Enquanto O conduziam, detiveram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Falando de improviso para um auditório de jovens, Dr. Plinio compôs um quadro em torno desse episódio da Paixão.
(Acima, “O Cireneu ajuda Nosso Senhor a carregar da cruz”, Passo da Paixão em Sevilha)
A figura de Simão Cireneu nos aparece de passagem, na breve porém eloqüente narração do evangelista. Uma só frase, através da qual podemos fazer peregrinar nossa imaginação.
Assim, devemos pensar no Cireneu como um homem modesto, pobre, levando a sua existência rural do melhor modo que lhe era possível, com aquela felicidade própria dos menos abastados, livres dos problemas e apreensões que muitas vezes rondam os donos de maiores posses.
A perspectiva de aceitar a dor
Vinha ele, portanto, caminhando despreocupadamente, a atenção voltada para as miudezas de sua vida simples e alegre: a sandália meia desgastada que era preciso consertar; um passarinho avistado num arbusto da estrada, e que talvez fosse divertido apanhar e levar para comer ou conservar numa gaiola, etc., etc. Quiçá viesse cantarolando e assoviando, sem ter a mínima idéia do que o aguardava pela frente.
De súbito, ouve os gritos de uma turbamulta: “Mata! Mata! Crucifica! Crucifica!” Logo depois, fortes gemidos: “Ai, ai! Tende pena de mim!”
E a tragédia irrompeu na tranqüila vida do Cireneu. Ele nunca ouvira ninguém gemer daquele modo. Que dor lancinante! “Quem seria o homem que bradava assim? Mas, estaria gritando ou cantando? Que voz harmoniosa, que timbre bonito! Que vontade eu teria de ajudar esse homem que geme de maneira tão celeste. Quem será ele?”
Sentiu-se meio atraído, pela primeira vez, por algo que nunca o interessara na vida. Quando ele via alguém sofrer, tinha desejo de fugir. A dor é o que a sua alegria despreocupada não queria. Seu impulso era o de se esquivar a todas as mágoas, escapar dos que sofrem, pois de repente o padecimento alheio o contagiaria. Entretanto, aquele homem à sua frente necessita de uma ajuda, implora por um apoio. O Cireneu tem pena, e vislumbra a tragédia na qual ele jamais gostaria de entrar. Securitário, quer se afastar daquele caminho. Ao mesmo tempo, porém, a voz chegava mais perto, e os berros dos algozes também se tornavam mais altos. Simão pensava: “Que contraste! Quando este homem geme, seus lamentos são uma música; e esses que gritam contra Ele, que o perseguem, que barulho medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem harmonia, que gente má! Estou com vontade de tomar um partido”.
Era a graça que, sem ele saber, penetrava na sua alma, em seu coração rachado de pena, inclinando-o a fazer o bem. Mas, de outro lado, vinha o egoísmo, a tentação do demônio: “Cuidado! Pense em si, não se incomode. Fuja! Isto aqui dará encrenca, e de repente você vai para a dor junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova”.
O encontro com Jesus
Indeciso, ele continua a ir para a frente. Em certo momento dá-se o encontro: o Cireneu vê um homem de trinta e três anos, longos cabelos desalinhados, gotejando sangue, o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num ponto e noutro, o nariz naturalmente arqueado, quebrado por uma pancada brutal, os olhos pisados, a cabeça coroada de espinhos, e com uma cruz pesadíssima às costas, penosamente arrastada por Ele.
Simão se enche de horror: “Mas, há tanta dor assim na vida? Pode acontecer isso a alguém? Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer a ninguém, e de repente aconteceu a Ele. Não pode, então, acontecer a mim?”
Um dos legionários romanos, um dos senhores da Terra Santa, reluzindo no seu capacete magnífico, sua armadura lustrosa, lanças e armas de César, avista o Cireneu nessa indecisão e lhe diz brutalmente:
— Pegue a ponta da cruz!
Ele pensa: “Como?! Essa cruz ensopada de sangue? Eu vou me molhar com ele.” Mas, enquanto racionava assim, um raio de sol incide sobre o sangue, e este brilha com uma linda cor rubi. Simão se sente atraído, algo lhe diz: “Esse sangue é a salvação, agarre-o!” Mas… mas… mas… e a dor, e o peso dessa cruz?
— Pegue já! — insiste o legionário. — Porque este homem não está agüentando mais, e ainda tem de subir até o alto daquela montanha!
“Mas, então tenho de levar essa cruz até aquele monte, atrás desse pobre coitado, gemendo? Não tenho coragem, é muito esforço e não gosto de fazer esforço. Oh! Como é isso?”
— Pegue, se não você apanha!
“Agora a situação se complica, porque se trata do meu sangue. Dessa não fujo… Devia ter escapado antes. Vou ter de pegar.”
Diálogo de olhares
Simão apanha a cruz. Aquele que a carrega o fita, e ele percebe que esse olhar o penetra completamente. Sente algo de único em sua vida, pois ninguém jamais o olhou assim. Um olhar extraordinário, demonstrando que o conhecia desde sempre, e o envolvia de um afeto incomparável. Ele se viu conhecido e compreendido nas suas peculiaridades mais pessoais, nas suas dores, das quais aquele olhar tinha pena. Mais do que antes, Simão se sentiu atraidíssimo. Já pegava a cruz, o sangue quente que nela escorria lhe batia nas mãos, e ele se envolvendo naquela tragédia que o cativava.
Um diálogo mudo se estabelece entre o Homem-Deus e o Cirineu. Nosso Senhor lhe diz: “Meu filho, é por você que Eu sofro. Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último ponto do desprezo humano. Mas olhe para Mim. Que misteriosa grandeza, que enigmática e envolvente bondade, que dedilha sua alma como um bom médico toma uma chaga para nela colocar ungüento! Você não sente que está sofrendo fisicamente com o peso da minha cruz, mas a sua alma experimenta uma leveza inusitada? Não percebe um horizonte novo abrindo-se para você?”
Estão ao pé do Calvário. É preciso continuar a subir e a cruz para Simão é cada vez mais pesada. Ele pensa: “É terrível isso, mas mais terrível seria se eu jogasse a cruz no chão e Ele caísse sob o peso dela, quebrando as palmas das suas mãos nas pedras desse caminho. Eu não suportaria isso. Agora eu vou até em cima.”
Subiu e, lá no alto, humilde, respeitoso, com bondade ajudou Nosso Senhor a deitar a cruz no chão. Jesus lhe dirigiu um olhar de reconhecimento, o último que deu para Simão. O Cireneu afastou-se e notou que os romanos já não estavam pensando nele. Achava-se fora da tragédia. Enquanto se distanciava, ouviu as ordens gritadas pelos esbirros: “Abra os braços! Estenda bem as pernas! Vamos cravar esses pregos nas suas mãos e nos seus pés!” E a pancadaria começou.
Feliz encontro com Nossa Senhora
De longe, ao mesmo tempo apavorado e fascinado, ainda limpando na sua túnica as mãos tintas do sangue de Jesus, o Cireneu acompanhou todo o desenrolar daquele terrível drama em que se consumava a Redenção da humanidade. Observou o diálogo de Nosso Senhor com os dois ladrões, soube da promessa do Paraíso que Ele assegurou a Dimas; viu o povinho que passava sob a cruz; alguns que vaiavam o Crucificado, outros que O apedrejavam, e outros que choravam. Reparou no céu que ia se escurecendo, a tarde que se transformou em noite, e então ouviu o derradeiro brado de Jesus: “Tudo acabou!”
Aos pés da cruz havia um grupo de mulheres, entre as quais uma que trazia o rosto encoberto, mas exercia sobre o Cireneu atração parecida com aquela exercida pelo Homem-Deus. Ele perguntou:
— Quem é aquela que se esconde?
— É a Mãe d’Ele.
A Mãe d’Ele? Mas, para mim Ela vale mais que uma rainha, mais que uma imperatriz, mais que todo o mundo! Que honra ser Mãe desse homem fracassado, desse homem tão inábil que, sendo inocente, não evitou a própria morte. Que sabedoria a desse homem derrotado, e que vitória essa cena!
O Cireneu continuava a olhar para aquele quadro grandioso à sua frente, e teve medo. Sobretudo quando sentiu a terra tremer, o Templo balançar, e viu estranhas figuras andando de um lado para outro, olhos fechados, envoltas em faixas de panos brancos (como eram então sepultados os cadáveres), e dizendo terríveis censuras ao povo.
Simão quis falar com aquela Senhora, mas não ousou. Achou-a tão pura, que ele não tinha o direito de dirigir-Lhe a palavra. Logo depois, Ela se afastava com o cortejo que conduzia o Divino Redentor para a sepultura, com todo o ritual que precedia a deposição do corpo no seu túmulo. Ele não teve coragem de acompanhá-La, e pensou: “Afinal de contas, o que me acontecerá? Vejo-me tão cheio de idéias, de preocupações, e estou perdendo a esperança, porque sou um miserável, um medroso, um homem carregado de pecados, e nunca estarei à altura de tudo quanto presenciei…”
O cortejo aproximou-se dele, aquela Senhora deitou um olhar de bondade e só lhe disse duas palavras: “Meu filho!”
Ele pensou: “Ganhei o dia, ganhei a vida, estou perdoado! Vou para casa.”
Ao chegar na sua modesta residência, encontrou a mulher e os filhos dormindo. Tudo estava tranqüilo. Teve então o cuidado de trocar de roupa, tomou a túnica ensangüentada e osculou-a com reverência. Era o seu primeiro ato de adoração e de fé: “Esse Homem, cujo sangue tinge a minha vestimenta, é Deus!”
Dobrou a túnica como se fosse o maior tesouro do mundo e a guardou onde ninguém podia mexer. Em seguida, dirigiu-se ao pequeno jardim de sua casa, sentou-se num rústico banco de madeira e se pôs a pensar em tudo quanto vira naquele dia. De repente, percebe que algumas pessoas daquele cortejo voltavam do sepulcro, entre elas a Senhora que tanto o impressionara. Simão saiu de novo atrás delas, acompanhando-as até a casa onde moravam. Antes de entrar, a Senhora voltou-se para ele e, do fundo da dor d’Ela, deu-lhe um machucado, mas florido sorriso. Como se lhe dissesse: “Eu vivo aqui”. Entrou e desapareceu.
Simão compreendeu que se tratava de um convite para ele. Passou então a freqüentar o convívio com Nossa Senhora e os Apóstolos. Tudo leva a crer que se santificou. O silêncio paira sobre o desenrolar desta vida que, para a história, começa também no silêncio. Um homem adulto, saído bruscamente da vulgaridade, entra nesse arco de dor e de glória. Acaba cumprindo o seu dever depois de mil dificuldades, e some de novo no anonimato. Mas a sua alma, sem dúvida, foi recebida no Céu. Ele havia tido a honra, a vocação única de, sozinho, carregar a cruz do Cordeiro de Deus.
Sofrendo por Nosso Senhor, O ajudamos a carregar a cruz
E nós, podemos carregar a cruz de Nosso Senhor?
Do madeiro em que Ele foi pregado resta apenas um pedaço, em Roma, do qual se extraem fragmentos de um valor moral e religioso inapreciável: são as relíquias do Santo Lenho. Mas, a grande cruz em que o Salvador morreu, esta não existe mais. Como podemos, então, carregá-la?
Há inúmeros modos de fazê-lo, pois inúmeros são os tipos de sofrimento pelos quais passamos. E quando padecemos por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, estamos carregando com Ele o Santo Lenho. Sejam as penas físicas que se abatem sobre nós, sejam as dores e provações morais, sejam os desprezos e malquerença de que somos objetos por nossa fidelidade à Igreja Católica, sejam ainda os duros esforços que, não raras vezes, nos custa a prática exímia dos Mandamentos: sempre que o sofremos, é um passo a mais que damos junto com o Divino Redentor, aliviando-Lhe o peso da cruz.
Cumpre, porém, não nos esquecermos de outra verdade. Ajudando assim a Jesus na sua Via Crucis, a exemplo de Simão Cireneu, estaremos, como este, nos tornando merecedores de uma recompensa demasiadamente grande, de um prêmio de valor incomensurável, que o próprio Salvador nos tem reservado no Céu.