Ao estado eremítico é inerente a profundidade e a ordem do pensamento, a elevação do espírito, a familiaridade com as mais altas cogitações da mente humana, que são as de caráter religioso. E isto lhe confere uma alta respeitabilidade que constitui o seu maior adorno.
As seguintes considerações a respeito da festa de São Paulo, primeiro eremita e confessor, são feitas por Dom Guéranger1.
Do fundo de sua caverna, acompanhava as lutas da Igreja
Não devemos pensar, entretanto, que esta vida passada no deserto, esta contemplação sobre-humana do objeto da beatitude eterna fizessem Paulo desinteressar-se da Igreja e de suas lutas gloriosas. Ninguém se encontra seguro de estar no caminho que conduz à visão e à posse de Deus se não se mantém unido à Esposa que Cristo escolheu e estabeleceu para ser a coluna e o sustentáculo da Verdade.
Ora, entre os filhos da Igreja, aqueles que devem mais estreitamente unir-se e abraçar-se a seu coração são os contemplativos, porque eles percorrem vias sublimes e árduas, onde muitos encontram perigo.
Do fundo de sua caverna, Paulo, esclarecido por uma luz superior, seguia as lutas da Igreja contra o arianismo. Ele se mantinha unido aos defensores do Verbo Substancial ao Pai e, a fim de mostrar sua simpatia por Santo Atanásio, o valente atleta da Fé, Paulo Eremita pediu a Santo Antão, a quem deixava sua túnica de folhas de palmeira, para enterrá-lo com uma manta que lhe fora dada de presente pelo Patriarca de Alexandria, que amava ternamente o Santo Abade.
Neste trecho, Dom Guéranger põe em foco o seguinte aspecto da nobreza do estado eremítico:
Ao eremita, vivendo no deserto e entregue essencialmente a considerações elevadas, parecem alheias a movimentação das paixões humanas e, portanto, também a luta do bem contra o mal e da verdade contra o erro. Quer dizer, o combate das paixões ordenadas orientadas pela razão, contra as paixões desordenadas dirigidas pelo demônio. No fato de um eremita, afastado assim de todas essas lutas, entretanto ter uma visão tão clara do mérito de estar no mundo, lutando pelos interesses da Igreja, vê-se a harmonia destas duas concepções de vida: a ativa e a contemplativa.
São Paulo Eremita, do fundo da caverna onde ele se encontrava completamente isolado e meditando as coisas de Deus, seguia em espírito as lutas do grande Santo Atanásio. E, ao morrer, quis ser revestido da manta deste magnífico Doutor da Igreja, como uma manifestação de seu ardente entusiasmo por aquele varão que, nas lutas deste século, estava sustentando a causa da Santa Igreja contra o arianismo penetrante.
Alta respeitabilidade do estado eremítico
Esta consideração mostra bem como o apostolado está ligado à vida interior, e como a vida mista — contemplativa e ativa — está relacionada com a vida puramente contemplativa.
Há, entretanto, outra consideração a respeito do estado eremítico a ser feita a propósito desta ficha.
Em geral, quando se fala a respeito do estado de vida eremítico, põe-se em relevo a força e o sacrifício realizados pelo eremita para se separar de todas as coisas desta Terra e isolar-se.
Então, o grande mérito do ermitão seria de ficar sozinho e vencer a vontade torrencial de falar, inerente a todo homem, sobretudo quando está só. Porque nós, homens, somos feitos assim: quando estamos muito tempo no meio dos outros, queremos ficar quietos e isolados; mas, quando permanecemos muito tempo quietos, queremos estar no meio dos outros.
Logo, nesta vitória sobre si mesmo estaria uma das maiores glórias do estado eremítico.
Na realidade, uma das belezas desse estado encontra-se na profundidade de pensamento intrínseca a ele. A nobreza do estado eremítico não vem do fato de o ermitão estar quieto, mas de que, estando silencioso, ele fala com Deus. E falar com Deus não significa ter continuamente aparições ou revelações, mas é também entreter o espírito a respeito das coisas sobrenaturais.
O espírito é tocado pela graça, com a qual a pessoa consegue entreter-se com as coisas de Deus, ou seja, com os temas mais profundos, mais elevados, mais nobres.
Então, a vida eremítica é, por excelência, um estado ao qual é inerente a profundidade e a ordem do pensamento, a elevação do espírito, a familiaridade com as mais altas cogitações da mente humana, que são as de ordem religiosa. E isto confere exatamente ao estado eremítico uma alta respeitabilidade que constitui o seu maior adorno.
O contrário da mentalidade “hollywoodiana”
Este é, debaixo de certo ponto de vista, o estado em que se pratica mais altamente a virtude do respeito. O eremita pensa, medita, elucubra; para ele nada é pequeno, nada é sem importância, nada é trivial. Ele compreende as altas razões de todas as coisas e o caráter sagrado e augusto que, a seu modo, cada criatura e cada fato apresenta. Ele está constantemente com o espírito posto nas coisas de Deus, e sua voz, quando fala, é como o som de um sino de bronze, grave, sério, que chama os homens para os temas mais elevados e para as cogitações mais profundas.
Eis o sentido do estado eremítico.
Como o mundo de hoje necessita disso! Se pensarmos na mentalidade difundida pelo cinema de Hollywood, veremos que o homem por ela formado é inteiramente desprovido disso, não tem a virtude da respeitabilidade em nenhum grau. E como esta mentalidade difundiu-se pelo mundo inteiro, compreende-se o quanto essa virtude está desertando — ou acabando de desertar — do mundo.
A trivialidade, a superficialidade, a banalidade de espírito, o engolfar-se apenas nas coisas visíveis e passageiras, com as quais o indivíduo se distrai, mas que não têm um sentido profundo, tudo isto é inerente à mentalidade “hollywoodiana” e corresponde ao contrário do caráter nobilíssimo da condição eremítica que, como tal, é um estado no qual os homens são como tochas ardentes dessa gravidade de espírito, desse respeito para com Deus e para com todas as criaturas enquanto espelham a Deus. Este estado de seriedade, de sobranceria, de distância psíquica2 e de autoequilíbrio é exatamente a glória do estado eremítico.
Feitas essas considerações, resta-nos a pedir a São Paulo Eremita que reze por nós para nos conseguir a compreensão e a apetência dessa virtude, porque sem ela, entendida e praticada, não existe perfeição moral, nem verdadeiro santo.
(Extraído de conferência de 14/1/1966)
1) GUÉRANGER, Prosper. L’Année Liturgique. Tomo II. 3ª ed. Paris: Henri Oudin, Libraire-éditeur, 1873. p. 354.
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.