Recebe os sacramentos, assiste à Missa aos domingos, ouve a prática do Evangelho, pode até comungar diariamente, rezar o Rosário. Não obstante, oitenta por cento de sua vida, se não mais, passa-se na sociedade temporal. É uma questão de cronometragem. Assim é a vida da maior parte dos leigos.
Ele encontrará dificuldades para preservar e tornar fecundo o que tiver recebido do padre. São dificuldades nascidas na sociedade temporal.
Ora, pela sabedoria da Igreja, o sacerdote não deve viver muito engolfado na ordem temporal. Segundo o espírito da Igreja, os padres devem ter contato com a sociedade, mas vivendo preferentemente num ambiente clerical. Não é nada recomendável o padre mundano, como aqueles cardeais da véspera da Revolução Francesa, que iam assistir a bailes e dançavam minueto.
Uma coisa é a vida civil, com seus aspectos sociais; outra coisa é a vida eclesiástica.
Sendo assim, na hora do perigo, quem poderá ajudar as almas que ali periclitam? É o amigo leigo, que está presente ali também e luta contra as mesmas dificuldades.
Presilha entre a Igreja e a sociedade temporal
Esse seria um apostolado que incumbiria, portanto, aos leigos, numa sociedade que fosse idealmente católica. E mais necessário ainda numa sociedade profundamente corrompida, como a de hoje.
Os Papas do século XX acentuaram a necessidade de haver leigos que atuem dentro da sociedade temporal. Isso tomou vulto, junto com uma pulsação universal das almas, sobretudo no tempo de Pio XI. Passaram a florescer sociedades religiosas constituídas de leigos, obedecendo a esta idéia: não sendo clérigos, poderiam acumular os dois âmbitos, levando privadamente a vida de um religioso, mas, por suas ocupações, estar misturados a fundo na vida leiga, servindo de estímulo aos outros.
Tomemos o exemplo de um apostolado tipicamente leigo. Num departamento jurídico de uma grande empresa trabalham cinqüenta advogados. Um deles é membro de uma sociedade religiosa de leigos. Sendo leigo, está no seu papel seguindo a carreira de advogado. Mas, estando ali, pode observar quais são os bons, e desenvolver um apostolado especialmente ardoroso junto a esses, de modo que façam desse departamento jurídico o que ele deve ser. Ele é uma longa manus da Hierarquia, uma extensão dos desígnios da Igreja ali dentro.
Isso começou a se multiplicar largamente nas últimas décadas. É a necessidade de uma presilha, de um agrafo entre a sociedade espiritual e a temporal, para que melhor a influência da primeira possa prolongar-se dentro da segunda.
Não se faz uma confusão entre ambas, mas uma ligação para um mais perfeito nexo.
Como isso é diferente, por exemplo, da concepção que havia no tempo dos meus avós a respeito da relação entre clero e laicato!
Mas, naquele tempo, a sociedade tinha sido muito menos devastada pela Revolução (emprego aqui este termo no sentido que lhe dei em “Revolução e Contra-Revolução”). No Brasil ela era, na sua substância, carregada de tradições católicas recebidas de Portugal. Era, ela mesma, um instrumento de salvação. Não era necessária, ou ao menos não era indispensável, ali, essa modalidade de apostolado.
Na sociedade de hoje essa modalidade se torna indispensável!
Permuta de “fachos de luz”
A sociedade temporal, tomada como um todo, resulta do equilíbrio de duas influências: a de cada homem sobre o todo e a do todo sobre cada um.
Ela é feita de homens que não são robôs. Cada homem é, ele mesmo, um pequeno universo. Tem uma certa forma de autonomia, de privacy, de privatum próprio que é inesgotável e insondável. É da projeção dos mil fachos de luz individuais que se forma a luz conjunta que nós chamaríamos de mentalidade da sociedade temporal.
Não podemos, entretanto, considerar apenas esses fachos de luz do homem (para continuar a usar a comparação) incidindo sobre o exterior. Sim, porque o homem não apenas influencia, mas ele também vê as coisas e recebe delas uma influência. Assim, precisamos levar em conta a luz somada dos mil fachos individuais repercutindo sobre ele. Há, assim, um commercium.
Essa como que “circulação de fachos” faz com que a sociedade temporal, tomada no seu conjunto, impressione profundamente o homem.
Se não tivesse havido pecado original…
A respeito do tema “sociedade temporal”, há certas divagações que me agrada fazer. Uma delas é sobre o que teria acontecido se Adão e Eva não tivessem pecado.
Eles teriam crescido e se multiplicado, e sua progênie teria enchido a Terra. E teria havido sociedades. Não podemos imaginar, como muitas pessoas, que Adão e Eva fossem uma edição paradisíaca do “bon sauvage” de Rousseau. Eles tenderiam a construir uma civilização, a desenvolver a arte, etc.
Imaginado o Paraíso habitado por homens inocentes, que amassem a Deus, qual seria o teor de relações de Deus com eles? E como seria a sociedade deles?
Como tudo indica que, segundo o plano d’Ele, em determinado momento o Verbo se encarnaria, tudo leva a crer que Nosso Senhor Jesus Cristo seria o Rei visível dessa sociedade; e que, à espera desse Rei, tudo fosse sendo edificado numa ordem magnífica; e que, vindo Ele, essa ordem, já pela simples presença d’Ele, pela sabedoria e pela onipotência d’Ele, fosse galardoada ainda de maneira inimaginável, culminando em aspectos insondáveis para nós.
Mas a Encarnação se daria no fim do mundo, encerrando a História? Ou se daria no meio da História? São coisas belas para imaginarmos.
O homem viveria numa ordem que seria diretamente teocrática? Deus quereria conservar com todos os homens as relações que tinha com Adão? (Ele descia do Céu e conversava com Adão na brisa.) Teríamos, assim, uma teocracia direta? Como seria essa ordem?
Poder-se-ia objetar que tais hipóteses não passam de mera cogitação vã e tola. Engano!
Tendo-se a prudência de não transformar hipótese em tese, nem fantasia artística ou literária em hipótese, poderíamos excogitar algo de que todo homem, perceba ou não perceba, é sedento. Cada ser humano tem tendência para a sua própria perfeição, e em algo geme por não viver nela. Ser-lhe-ia muito útil imaginar como poderia ser a vida dos homens se não tivesse havido o pecado original. Isso poria um foco de alegria nesse ponto de tristeza.