O homem simplesmente em estado de graça, mas sem a inocência, é menos perspicaz do que o filho das trevas, o qual fundamentalmente é egoísta. Mas quando alguém tem um grau de amor de Deus e de inocência tal que excede o egoísmo e o comprime para conservá-la, é mais ágil, esperto e combativo do que o egoísta para conservar sua vantagem.
No modo de ser do homem nascido entre as décadas de 1920 e 1940, mais ou menos, caracterizava-se, sobretudo, a extroversão, correr atrás das coisas que estão fora dele, as quais ele quer ter porque lhe produzem o bem-estar interno desejado por ele e, com isso, a felicidade. Então possuir muitos automóveis, barcos, casas para passar férias muito variadas, tudo isso era desejado, não tanto por causa de um bem em si, mas por produzir no homem uma felicidade e um bem-estar que resolvem o problema de alma.
Conhecer uma pessoa pelo seu modo de ser
Dessa posição extrovertida decorria a ideia – e aqui está o erro fundamental – de que um homem só pode julgar outro pelas ações externas que ele pratica. Portanto, pelas coisas que ele diz ou faz, mas não pelo aspecto, pela fisionomia, pela presença dele. As impressões nesse sentido eram tidas, nessa época, como fátuas e falhas. O homem criterioso não deveria agir em face de alguém baseado nisso, mas sim em virtude do que o outro declara ou realiza.
Ora, de fato, o homem tem uma possibilidade de sentir a afinidade ou a heterogeneidade com outro homem, independentemente daquilo que este diga ou faça. Se essa capacidade de ter impressões assim não é relegada desde logo para a lata de lixo, mas trabalhada, aproveitada, educada, o homem é capaz de afinar muito este seu senso e chegar a uma espécie de discernimento dos espíritos natural.
Ele lhes fez todo o bem e os maus responderam daquele modo, preferindo Barrabás ao Salvador, porque a presença d’Ele lhes era insuportável, enquanto a Barrabás eles suportavam completamente.
O homem pode conhecer outro, e a presença de uma pessoa pode ser insuportável a outra simplesmente pelo modo de ser de alguém, sem que isto constitua juízo temerário nem impaciência. Mas, de ponta a ponta, são duas mentalidades diferentes que se encontram. É o conhecimento por conaturalidade que completa o conhecimento racional, adquirido pelo indivíduo ao analisar as palavras, os gestos e as atitudes de uma determinada pessoa.
Por causa disso, sustento que há no fundo do olhar do revolucionário algo por onde ele vê o fundo do contrarrevolucionário. Mas vê mesmo e não perdoa, porque há a inimizade da qual nos fala a Sagrada Escritura: “Inimicitias ponam…”1
Logo, existe também – pelo menos deveria existir − o contrário do lado contrarrevolucionário: ver o revolucionário e ser completamente incompatível com ele. O revolucionário e o contrarrevolucionário precisariam, portanto, ao se verem, votar uma oposição recíproca que fosse até a remoção do revolucionário do panorama de vida do contrarrevolucionário. Então, diminuição do prestígio, do poder dele, em última análise, remoção do panorama nos modos que fossem adequados. O que certamente se dá do lado dos revolucionários; eles fazem isso. Mas fomos preparados para não fazer, o que explica a derrota sistemática do contrarrevolucionário, porque nós negamos esse princípio.
O filho da luz e o inocente
Aliás, os maus realizaram isso com Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele lhes fez todo o bem e os maus responderam daquele modo, preferindo Barrabás ao Salvador, porque a presença d’Ele lhes era insuportável, enquanto a Barrabás eles suportavam completamente.
A meu ver, essa viveza do senso do revolucionário ao perceber o contrarrevolucionário explica a queixa de Nosso Senhor no Evangelho: “Os filhos das trevas são mais espertos, no seu gênero, do que os filhos da luz” (cf. Lc 16, 8). Eles espontaneamente são assim.
O revolucionário, por ser fundamentalmente um egoísta, tem toda a movimentação do instinto de conservação e dos instintos do amor de si mesmo levada a uma vivacidade proveniente da quase brutalidade do senso do ser, quando este se exerce sem contrapesos: “Eu sou e quero ser agradavelmente! Porque quem tem o esse2 quer possuir o bene esse. E para ser agradavelmente eu preciso ter uma ordem de coisas que me dê tais prazeres e tais vantagens. Assim, eu vou em cima disso! E, sobretudo, não posso ter a presença contrária, que me contradiz e me inferniza. Portanto, a este, contrarrevolucionário, mais do que tudo, eu não quero!”
Por causa disso também, desde o tempo do colégio se vê coisas como esta: Dois meninos são parentes, moram em casas vizinhas, têm afinidades importantes. Na primeira infância, brincaram juntos muito agradavelmente. Mas um ficou revolucionário, e outro preservou a sua inocência. O revolucionário não toma em conta esses fatores de união e de afinidade para nada! Ele é aliado de outro revolucionário. E se ele presenciar uma briga entre um estranho e o amigo dele contrarrevolucionário, no fundo dará razão ao estranho e se oporá ao contrarrevolucionário.
A inocência pode ter perspicácias, agilidades e destemores heroicos maiores do que os dos filhos das trevas. Um exemplo disso foi Santa Joana d’Arc. Para o perfil moral dessa Santa ficar completo, não se podia imaginar que ela tivesse nascido, por exemplo, na Florença daquele tempo, no meio dos esplendores da Renascença. Ela precisava nascer numa aldeiazinha como Domrémy, e ser pastora. É ali que ela tomou a experiência da vida, se tornou ágil, dúctil, enérgica… A heroína e a política que ela realizou se formaram em Domrémy, na inocência.
Quando a alma tem um certo grau de núpcias com a inocência, ela possui mais do que os filhos das trevas. O filho da luz é a inocência em seu estado de integridade. A superexcelência da condição de inocente é ser filho da luz.
Dentre os inocentes, o mais perspicaz é o que tem, portanto, uma união de alma inteira com a luz, e a quem esta se comunica por completo. Quando ele não é mau, mas não tem essa inocência, então a luz coa nele mais debilmente. Ora, Nosso Senhor não disse que os filhos da luz deveriam ser necessariamente menos perspicazes. Ele constatou um fato concreto: eles habitualmente são menos perspicazes.
Quer dizer, raros são os fiéis à inocência. Há aqui, portanto, uma questão verbal para resolver. O que nós chamamos de inocente é aquele que conservou toda a fidelidade à inocência – então o filho da luz é menos do que o inocente; ou o filho da luz e o inocente deveriam designar a mesma categoria de pessoas?
Nós deveríamos dizer: o homem simplesmente em estado de graça, mas sem a inocência, é menos perspicaz do que o filho das trevas. Sem essa inocência o filho da luz tende a ser bobo. Isso se explica porque quando um homem tem um grau de amor de Deus e de inocência tal que excede o egoísmo e o comprime para conservar a inocência, esse homem é mais ágil, mais esperto, mais combativo, mais militante do que o egoísta para conservar sua vantagem.
Santa Joana d’Arc desde o início teve a perspicácia que superou os filhos das trevas. Nela, a santidade inocente, em Domrémy, acumulou uma capacidade que a militância tornou de potencial em atual e, portanto, em certo sentido aumentou. A prática da virtude aumenta a virtude. Mas, potencialmente, tudo nasceu em Domrémy.
Ela recebeu, com certeza, esta inocência em grau muito eminente, mais do que o comum das pessoas, por causa da missão a desenvolver, isso é evidente. Mas, por analogia, em grau menor, isso se verifica com qualquer pessoa que conserve a inocência íntegra, na proporção dada pela Providência.
São João Batista: um inocente no mais alto grau
O tipo do inocente forte na sua plena acepção é São João Batista. Concebido já na Nova Lei, é verdade que dentro do pecado original, mas purificado desse pecado logo depois de ter sido concebido, e feito para anunciar o Cordeiro de Deus que viria.
A respeito de São João Batista, Nosso Senhor disse que era Elias, um Anjo, o maior homem nascido de mulher. Ele não disse isso de ninguém. Fica-se um pouco sem compreender o que aconteceu, porque, pelo que o Evangelho conta, ele fez pouca coisa. Quer dizer, compreende-se o que ele realizou através do elogio de Nosso Senhor, a própria Sabedoria encarnada. O Antigo Testamento conta o que ele ia fazer: abaixar as colinas, elevar as planícies, preparar um povo perfeito, retificar os caminhos. O todo da atitude de Nosso Senhor com São João Batista era de quem achava que ele tinha realizado tudo quanto devia fazer. Esse é o inocente, no mais alto grau.
Compreende-se, então, até o fim essa tomada de posição dos filhos das trevas em face do inocente com esse gênero e grau de inocência, e como essa oposição não tem remédio, pois a partir do momento em que o indivíduo chegou a um cone da vida, onde ele compreendeu que tudo se julga e se pensa a partir desse ponto ápice, ele conclui que nada na existência tem sentido a não ser tomar posição nessa luta. O homem entende também que, ou a sua alma é totalmente coerente com a inocência, ou ele está rateado.
Quando uma pessoa chegou a perceber isso e está iluminada em seu píncaro por essa luz que, a seu modo, é uma luz suprema, ela discerniu o mais profundo da alma humana e da vida.
Assim, ela é levada a compreender que todos os outros aspectos de uma pessoa que não se relacionam com isso são indiferentes, e que a única coisa verdadeiramente importante é terem a união naquilo. Isso faz com que, havendo duas almas assim, estejam uma para a outra como duas gotas d’água. Há uma entrega completa de ambas as almas à inocência. Ora, duas quantidades que se entregam completamente a uma terceira são entregues entre si. Formam, portanto, ao pé da letra, um só coração e uma só alma. Essa é a amizade completa, autêntica capaz de abarcar dez mil homens, de ponta a ponta, como se fossem um só.
(Extraído de conferência de 25/7/1986)
1) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).
2) Do latim: ser.