jueves, noviembre 21, 2024

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Considerações sobre a visão beatífica

O homem foi criado para a visão beatífica. Se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade. Todas as nossas ações, ainda quando moralmente neutras, conforme o modo com que as praticamos, podem nos aproximar ou distanciar de Deus. A Doutrina Católica faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

Trataremos de alguns temas que possam nos favorecer para uma impostação de alma contrarrevolucionária.

Cada ação do homem acarreta consequências enormes, na presença de Deus

Em primeiro lugar, mostraremos como tudo na vida é sério, grave e, portanto, devemos abandonar essa tendência moderna à irresponsabilidade, à irreflexão, à improvisação, e compreendermos que cada ação nossa, por pequena que seja, acarreta para nós consequências enormes na ordem verdadeira e profunda dos fatos, quer dizer, na presença de Deus. Tudo quanto realizamos se faz na presença de Deus, com referência a Ele e, por isso, toma uma gravidade, uma importância sem fim.

A visão beatífica nos ajuda a isso porque, se tivermos bem em mente que o nosso fim, a nossa única verdadeira razão de ser é contemplarmos Deus face a face por toda a eternidade, consideraremos tudo com muito mais seriedade.

Tomas T.
Bernard DUPONT (CC3.0)

Para ilustrar o conceito de eternidade, costuma-se dar em aulas de Catecismo uma comparação bem-apanhada. Tomem uma pedra bastante dura, o granito, por exemplo. Em tese, se alguém roçar o dedo sobre o granito, uma particulazinha dele pode desprender-se, e mais provavelmente se desprende, por pequena que seja. Então, imaginem uma andorinha que passasse pelo Pão de Açúcar de mil em mil anos e roçasse apenas com a ponta do bico naquela montanha. Quanto tempo levaria para demoli-la? Não há cálculo possível! Pois bem, quando a andorinha tivesse acabado de destruir o Pão de Açúcar, era como se a eternidade estivesse no seu começo.

Compreendemos, assim, o quanto é sério e grave aquilo que pode nos aproximar ou nos afastar dessa visão beatífica. Ora, de um modo geral, tudo nos afasta ou nos aproxima dela. Porque todas as ações, ainda quando moralmente neutras, conforme a ordenação com que o homem as pratica, podem aproximar ou distanciar de Deus.

Exemplifiquemos com a atitude mais comum do mundo: um homem está viajando de ônibus e abre uma janela. Em si, abrir a janela ou fechá-la é uma ação moralmente indiferente. Se o ônibus estiver a toda velocidade e se o indivíduo gozar do impacto daquele vento razoavelmente, aquilo é uma ação boa. Não é intrinsecamente boa, mas pela ocasião em que a fez, pelo modo que a praticou, etc., é ordenada. Está ordenada à natureza dele. Uma vez que está passeando, vivendo, o homem faz aquilo e aproveita o deleite. Está bem, sobretudo se ele se lembrar de dar graças a Deus que, como dizia São Francisco de Assis, criou “nosso irmão ar”, tão deleitável e tão agradável. Aí a ação fica melhor, entrou um elemento positivo, uma oração a respeito da ação.

Mas se ele, por exemplo, meter a cabeça no vento pela embriaguez da velocidade – nós veremos isto mais adiante –, produz um mau efeito em sua alma. E essa embriaguez da velocidade pode distanciá-lo do fim último que é Deus.

Duas influências opostas: Europa e Hollywood

Tenho falado muitas vezes a respeito do choque de influências que se produziu, entre os anos 1920 e 1930, no Brasil, pela permanência das tradições e dos contatos com a Europa e pela entrada da influência hollywoodiana.

O Brasil daquele tempo recebia as grandes águas da tradição europeia e a catarata, então recente, da influência de Hollywood, e essas coisas incidiam juntas.

Uma das notas que diferenciava a influência norte-americana da europeia era que a Europa tinha o seu passado calçado pela cultura quase bimilenar, em algum sentido mais do que bimilenar se remontarmos aos romanos e gregos, cujas culturas, de um modo ou de outro, santificadas depois pela Igreja Católica, acabaram dando na Idade Média.

Nisso entraram séculos de estudos, de reflexão, e as pessoas tomaram o hábito de ler, de pensar, de estudar, nos ritmos da vida de antigamente.

Uma vida na qual o homem não tinha os instrumentos de ação para agir depressa como ele dispõe hoje em dia. Como consequência, a vida humana corria muito mais devagar, muito mais tranquila e cheia de interstícios.

Arquivo Revista
Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos

Lembro-me de que meu bisavô1, sendo deputado do Parlamento do Império, levava um mês para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro a fim de tomar conta de sua cadeira no Parlamento. Não sei se ele ia fazendo também um pouco de propaganda eleitoral, mas o fato é que era uma viagem assim.

Partiam de São Paulo para o Rio de Janeiro famílias inteiras com verdadeiras caravanas e, quando chegava perto da cidade do Rio, a caravana parava, as senhoras se arranjavam, ajeitavam-se nas liteiras, os homens se compunham para entrar na Corte, como chamavam antigamente a capital do Império.

Imaginem um deputado que sai de São Paulo no dia primeiro de janeiro para chegar ao Rio, à Corte do Império, no dia primeiro de fevereiro. O interstício enorme em que ele não recebe notícias, e quase não tem como mandar notícias, e fica pensando na viagem, no caminho, em uma porção de coisas! Queiram ou não queiram, resulta numa vida refletida. As reflexões podem ser boas ou não, é outra questão; refletir, ele reflete.

Um pequeno fato da vida de Talleyrand

Há algum tempo li a narração da seguinte cena, num livro sobre Talleyrand2. Ele tinha uma sobrinha com a qual morava na embaixada francesa, em Viena. E ia dar uma jogada diplomática extremamente importante, e do interesse da sobrinha, no Congresso de Viena. Então, combinou com ela o seguinte:

– Quando você ouvir o ruído de minha carruagem pela rua – vejam que rua tranquila para se discernir o ruído da carruagem de Talleyrand! –, vá à janela ou porta da embaixada e note: se eu estiver com um lenço na mão, será o sinal de que tudo deu certo; se não aparecer o lenço, quer dizer que não deu em nada.

Então, o que hoje se liquidaria por um telefonema, levava o tempo necessário para, terminada a sessão do Congresso, ele se despedir de todo mundo, descer a escadaria ajudado por alguém – era manco –, entrar na carruagem seguindo todo um cerimonial: um lacaio abria a porta, descia uma escada, Talleyrand subia, sentava-se, depois se sentava o secretário, batia-se a porta, o cocheiro subia na boleia, os outros dois lacaios, de libré, subiam atrás, e só então os cavalos começavam a puxar o carro pelo calçamento de Viena, e Talleyrand lá ia chacoalhando até a embaixada francesa. Ora, em nossos dias, muito antes de tudo isso ter-se realizado, por um telefonema do secretário para a sobrinha, ela teria ficado sabendo do resultado.

Notem quanto tempo levava uma notícia para chegar dentro da própria cidade. Tal era a ansiedade da sobrinha que, à pequena distância, um lenço já deveria encurtar o espaço da espera; mas tem que aguardar. Enquanto espera, precisa pensar em outra coisa porque a pessoa se cansa de conjeturar. Acaba havendo tempo para aprofundar os assuntos e refletir a respeito das questões. É natural.

Forma-se, assim, um teor de vida de que as pessoas hoje não têm mais ideia. Porque a pressa tomou conta da existência e conferiu à vida outros valores, outros ritmos nos quais a reflexão não entra.

Se a cena descrita acima se passasse hoje, Talleyrand diria à sobrinha:

– Eu mando meu secretário lhe dar um telefonema logo que a sessão esteja encerrada. Você aproveita e telefona daí para o Ministério do Exterior em Paris e para as nossas embaixadas em Roma, Berlim, Londres, Madrid, Lisboa, e depois para Washington, contando o que houve. Quando eu chegar em casa já quero ter as reações de todos esses Ministérios.

Ela era uma mulher inteligentíssima e daria conta do recado. Ele já chegaria arfando:

– O que disse o Ministro do Exterior? Está bem o que eu consegui ou não? Qual foi a repercussão em Washington? E em Londres?

Que tempo ele teve para pensar? No sacolejar da carruagem entrava a reflexão.

O corre-corre tira o hábito de pensar

Se tomarmos os quadros representando as pessoas de antigamente, veremos como todas têm fisionomia de quem está refletindo. Porque a reflexão era a expressão fisionômica habitual delas, pois havia tempo para isso.

Já nas fotografias tiradas das pessoas das vésperas da Primeira Guerra Mundial para cá, as fisionomias são cada vez mais irrefletidas, e a fotografia é instantânea ou o indivíduo não sabe mais fazer pose, porque para isso é preciso refletir um pouco. O instantâneo é a lembrança que deixa atrás de si o homem do corre-corre. É forçoso.

Antes dos anos 20, a vida era tal que nas casas de burguesia média, e às vezes menos do que isso – portanto, a fortiori, nas classes mais altas –, os quartos de dormir eram espaçosos e, principalmente os de senhoras, tinham, em geral, além do necessário para dormir, um mobiliário sumário. Podia ser, por exemplo, um sofá e algumas cadeiras, porque as conversas muito reservadas se faziam no quarto de dormir. Ia-se para o mais interno da casa e conversava-se ali.

Por vezes, a pessoa se recolhia ao quarto de dormir durante o dia para pensar bem. Não deitava na cama, porque isso ocorre quando se está doente ou para dormir à noite, fora disso não. Então, recostava-se no sofá e ficava pensando, isolada de todo mundo.

Dguendel (CC3.0)
Liteira portuguesa Museu Nacional dos Coches, Lisboa, Portugal

Com o corre-corre, que é muito prejudicial porque tira o hábito de pensar, vem outra circunstância bastante nociva: é a convicção de que para o homem ou a mulher, o moço ou a moça e até a criança, levar uma vida digna deste nome deve fazer tanto quanto possa e pensar pouco, porque pensar é perda de tempo. Portanto, é preciso fazer, fazer, fazer, quanto mais fizer melhor. O indivíduo tem uma espécie de embriaguez de fazer, porque julga desperdiçar o tempo pensando.

Então, nós temos o desprezo, ou pelo menos o menosprezo, da reflexão imposto pela pressa.

Isso leva ao contrário do que quer a Doutrina Católica, pois esta faz da vida uma preparação para a eternidade, e deseja que as almas na Terra se exercitem naquilo que farão no Céu.

O homem foi feito para a beatitude celeste

Segundo São Tomás de Aquino, o homem foi feito para a beatitude celeste, a fim de conhecer a Deus eternamente – o que é refletir –, e para exercer não só um ato de cognição, mas de amor contínuo e eterno.

Nesta Terra, diz ele, o homem tem em semente a beatitude primária, que é contemplar, com algo que participa da visão beatífica – o Batismo nos confere um começo da visão beatífica. Quando o homem reflete sobre a ação – se isto é ordenado para Deus –, ele possui uma espécie de contemplação secundária, tendo como fim a beatitude, quer dizer, o conhecimento de Deus3.

Como isso é diferente da vida do corre-corre! E como a existência regular, pausada, com hiatos que dão possibilidades de pensar, é diferente e mais apropriada do que a vida de hoje, em que a parte principal da contemplação nesta Terra não só cessa, mas o homem fica incapaz de contemplar. Aqui está o pior: a mania da velocidade incapacita o homem para a contemplação, e ele se vicia no agir como outro pode viciar-se em drogas.

É importante mostrar como essa influência é contra o que a Igreja quer de nós. Por isso pretendo aproveitar algumas reflexões de São Tomás de Aquino sobre a visão beatífica, não só para considerar a suma gravidade das coisas, mas também como a Doutrina Católica rejeita a idolatria da pressa, presente em tantas pessoas.

Superioridade dos prazeres da alma em relação aos do corpo

No Tratado da bem-aventurança, na Suma Teológica (Cf. I-II, q. 3, a. 1), São Tomás pergunta se a beatitude é algo criado, e explica que o fim último do homem tem duas acepções: uma é a bem-aventurança enquanto sendo o próprio Deus, e, neste sentido, é incriada. Outra é o ato pelo qual o homem desfruta da visão de Deus; nesta acepção ela é criada.

De maneira que a visão beatífica é, neste sentido da palavra, a eterna prática do ato pelo qual o homem vê e ama Aquele para o qual nasceu a fim de ver e amar.

Mais adiante (Cf. I-II, q. 3, a. 3), São Tomás pergunta se os sentidos do homem têm alguma alegria com a visão beatífica. E ele resolve com a mesma simplicidade, dizendo que os sentidos não podem conhecer a Deus, porque são aptos para conhecer a matéria. Ora, Deus não é matéria.

Entretanto, pondera que o homem forma um todo com a inteligência, a vontade e a sensibilidade. Assim, embora os sentidos não conheçam diretamente a Deus, o gáudio que a alma tem na visão beatífica reflui nos sentidos e os torna muito mais retos, perceptivos e capazes de se alegrarem na esfera própria.

O Doutor Angélico remete para o que ele diz a respeito da ressurreição (Cf. Supl. q. 82). O homem ressurreto, cuja alma vê a Deus, encontra-se num estado esplêndido; além da magnificência da reconstituição em si, está inundado pelos efeitos benéficos da alma que vê a Deus.

J.P. Ramos

Na própria clareza e simplicidade dos raciocínios de São Tomás, temos um exemplo minúsculo da superioridade dos prazeres da alma sobre os do corpo, e como aqueles refluem sobre este. Basta pensarmos como esses raciocínios poderiam fazer bem para o corpo de um filósofo que tivesse algum problema a esse respeito e não soubesse como resolver. Ao ler na Suma Teológica essas considerações, ele se tomaria de uma alegria espiritual que lhe poderia aliviar, por exemplo, de uma enxaqueca.

Percebemos, por conseguinte, a maldade presente em tanta coisa da civilização moderna. Por exemplo, a televisão, absorvendo continuamente os sentidos, monopoliza a atenção e a impede de se voltar para coisas dessas. Resultado: a pessoa fica incapaz de se deleitar com esta superior forma de alegria que a alma sente ao considerar as coisas da inteligência, ou seja, da contemplação.

Vemos, assim, como a Revolução mente ao dar a entender que o prazer está na lubricidade, na impureza, na pressa. É o gosto de destruir, de se achincalhar, de se tornar hippie. Enquanto a Igreja leva o homem para ser Anjo, a Revolução leva-o para ser hippie.

Inteligência especulativa e inteligência prática

Outra pergunta posta por São Tomás: se a beatitude, vista enquanto ato do homem, é uma operação da inteligência especulativa ou da inteligência prática (Cf. I-II, q. 3, a. 5).

“Especulativa” vem de speculum, que significa espelho, em latim. A inteligência especulativa é aquela que se coloca diante da realidade e a absorve dentro de si, como o espelho recebe a imagem. Por esta razão é adequado se referir ao reflexo do espelho ou à reflexão do homem. Notem a proximidade das duas palavras.

A inteligência prática é aquela que, posta a reflexão, opera para que as coisas se ordenem como devem ser. Então, se vejo no céu um fenômeno qualquer que me agrada, por exemplo, um eclipse, minha inteligência especulativa apreende e eu penso sobre aquilo. A inteligência prática faz-me tomar a deliberação de acompanhar as evoluções da Lua para, quando houver outro eclipse, eu possa ver de novo. Para isso, deverei adotar uma série de atos que tendem a este fim.

Vê-se, portanto, ser evidente que a beatitude é uma operação da inteligência especulativa, e a pessoa nem compreende bem como é que São Tomás quer as provas disso.

Ora, esta seria a objeção de um preguiçoso. O homem que não tem preguiça de pensar procura exprimir em silogismos, em raciocínios, tudo quanto possa ser expresso. Ainda que seja evidente, tendo uma prova, o pensador se alegra.

Alguém diria: “O senhor não vive elogiando a intuição?”

Sim, porque a intuição liberta o homem da miopia de só ver o que o longo raciocínio aponta. Mas o espírito bem construído, depois de ter tido, pela intuição, uma visão panorâmica, gosta de percorrer, passo a passo, como um leão dominador, a estrada que ele sobrevoou como águia.

Consideremos, pois, as razões dadas por São Tomás, das quais pendem, à maneira de estalactites, conclusões fecundas para nós.

Gabriel K.
São Francisco de Assis (por Zurbarán) – Mosteiro de São José, Ávila, Espanha

Ele diz que o objetivo da razão prática é dispor os meios para o fim. Ora, quem vê diretamente o fim não precisa de razão prática, apenas especula. Além disso, a mais alta atividade da inteligência é conhecer o Sumo Bem, o que é, por sua natureza, uma suma contemplação. Logo, a visão beatífica é uma suma contemplação.

Pela mera contemplação o homem se aproxima dos Anjos, porque o Anjo é puro espírito e contempla. Pela mera razão prática o homem se aproxima do animal, porque o animal, sem ter contemplado nada, dispõe por instinto as coisas de acordo com seu fim.

Para conhecer um ser, devemos considerar o que ele tem de ótimo

Temos na natureza exemplos tocantes: o ninho de um pássaro brasileiro – não sei se existe nas outras nações –, chamado joão-de-barro, que faz uma pequena casa de barro com um corredor meio sinuoso, onde ele mora no fundo. Só falta pôr para ele um sofá…

Em menino tive ocasião de observar ninhos, mas muito bem construídos de materiais que os pássaros pegam em qualquer canto. Eles fazem com aquilo um tecido que se tem a impressão de ter sido planejado por um engenheiro, de tal maneira é magnífico.

Nunca estive no alto de uma árvore para quebrar a casa do joão-de-barro e ver como é por dentro, mas percebe-se que aquilo é uma perfeição elaborada pelo instinto. É a boa disposição das coisas segundo um determinado fim, realizada, entretanto, por um bicho incapaz de contemplar.

O Doutor Angélico cita um princípio de Aristóteles que ordena o espírito magnificamente: “Cada ser é considerado, sobretudo, no que ele tem de ótimo” (Cf. Ethic., 1.9, c.8, n.6). Quer dizer, se eu quero conhecer um ser bem a fundo, devo considerar o que ele tem de ótimo. É a partir disso que explico todo o resto.

Em termos concretos, não quer dizer que ao conhecer um homem eu deva imaginar que ele é ótimo, mas trata-se de uma outra regra de Psicologia: para eu saber como aquele indivíduo é no momento, devo considerar o que sua natureza tem de melhor e, em algum sentido, o que ele poderia ser se fosse ótimo. Disso eu tiro a diferença em relação a como ele é agora, e deduzo no que devo amá-lo e no que preciso tomar precauções com ele. O primeiro voo é para o que ele poderia ter de ótimo, depois vem o resto.

Mas isto se dá considerando, sobretudo, a natureza do ser em questão: ser homem é uma grande coisa por tais razões; ser peixe é uma coisa menor por tais outras, mas é ótimo em certo ponto…

“Cântico das arquetipias”

Aquele hino de São Francisco às criaturas – ao irmão Sol, à irmã Lua, etc. – tem exatamente isso: considera esses vários seres, embora materiais, no que possuem de ótimo, e forma um arquétipo de cada ser. Tal hino se poderia chamar o “cântico das arquetipias”. Não há quem leia aquilo sem ver a arquetipia das criaturas ali mencionadas.

Depois de ler aquele hino, ver que tal mar está poluído com matérias expelidas pelos navios que passam, corta o coração.

Nunca me esquecerei da ocasião em que, estando em Santos, notei haver no mar uma grande mancha de óleo. Mas o que tornava a cena ainda mais horrorosa era um enorme cacho de bananas verdes flutuando no meio daqueles detritos. Chocava-me ver aquelas frutas verdes e que deveriam maturar, portanto, algo vivo, feito para se desenvolver, comprimido na sua vitalidade e destinado à morte antes de se ter expandido, no meio dos detritos, da água suja, do mar grandioso, mas conspurcado.

Como cheguei a ter horror daquelas bananas verdes? Porque tive em mente o que há de ótimo na banana quando madura, e deduzi o horror existente nessa espécie de contenção da explosão vegetal da banana, e do mirramento de um processo belo que fica achatado e liquidado no meio da sujeira. Há nisso uma inversão que é horrorosa.

Como conheci esse horror? A partir do conhecimento daquilo que na banana é ótimo. Esse ponto de partida nos leva exatamente à sagacidade para o péssimo. Não é ingenuidade, isso leva à sagacidade.

A Fé nos torna mais inteligentes

Para concluir estas reflexões, levanto uma questão: Tudo isto é pensamento; entretanto, é “ploc-ploc”4? Qual a diferença entre o “ploc-ploc” e o verdadeiro pensamento?

Tomemos a contemplação puramente especulativa e reunamos a ela a contemplação de segundo grau, de caráter prático, e teremos o não “ploc-ploc”.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1981

O homem verdadeiramente não “ploc-ploc” é aquele que, colocado diante de qualquer coisa concreta, sabe antes de tudo vê-la, conhecê-la. Ele presta atenção devagar no que os seus sentidos lhe mostram; põe a luneta para ver com seus próprios olhos, e estetoscópio para auscultar com seus ouvidos, pois quer conhecer a informação dos sentidos com cuidado, com contentamento, com enlevo. Depois ele raciocina, forma princípios e tem a facilidade de passar do princípio para a coisa concreta e desta para o princípio, com a naturalidade com que um raio sai do Sol e pousa na Terra. Quer dizer, o raio chega à Terra sem pressa, sem fadiga, sem torcida, não se atrasa nem se adianta. Quando atinge uma superfície qualquer, é sem preguiça nem corre-corre. Ele transpôs não sei que distâncias, chegou ali, pousa e brilha.

Assim deve ser o pensador: passa da consideração teórica para a prática, da prática para a doutrinária. Deus não é uma ideia, mas o Ser vivo por excelência. Não somos, portanto, adoradores nem seguidores de uma mera ideia.

Entende-se, assim, o Céu com a visão de Deus face a face, unida à cognição do Céu empíreo e de todas as maravilhas da Criação através dos sentidos. Como tudo é equilibrado e maravilhoso! Como ser católico eleva a alma!

Eu sustento que a Fé nos torna mais inteligentes. Raciocinar essas coisas faz com que a inteligência cresça. Oxalá isso seja para conhecermos mais a Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, a Santa Igreja Católica e a Contra-Revolução.

(Extraído de conferência de 30/1/1981)

1) Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos.

2) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (*1754 – †1838). Bispo, político e diplomata francês.

3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. II-II, q. 180, a. 4.

4) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

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