No mundo pagão existiam horrores nefandos relativos ao trato entre as pessoas. Quando Nosso Senhor entrou na História, a alegria de ser bom e de fazer o bem começou a brilhar entre os homens. Contudo, atualmente há uma certa melancolia no trato, e a alegria pela felicidade alheia desapareceu. Se formos fiéis a Nosso Senhor, o trato verdadeiramente católico poderá ser restaurado e aperfeiçoado.
O trato cavalheiresco me faz lembrar dos meus tempos de menino uma porção de coisas, em que o problema do trato e do modo pelo qual uns devem ver os outros começavam a aflorar diante de meu espírito.
Sucessão de amizades rompidas de repente
Eu tinha esta particularidade, como todo mundo: estabelecia amizade com algum menino, no primeiro período havia simpatia, interesse, agrado. A amizade chegava a um determinado ponto, e de repente me parecia perceber o fundo da mentalidade dele. E me vinha sempre uma sensação de tédio irremediável, de falta de atração, uma espécie de saturação. E eu rompia.
De maneira que a minha vida de menino, vista debaixo desse ponto de vista, podia ser considerada uma espécie de sucessão de amizades rompidas de repente. Inconstância? Capricho? Fantasia? O que era? Eu só tive um amigo que me acompanhou pela adolescência adentro. Ele tinha apenas um ano a menos do que eu, e certo dia, por outras razões, nós nos separamos. Eu não queria segui-lo e tomamos rumos diferentes na vida.
Mas com esse mesmo menino, muito chegado a mim pelo parentesco e que, portanto, era uma espécie de amigo com quem tropeçava a toda hora, eu tinha períodos de saciedade. Parecia-me que ele também passava por fases de saciedade em relação a mim, mas que nos aturávamos pela comodidade do trato, e por um fundo de estima que às vezes o parentesco inspira. Isso acontecia com frequência.
A sensação que me vinha, frustrante, era assim: cada pessoa que se conhece de longe dá uma impressão; mas quando se tem conhecimento de perto, às vezes a impressão até melhora; porém, quando se conhece inteiramente de perto, aparece qualquer coisa que repele. E, naturalmente, notava-se também da parte dos outros algo assim: conheciam-me, mas em determinado momento havia uma repulsa. E se não acabava em ruptura, dava pelo menos num trato tenso, com birras, invejas, rivalidades, implicâncias, entusiasmos bruscos acompanhados de saciedade. Faltava o alimento para a continuidade dessa amizade.
De outro lado, acho muito bonito ser amigo. Minha mãe contava fatos da história do pai dela, de conhecidos que eram amigos uns dos outros, mas amigos reais, até de espantar. E eu me perguntava: Será que a amizade desertou do mundo? Que na minha geração não há mais amizade? Que nós somos incapazes de sermos amigos uns dos outros?
Amizade entre Lalau e Totó
Minha mãe narrava este fato ocorrido com meu avô. Ele herdou umas terras no interior de São Paulo, que era um sertão bravio. Naquele tempo – bem mais de cem anos atrás –, Pirassununga, Araraquara, São Carlos, essas regiões que estão tão próximas de nós, eram o sertão. Meu avô resolveu mandar organizar uma fazenda. Entretanto era péssimo fazendeiro, não tinha sido educado em fazenda, mas em São Paulo, e não tinha a menor ideia das coisas do campo. Isto eu herdei dele. Lembro-me do meu entusiasmo, em pequeno, porque uma vez enfiei um grão de milho na terra e saiu o pé de milho: plantei uma planta! Já era alguma coisa.
Um amigo dele do tempo de menino, que possuía negócios naquela zona, passou pela fazenda de meu avô, viu que estava mal organizada e foi falar com ele. E eles se tratavam pelo apelido que tinham desde a época da infância: o amigo, que se chamava Estanislau, era tratado de Lalau, e o meu avô, Antônio, de Totó.
O Lalau disse para o Totó:
– Olhe, Totó, essa sua fazenda é uma vergonha! Você precisa me comprar mais tantos escravos e, durante cinco anos, não pense na sua fazenda, não apareça lá, não me pergunte nada. Apenas, a cada ano, você me dá um cheque de tanto para pagar despesas da fazenda. Daqui a cinco anos, eu lhe dou uma fazenda inteiramente formada, com um cafezal produzindo, e você com uma conta aberta por mim, no banco, com o lucro da fazenda.
Meu avô achou a ideia muito interessante, comprou os escravos, entregou-os ao Lalau e não se meteu mais com a fazenda. Não conversavam sobre ela. Passados cinco anos, o Lalau – que aliás era um barão do Império – procurou pelo meu avô e disse: “Olha, Totó, vamos agora ver a sua fazenda. Está pronta, você vai ficar contente.” Naquele tempo se viajava a cavalo. Foram juntos e a fazenda estava um primor, florescente.
Então meu avô quis dar-lhe um pagamento, mas o Lalau respondeu:
– Nem me fale nisso, está proibido! Porque eu fiz isso por amizade a você.
Eu olhava para os meus amigos e me perguntava: Quem faz isso hoje? No meu tempo de infância, ou pagava-se muito bem – e ainda ia se examinar as contas para ver se não houve roubo –, ou saía um desastre. E ficava com esta interrogação na cabeça: “O tempo dos amigos acabou?”
Episódios do tempo da Revolução Francesa, da Idade Média…
Por exemplo, eu lia fatos do tempo da Revolução Francesa. Mandavam aqueles nobres todos para a prisão. Chegava o empregado da justiça e ordenava reunir todos os prisioneiros e prisioneiras, e cada dia ele chamava dez ou quinze para serem guilhotinados; os outros ficavam esperando até o dia seguinte. Alguns conseguiram atravessar todo o tempo da Revolução e, um belo dia, foram libertados. A esperança deles era conseguir a liberdade.
Havia dois de nomes muito parecidos, não eram parentes, mas muito amigos. O carrasco chama um, estropiando um pouco o nome – porque era analfabeto e não sabia ler bem –, e pronunciou o nome do outro. Este disse “presente” e foi para a guilhotina. O primeiro não estava ali no momento. Quando chegou, perguntou:
– Quem foi chamado?
– Foi você.
– Mas como eu? Estou aqui!
– Fulano subiu em seu lugar e foi guilhotinado. Agora você está praticamente indultado, porque quando chamarem a ele, você pode dizer que não é ele, pois no registro oficial consta você como morto. Nunca mais vão chamá-lo. Você fica aqui na prisão.
Lia também episódios do tempo da Idade Média, relativos a cavaleiros que iam combater no Oriente. Por exemplo, um estava cercado por adversários, ia ser preso; um outro de mais categoria, que convinha mais aos inimigos prenderem, se apresentava e dizia:
– Eu me ofereço para que este não seja preso, porque ele está doente.
– Não, eu não quero, declarava o beneficiado.
Os mouros preferiam o de mais categoria. Levavam-no embora e deixavam o outro. Quer dizer, coisas espantosas!
E pensava: Se eu soubesse que alguém era capaz de ter por mim essa dedicação, começava a achar a companhia dele interessante, e encontraria alegria em me dedicar também assim.
Isso dá um certo sentido à vida. Mas esse egoísmo mútuo, essa paz armada, isso não é vida!
…e da antiga Grécia
Li até uma historieta do tempo da antiga Grécia. Todas as cidades gregas eram republiquetas independentes. Quando uma dessas cidades tinha ditador, este era chamado tirano, palavra que não possuía o sentido pejorativo que tem hoje. Então, o tirano de uma cidade tinha condenado à morte um sujeito, o qual era muito amigo de um segundo. O sentenciado à morte pediu licença ao tirano para ir se despedir da família. O tirano disse:
– Isso é uma brincadeira! Você vai se despedir da família e foge. Não vou autorizar.
Afirmou o condenado:
– Tenho um amigo e que serve de refém. Se eu não estiver aqui na hora da execução, ele consente em ser morto em meu lugar.
Havia, evidentemente, toda espécie de perigos, com aquelas estradas muito pouco seguras, bandidos e outras coisas assim. Podemos imaginar quantas possibilidades havia de que o prisioneiro que foi visitar a família antes de ser morto, na ida ou na volta fosse agarrado por ladrões, preso, e seu amigo ia morrer. Só para permitir àquele o último consolo de se despedir dos seus, o amigo consentiu em correr esse risco.
Praça pública, forca armada, o amigo que tinha ficado como refém, em pé. Estava chegando o momento – eles marcavam a hora pelo relógio solar – da execução. Todos estão olhando, o tirano também presente numa tribuna, numa espécie de trono, quando, de repente, entra correndo na praça o condenado e diz:
– Ah, que alívio! Ainda consegui encontrá-lo vivo!
Abraçaram-se muito cordialmente e ambos se dirigiram ao tirano, o qual, impressionado, declarou:
– Mas como é possível uma amizade assim? Eu pensava que não existia. Vamos fazer uma coisa: eu o perdoo e vocês me admitem como terceiro nessa amizade.
Eles responderam:
– Não, porque a amizade não se compra nem se vende. Querendo, mate um de nós, mas para ser um terceiro nessa amizade elevada e dedicada o senhor precisa merecer.
Tudo isto é uma problemática que saiu completamente das mentes. Não se ouvem contar casos desses, não se comentam coisas assim. É uma outra visão do mundo.
O que o tirano fez? Mandou matar os dois? Ele revelou um traço, pelo menos, de grandeza de alma ao dizer:
– Está bom, eu perdoo os dois; vão ser amigos por aí.
Considerem que, em geral, esses tiranos eram bandidos, homens sem-vergonha que galgavam o poder por meio de crimes. Mas este teve um lampejo de honestidade nesse gesto.
Duas senhoras exemplarmente bonitas, muito finas e elegantes
Eu via pessoas antigas, da geração de meus pais e, sobretudo, da dos meus avós, tratarem-se entre si. E notava que o modo de se tratarem era muito diferente do de minha geração. Elas se tratavam com respeito, mas com uma forma de respeito que na minha geração não havia.
Minha avó tinha uma amiga, e mantiveram a amizade até o fim da vida. A minha avó morreu com oitenta e quatro anos de idade. Essa senhora viveu mais um pouquinho, talvez um ano ou dois.
Eram duas senhoras exemplarmente bonitas, das mais formosas que eu tenha visto. Não só bonitas por terem o rosto bem feito – como pode ser uma boneca de vidro –, mas eram muito finas, elegantes.
Elas tinham-se conhecido quando mocinhas. As casas delas, na São Paulinho minúscula daquele tempo, eram relativamente próximas. Não havia telefone, e uma moça só podia sair à rua com alguém da família; sozinha nunca. E elas, então, muitas vezes tinham vontade de se encontrar, mas não podiam porque não havia alguém para acompanhá-las. Então, numa hora marcada, elas se punham nas janelas das respectivas casas, com binóculo, e faziam sinais, comunicavam coisas, etc., conversavam.
Ambas, depois, foram fazendeiras no interior de São Paulo. E passaram alguns anos sem se verem, porque as fazendas eram muito distantes. Posteriormente, os maridos voltaram para morar em São Paulo e elas recomeçaram a amizade.
Eu as conheci já bem velhas. Essa senhora ia visitar minha avó todas as semanas, num dia fixo. E para minha avó esse era um dia sagrado: “Esta tarde é para Dona Fulana, que vem aqui em casa. Não tem conversa!”
Mais de uma vez eu me meti na sala para ver as duas se cumprimentarem.
Elas chegavam, se davam um beijo de cada lado do rosto:
– Como vai passando, bem?
– Bem. E a senhora, como está?
– Bem.
Sentavam-se e começava aquela prosa que continuava a conversa de nem sei quantos tempos atrás.
Em geral, vinha uma filha de minha avó, ou outra pessoa da família, que participava um pouco da conversa, mas deixava depois as duas a sós, porque se via que elas gostavam de conversar sobre coisas dos tempos delas e suas recordações. Era mais carinhoso deixá-las a sós.
Mas eu lamentava porque queria ouvir a conversa delas, que era o tempo inteiro tão entretida, falando numa voz um pouco mais baixa; elas diziam tanta coisa, que era muito e não era nada. Quando acabava a conversa, se beijavam de um modo tão festivo, tão solene, tão bonito, que dava gosto em ver.
Cortesia muito comum e cinematográfica
Em nossa família nós constituíamos uma roda de primos e tínhamos muitas conversas com muita animação, mas não era como as conversas de antigamente. Nestas havia uma qualquer coisa que estava presente e não se encontrava nas conversas de minha geração.
Mais de uma vez, quando vejo os ônibus cheios – isto é uma confidência paterna – eu me pergunto: como será o ambiente lá dentro? Em comparação com os velhos ambientes que conheci, como se passam as coisas ali?
Eu via essa diferença e me perguntava: O que tinha desaparecido? O que havia transformado de tal maneira o convívio? Eu tive que analisar muito para saber responder.
A primeira noção que me veio foi que na minha geração as pessoas se tratavam com cortesia. Mas uma cortesia muito comum e cinematográfica. Em comparação com a dos antigos tempos, como eram as amizades de outrora, as gentilezas, as formas, as polidezes, a coisa tinha baixado muito. Pode-se dizer que a autêntica cortesia estava morrendo para dar lugar simplesmente a um trato não incorreto, mas que não era mais com as doçuras de outrora.
Doçura de viver
E uma ocasião, lendo um livro francês escrito por um historiador ultrainteressante, Lenôtre – Gosselin Lenôtre –, Gens de la Vieille France, Gentes da França Antiga, eu encontrei uma frase de Talleyrand, um bandido, mas homem inteligentíssimo, o qual ainda tinha conhecido Maria Antonieta – não preciso dizer mais nada – e que dizia o seguinte: “Quem não viveu antes da Revolução Francesa não conheceu a doçura de viver.”
Eu pensava com os meus botões: “É isso mesmo! Essas cidades com fábricas, bondes, automóveis, buzinas, luz elétrica – a São Paulinho já tinha tudo isso, em ponto pequeno –, o corre-corre, os trens e tudo o mais; só não havia os aviões: é impossível nesta atmosfera a douceur de vivre antiga.”
Fui ver um livro do Lenôtre que trata disso. Lembro-me do caso de uma família que no trajeto entre Paris e Londres, em território francês, possuía uma hospedaria. Viajava-se de carro a cavalo naquele tempo, e o trajeto durava muitos dias. Então, os viajantes dormiam em hospedarias ao longo do caminho. Nessa hospedaria, uma família inglesa se hospedou e foram muito bem tratados, ficando muito contentes com a hospedagem. Na hora de irem embora, o chefe da família perguntou quanto devia. O francês apresentou a conta. O chefe de família olhou… – já se está vendo a briga – e disse que protestava, não podia aceitar aquela conta, porque era tão barata e o trato tão excelente, que ele não podia consentir em pagar só aquilo. É inacreditável!
Discussão vai, discussão vem, o inglês era mais obstinado e o francês acabou dizendo:
– Está bom, quanto o senhor quer pagar?
– Quero pagar tanto.
Era bem mais. O francês aceitou, fecharam a conta e a carruagem seguiu. Durante a viagem, na hora do almoço, os ingleses pararam, foram pegar os víveres que tinham na parte de trás do carro, numa caixa, e perceberam que o hospedeiro francês havia posto várias garrafas de vinho excelente, que não estavam na conta, para retribuir e gentileza.
Isso, num hotel de hoje, seria inteiramente impossível. Pois bem, era um fato que fazia parte da cortesia de antigamente.
Cartouche “assalta” uma duquesa
Havia na França, no Ancien Régime1, um famoso bandido chamado Cartouche. Certa ocasião, uma duquesa já estava preparada para dormir quando vê de repente um homem que salta para dentro do quarto, pela janela; faz a ela um cumprimento, e o diálogo que se travou entre eles é mais ou menos o seguinte:
– Madame, fico desolado, mas sou Cartouche. Estou morto de fome e vim pedir à senhora para mandar vir alguma coisa para comer e beber. A senhora teria a extrema gentileza de me atender?
Ela disse, trêmula, apavorada:
– Pois não!
– Eu me escondo atrás de sua cama e a senhora toca a campainha para chamar o seu empregado ou a sua empregada. E mande vir uma refeição com tudo quanto a senhora tem guardado, porque eu quero comer bem.
– Ah, pois não…
O modo de chamar os empregados era o seguinte: entre um andar e outro de um palácio havia sempre um espaço vazio e por aí corriam os cordões. Para uma pessoa de luxo o cordão era de seda; ela puxava o cordão, que ia tocar um sino no quarto do empregado.
Então, a duquesa toca o sino, vem a empregada e pergunta o que ela deseja.
– Quero tal coisa. Traga com uma mesinha.
A empregada trouxe as coisas, e a duquesa lhe diz:
– Agora pode ir dormir, não preciso de mais ninguém.
O Cartouche saiu detrás do cortinado, que se usava em torno das camas naquele tempo, e começou a comer. A certa altura, disse para ela:
– Olhe, a comida de sua casa é muito gostosa. Agora eu vou provar o vinho.
Abriu uma garrafa de vinho, bebeu; depois outra garrafa. Eram vinhos de qualidades diferentes. Então, ele afirmou:
– Positivamente, eu tenho bebido vinho muito melhor do que estes…
Quando terminou, acrescentou:
– Senhora Duquesa, perdão de lhe ter incomodado; pelo mesmo caminho pelo qual entrei, vou sair. Mas a senhora me permitirá uma liberdade: vou mandar-lhe vinho melhor do que a senhora bebe, o qual eu tirei – não disse que roubou – da casa de tal magistrado. Se a senhora permitir, vou mandar vinho da casa dele para a senhora.
Naquela situação, ela concordava com tudo. O Cartouche devia estar vendo, pela fisionomia dela, que a duquesa estava apavorada.
Quando o Cartouche foi embora, ela chamou a empregada e mandou-a fechar tudo, etc., e não sei se ela conseguiu dormir.
Raiou o dia, começa a vida, a casa na sua normalidade; a certa hora vem um empregado dizer:
– Senhora Duquesa, está aqui uma caixa de vinhos que mandaram entregar-vos.
Ela foi ver, era a caixa de vinhos que o Cartouche tinha enviado, com um bilhete: “Desculpe-me o susto que lhe dei ontem à noite!”
Se vamos comparar com nossos dias, a comparação é até imbecil.
Drágeas deliciosas, flores de cacto lindíssimas
Entretanto, põe-se um problema: Como essa gente sentia a vida? Como conseguiam agir assim? Como era o modo de ser deles? E por que isso acabou? Um menino, que observava do lado de cá as coisas, era naturalmente levado a fazer essas perguntas.
Introduzido o problema, vou dar as reflexões como as fui fazendo, gradualmente.
Na casa de minha avó havia um jardim grande. Às quintas-feiras, toda a criançada ia lá, corria, brincava, etc. Um tio meu chegava quando a animação atingia o auge. Naquele tempo, não se toleravam certas infrações à educação. Então parava a brincadeira e todas as crianças iam beijar a mão desse tio e perguntar como estava.
Ele tinha um prazer especial em trazer, de vez em quando, uns pacotes de drágeas estrangeiras, com geleia de frutas dentro, deliciosas. Se ele não as trouxesse, nós o trataríamos de um modo igual, porque éramos obrigados. Mas eu percebia que ele tinha uma certa alegria em nos ver contentes. E que, entre possuir algumas notas de dinheiro a mais na carteira ou ter causado aquela alegria, pelo reflexo desta sobre ele, meu tio auferia um prazer que ele pagava.
Às vezes eu percebia pessoas mais velhas do que eu fazerem pequenas gentilezas. Por exemplo, lembro-me que um senhor foi visitar nossa casa. Entrou com duas flores de cactos lindíssimas e disse: “Eu encontrei isto numa florista por onde passei. São bonitas e talvez a senhora goste.” E entregou-as para a dona da casa, a qual ficou muito contente e mandou que fossem colocadas num vasinho perto dela. Notei que esse senhor, que era cunhado dela, estava contente de ver que esta senhora ia passar o resto da tarde olhando para aquelas flores. Independentemente de qualquer coisa, dava a ele alegria ver a alegria de outrem.
Devo dizer que esse sentimento estava quase desaparecido na minha geração. E percebi, olhando para o passado, que ele fora cada vez maior nas gerações anteriores, quanto mais se recuava no tempo. Era um sentimento que correspondia a um hábito social que consistia na alegria de causar alegria, a satisfação de causar satisfação. E a douceur de vivre estava implantada, estabelecida.
Horrores da Roma pagã
Essa ideia me levou a perguntar: Mas na época pagã era assim ou não? Vi, então, que, com uma ou outra raríssima exceção, no tempo do paganismo não era assim. Havia coisas no sentido oposto, que nos causam constrição. Por exemplo: um homem manda chamar um escravo e diz: “Eu quero matar alguém e preciso ver se esse veneno é eficaz. Você vai tomar e vou verificar os efeitos.” O escravo sabia que se resistisse era castigado. Então tomava o veneno e morria com contorções diante do dono dele, o qual às vezes ficava tratando de negócios, etc., olhava um pouco para ver se correspondia à morte que ele queria causar ao inimigo.
Banquetes em Roma, no tempo da decadência do Império Romano. As mesas eram em forma de “U” e os romanos faziam os banquetes deitados; apoiavam-se sobre uma mão e comiam com a outra. E não existiam talheres como hoje, mas apenas faca. As pessoas comiam com a mão. Nos banquetes daqueles ricaços de Roma, eles se empanturravam de alimentos, se embriagavam com vinhos, etc.. De vez em quando, comiam tanto que sentiam não caber mais alimento no estômago. Então mandavam vir escravos especialistas em provocar vômitos. Com penas de certas aves, faziam cócega na garganta e eles rejeitavam na própria sala do banquete. Depois vinham escravos ou escravas com o cabelo abundante, armado, trazendo bacias perfumadas. Eles lavavam as mãos, a boca, etc. e enxugavam no cabelo do escravo ou da escrava. E recomeçavam o banquete.
Mas aquele que os via lançarem fora a comedoria toda era, muitas vezes, uma pessoa que mal tinha podido comer. Porque os escravos eram tratados como podemos imaginar. Quer dizer, os romanos não tinham o mínimo gosto da felicidade do outro, o mínimo senso da reciprocidade, a mínima alegria de terem sido afáveis dando algo. Só buscavam a própria vantagem. Resultado, numerosos suicídios, que às vezes aconteciam durante o banquete. Matavam-se mandando abrir as veias dos pulsos, e ficavam com as mãos dentro de uma bacia com água perfumada, conversando, até cair morto. Era um episódio do banquete. Mandavam levar embora o cadáver do indivíduo que, diziam, foi viajar para outro lugar…
Marquesa de Sévigné
A solidariedade que vincula uma criatura à outra, pela qual o que causa dor em uma dói na outra, o que alegra uma alegra a outra, esse senso de reciprocidade desapareceu completamente em nossos dias.
Nas estradas, quando ocorre um desastre, às vezes pedem aos motoristas que parem para colocar dentro de seus carros um ferido. Eu conheço o caso de alguém que deu esta resposta: “O meu automóvel é novo e o sangue dele vai sujar. Não quero.” E toca para a frente.
É ou não a mesma mentalidade?
Então, nota-se que está estabelecido um outro clima moral totalmente diverso, em que essa reciprocidade, o desejo de fazer o bem pelo bem que o outro sente desaparece. E outra coisa que some é o respeito: a alegria porque o outro é mais do que nós, de lhe fazer reverência, de honrá-lo.
Há pouco, aqui falaram da Bonbonnière Marquesa de Sévigné, que é uma casa de bombons em Paris. Mas essa marquesa foi uma personagem histórica célebre. Ela viveu no tempo de Luís XIV, escreveu cartas famosas, ninguém redigia missivas tão bem como ela.
Por exemplo, numa carta para uma amiga – digamos que fosse uma baronesa – ela escreveria: “Queira crer, prezada amiga, Senhora Baronesa, os sentimentos de indefectível amizade com os quais eu tenho a honra de me subscrever: sua amiga e servidora, Fulana.”
A alegria de honrar os outros desapareceu também. Qualquer alegria de fazer o bem sumiu. Fazer o bem passou a ser desagradável. E, pelo contrário, ver os outros deperecerem, se liquidarem, pouco importa, contanto que eu tenha o meu próprio bem.
Como pode ser agradável a conversa entre duas pessoas se cada uma sabe que a outra tem essas ideias a respeito de si mesma?
É impossível não perceber uma certa melancolia no trato de hoje. Há excitação nervosa. Mas essa alegria pela felicidade do outro desapareceu. Como se explica que isto houve e como tenha deixado de existir?
Com Nosso Senhor, a alegria começou a se irradiar na Terra
Houve Alguém que entrou na História. Quando isso ocorreu, o mundo inteiro era uma noite igual a essa que acabo de descrever. Ele brilhou na História e a alegria de ser bom e de fazer o bem começou a reluzir entre os homens.
A alegria de respeitar e até de venerar, a alegria de se dedicar, a alegria de se sacrificar, a alegria de ter causado o bem e saber que o outro ficou alegre, sem que o outro saiba que fomos nós que lhe causamos o bem, mas pelo bem que foi feito. Esta alegria começou a se irradiar na Terra por Alguém designado por quatro palavras: duas indicam o título, e duas o nome: Título: Nosso Senhor. Nome: Jesus Cristo.
São Pedro emprega uma fórmula que eu li e ficou como uma fulguração, a qual nunca se apagou em meu espírito. Para descrever a vida de Nosso Senhor, ele disse esta síntese latina: “pertransivit benefaciendo” (At 10, 38), passou pela vida fazendo o bem. O tempo inteiro, desde o começo até o fim, fazendo o bem, fazendo o bem, fazendo o bem, sem olhar para nada, a não ser para a alegria de fazer o bem. E com o transbordamento, a abundância que conhecemos e chegou a este auge: no Horto das Oliveiras, quando foi preso, Ele deu ordem aos carrascos: “A estes deixai-os ir em paz” (Jo 18, 8). Eram os discípulos que fugiam! Eles não podiam ter fugido, mas fugiram. Porém, o perdão era tal que Ele teve só essa expressão: “A estes deixai-os ir em paz.”
Mais ainda: São Pedro cortou a orelha de Malco. Jesus Se curvou, pegou a orelha do chão e a colou em Malco, o qual estava prendendo a Ele, para que sofresse o processo mais injusto que se possa imaginar. E depois, matá-Lo da morte mais cruel e mais injusta que se possa conjeturar. Apesar disso, Ele repõe a orelha de Malco.
Nosso Senhor ensinou e revelou aquilo de que Ele mesmo dava o exemplo: Ele era o Verbo de Deus encarnado nas entranhas puríssimas de Nossa Senhora, por obra do Divino Espírito Santo. Ele ensinava de Si mesmo que Deus é a bondade, a majestade infinita, o esplendor sem fim, a perfeição insondável, a onipotência, mas também a misericórdia, a compaixão, o perdão várias vezes repetido com afeto, a solicitude, e tudo mais, até morrer na Cruz por nós.
Fazendo o bem a um outro, alegramos a Jesus Cristo
E por seu ensinamento, fazendo-nos ver que todos temos este Pai comum, existe este Deus que nos ama assim, e Nosso Senhor Jesus Cristo nos amou e nos ama assim, que Ele fundou uma Igreja a qual é a súmula de todas as perfeições e de todas as maravilhas, mesmo dentro das tristezas do século XX; quanto mais a conhecemos, tanto mais a admiramos.
Isto deu aos homens a noção de que todos são um só n’Ele, que participam dos sentimentos e das disposições d’Ele, e que, fazendo o bem ao outro, nós alegramos a Ele.
Santa Catarina de Siena, certa vez, precisou tratar de uma leprosa. Ela teve alegria de causar alegria a essa leprosa; mais do que isso, ela sabia que Nosso Senhor Jesus Cristo, no Céu, fica alegre. Porque Ele amava aquela filha leprosa, aquele monte de pus, um foco de fedentina, e Ele tem pena e quer que uma outra filha, a quem Ele deu saúde, vá lá alegrar aquela. E quando Ele viu a filha miserável sorrir, alegre, com seus lábios descarnados, Ele fica alegre. Santa Catarina pensava: No Céu, Ele está alegre da alegria que aquela pobre filha está tendo.
Nasce a alegria de respeitar. E uma outra mulher que era neurastênica, de um temperamento insuportável, uma bruxa, a Santa tratava de “minha mãe”.
Tudo isto junto faz com que nasça, então, nos homens esta alegria bem ordenada de sentir a alegria dos outros, a alegria de dar, de sacrificar-se, de imolar-se, de causar satisfação nos outros, de distender as garras do egoísmo, do amor-próprio, do orgulho por meio de um gesto, de uma palavra amável.
Uma palavra amável, às vezes, transforma alguém. Sobretudo quando não estamos com vontade de dizê-la, mas dizemos para servir a Nossa Senhora.
Sacrificar-se pelos outros, sem esperar retribuição
Aqui está, longamente exposta, a história da doçura na humanidade: como ela nasceu e existiu entre os homens. Os pagãos, no tempo do Império Romano, olhavam para os católicos e diziam entre si: “Veja como eles se querem bem.” É o bom aroma, a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo que ilumina e modifica tudo.
Dou-lhes um conselho: querem ter alegria verdadeira na alma? Querem ter a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo diante dos olhos? Querem sentir na respiração de suas almas o aroma de Nosso Senhor Jesus Cristo? Sacrifiquem-se e tenham a alegria de ver que os outros estão contentes com o sacrifício.
Não esperem retribuição. Quem faz bem aos outros por causa da retribuição procura fazer um negócio. Esperem ingratidão, desprezo, mau trato, mas digam: “Eu fiz porque ele ficou um pouco satisfeito. Nosso Senhor e Nossa Senhora foram glorificados nele, porque teve um instante de alegria boa. Isto um dia fará bem para a alma dele. Vou fazer mais!” Quando derem acordo de si, o aroma do convívio estará embalsamado, perfumado e agradável. É Cristo Nosso Senhor que está presente.
(Extraído de conferência de 10/6/1985)
1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.