Que grande lição da História! Os acontecimentos históricos parecem nascer de quem os produziu, mas considerando-os em profundidade, vemos terem sido produzidos por suas próprias vítimas. Nisto encontra-se um ensinamento: ao ocorrerem as grandes derrocadas, em geral, quem caiu foi de encontro àquele que o derrubou, sendo em parte o causador de sua própria queda.
Dia 14 de julho é o aniversário da queda da Bastilha, e a melhor maneira de execrarmos aquele infame acontecimento de 1789 é reconhecermos que incontáveis coisas se passam em nossos dias devido a ele. Se não tivesse havido a queda da Bastilha naquela ocasião, talvez as coisas tivessem tomado um rumo, se não distinto – o que em rigor seria possível –, pelo menos parcialmente diverso.
A Bastilha, uma prisão singular
A Bastilha era uma prisão para onde o rei mandava, em geral, os príncipes da Casa Real ou os membros da alta nobreza quando cometiam algum ato político que atrapalhava o destino da França. Sendo eles de muito alta categoria social, o monarca não queria colocá-los numa prisão vexatória. Além dessas pessoas, encontravam-se também prisioneiros de diferentes classes da sociedade enviados para lá a pedido de seus familiares.
Dizia um velho provérbio jurídico do Reino da França: “O pai é rei dos filhos, e o rei é pai dos pais.” Quer dizer, tocava ao rei proteger aos pais e tocava aos pais educar os filhos para respeitarem o rei.
Por causa disso, quando um filho andava com más companhias, começava a pôr fora o dinheiro da família ou a praticar ações que davam ao pai o medo de aquele filho se tornar um criminoso, enfim, qualquer atitude que perturbasse a vida familiar, as pessoas podiam reclamar ao rei. Estabelecia-se um processo secreto – para não difamar ninguém – e chegava até ao monarca, pedindo-lhe um tempo de prisão para quem andava mal.
O acusado tinha o direito de se defender e o rei ouvia-o também. Mas se este comprovava que o pai estava com a razão, atendia o pedido e mandava prender o filho na Bastilha por um, dois, cinco anos, e às vezes mais, por se tratar de sujeitos perdidos que somente presos não faziam toda espécie de loucuras.
A Bastilha, porém, era uma prisão muito singular. Ali, conforme suas posses, o prisioneiro podia levar seus móveis, cortinas, tapetes, mandar vir comida dos melhores restaurantes de Paris. Ele apenas estava proibido de sair, permanecendo em reclusão até sossegar e tomar juízo. E se ao ser libertado continuasse em seus desvarios, voltava para o cárcere.
Assemelhava-se, portanto, ao papel do corrimão junto à escada e não a uma jaula para prender feras. Por causa disso, nas horas de lazer, os reclusos podiam se encontrar no pátio, passear lá dentro, subir às torres e às muralhas, de lá ver pessoas conhecidas e saudá-las de longe. Entretanto, grade é grade! Quando soava o sino, precisava voltar para a cela.
Na cela deles havia biblioteca, podiam escrever cartas, receber visitas nos dias estabelecidos. Não era infamante ter estado na Bastilha, como por exemplo o é ir parar num presídio contemporâneo. Evidentemente, ficar lá não era gostoso, mas ajeitava-se para ser o mais agradável possível. Era uma prisão de pai, porque o rei era pai dos pais, e protegia os pais contra os maus filhos.
As calúnias da corrente republicana
Na Idade Média a Bastilha fora um dos elementos da defesa de Paris. Quando entrou o período das armas de fogo, as velhas fortalezas medievais perderam muito da sua utilidade militar, e então ela deixou de exercer o papel de fortificação e passou a guardar o tesouro real: as joias da Coroa, o ouro pertencente ao rei, etc. Com o passar do tempo tornou-se a prisão de Estado.
Porém, o povinho conhecia pouco isso, e os inimigos da realeza espalharam calúnias tremendas afirmando existir na Bastilha gente presa há tanto tempo que ninguém mais conhecia, estavam apodrecendo em prisões terríveis, sofrendo castigos horrorosos, inclusive, havia um homem obrigado a usar uma máscara de ferro o tempo inteiro, porque era um irmão gêmeo do monarca, e este não queria que ele fosse conhecido. Para evitar uma guerra civil, esse homem era obrigado a ficar de máscara. Inventavam uma série de histórias dessas, cada uma mais maluca do que a outra.
A corrente dos enciclopedistas, ateia e republicana, a fim de murmurar contra a realeza e a nobreza começou a espalhar o boato de que a Bastilha era um antro de tirania, e para quebrar o poder absoluto do rei era preciso invadi-la e libertar todos os presos.
Então, já desde o dia 13 de julho, começou uma efervescência de desordeiros – pagos, naturalmente – para exigir a entrega da Bastilha porque, do contrário, eles a atacariam. Ora, essa antiga fortaleza dispunha de canhões que podiam dispersar os desordeiros com facilidade. Eles sabiam disso, mas sabiam também que o Rei Luís XVI era benigno, quase até à burrice. Assim, não temiam os canhões.
A queda da Bastilha
Após tratativas com o governador da Bastilha, um tal Monsieur de Launay1, os revolucionários conseguiram, afinal, que baixassem a ponte levadiça e entrassem os representantes do povo para falar com ele. Quando baixou, o povo inteiro invadiu. Espandongaram, quebraram tudo. Tiraram os presos e os colocaram sobre uma espécie de grandes pranchas de madeira e os fizeram passear por Paris, para a população ver as pobres vítimas do terror real.
Os revolucionários mataram vários da guarnição da Bastilha e levaram preso Monsieur de Launay para que ele fosse dar explicações às autoridades populares sobre como era a vida dentro dela. Mas, no caminho, mataram-no devido aos maus tratos. Aliás, sem razão nenhuma, porque ele cedeu o tempo inteiro.
Com isso a Bastilha ficou vazia e pouco depois empreenderam sua demolição. Das pedras faziam-se miniaturas, reproduções da velha fortaleza, que eram vendidas. Todos os revolucionários queriam ter uma Bastilha para enfeitar a sua própria sala.
Em Paris, tais acontecimentos simbolizaram a queda do poder absoluto. Destruída a Bastilha, estava quebrada a monarquia. O resto foi apenas uma sucessão de derrotas, até chegar à proclamação da República, à decapitação do Rei e da Rainha. Era a Revolução Francesa consumada.
Dos efeitos à causa, quem foi o maior culpado da queda da Bastilha?
O que se deve pensar da queda da Bastilha? Um observador comum voltaria toda a sua cólera contra os bandidos que assaltaram e demoliram assim um símbolo do poder real e da Civilização Cristã. Isso é mais do que justificado. Eu não sei, porém, se é contra isso que nossa maior cólera deve voltar-se, ou se é contra o rei mole, bobo, indolente, não cônscio de seus deveres e direitos, que por sua negligência permitiu tornar-se possível esse acontecimento. Eu creio ter sido ele o maior responsável pela queda da Bastilha.
Mas, remontando dos efeitos à causa, deveríamos nos perguntar quem foi mais responsável por Luís XVI ser assim. Os estudos históricos mais recentes revelam todo um filão de uma sociedade secreta à qual ele pertencia, constituída por discípulos do Arcebispo de Cambrai, Fénelon2, quem talvez seja o fundador da “heresia branca”3, homem ainda contemporâneo de Luís XIV e autor de um livro chamado Télémaque. Arcebispo dulçoroso, imaginando coisas de uma piedade toda ela de mel, mas não um mel santo e bento de São Francisco de Sales, mas sentimental, mundano, todo humano; um estilo de piedade segundo o qual atacar, discutir, lutar, guerrear eram atitudes censuráveis.
O discípulo perfeito dele, Télémaque, era um homem que andava pelos bosques apreciando a natureza e não tinha o espírito preparado para o caráter militante desta vida.
Nossa cólera poderia ir mais longe: quem formou Fénelon? Quem permitiu que chegasse a ser Arcebispo de Cambrai ou impediu que ele fosse destituído desse cargo? Assim nós poderíamos ir até as origens da Revolução e encontraríamos sempre duas fileiras de culpados: os que fizeram e os que permitiram que fosse feito. Quiçá no dia do Juízo os que permitiram serão mais castigados do que aqueles que realizaram. E não será pouco!
Tive um exemplo disso ao folhear uma revista francesa na qual encontrei uma narração da queda da Bastilha trazendo pormenores reveladores. Um deles é que o próprio Luís XVI, em seu Conselho de Estado, tinha determinado a demolição da Bastilha antes de que a Revolução a decidisse. Portanto, a Bastilha considerada pela Revolução como um símbolo do poder real, seria derrubada por deliberação do próprio Rei que a Revolução destronaria.
Nisso encontra-se um ensinamento: ao ocorrerem as grandes derrocadas históricas, em geral, quem caiu foi de encontro àquele que o derrubou, sendo em parte o causador de sua própria queda.
Seria interessante procurar os registros das deliberações de Conselho de Luís XVI para ver que outros monumentos ele tinha resolvido demolir para reconstruir novos. Talvez nós veríamos que bom número das coisas que ele tinha resolvido derrubar foram arrasadas pela Revolução Francesa. Assim, no seu espírito liberal, ele era o precursor daqueles que iam derrubá-lo.
Uma grande lição da História
Como isso se assemelha à atitude da burguesia de nossos dias em face do comunismo! Que grande lição da História! Os acontecimentos históricos parecem nascer de quem os produziu, mas considerando-os em profundidade, vemos que não. Foram causados por aqueles a quem eles vitimaram. O Rei era o culpado daquilo de que ele mesmo foi a vítima.
Todo potentado, todo homem constituído em alguma dignidade na Terra, se ele caiu, deve fazer este exame de consciência: acaso não foi ele o causador de sua própria ruína? Não é automático que seja assim, mas quantas vezes acontece!
Essa verdade se deduz de um pequeno detalhe histórico, do qual se tiram conclusões que levam às mais altas cogitações sobre a História e esclarecem mais um aspecto dentro de um universo de fatos que é a queda da Bastilha, a qual é um ponto do universo de acontecimentos que é a Revolução Francesa, a qual, por sua vez, é um ponto desse universo de catástrofes que são as três Revoluções4. Delas pode-se subir até à Redenção infinitamente preciosa do gênero humano, à obra da Salvação.
Vê-se como, a partir de um pequeno ponto, as correlações se multiplicam e avolumam, e vão até ao inenarrável.
Às vezes, pontos ainda menores do que esse. Por exemplo, no dia da queda da Bastilha as horas do dia se passaram tranquilamente em Versailles. Ninguém mandou avisar o que estava acontecendo em Paris. Nota-se nisso o relaxamento, o abandono do senso de conservação, do senso da autoridade. No diário de Luís XVI, onde ele registrava os fatos ocorridos, o registro do dia 14 de julho era: “Nada.”
O Rei foi dormir na hora costumeira, e na madrugada do dia 15 chegaram os mensageiros procedentes de Paris trazendo as notícias do que ocorrera. Só então os membros da corte real viram como os acontecimentos eram graves e se perguntavam se seria o caso de acordar o Rei, porque esbarrava em um problema de protocolo, de etiqueta: não havia precedentes de alguém despertar o Rei durante a noite. Afinal, o Duque de La Rochefoucauld5 – aliás um revolucionário, apesar da beleza do seu nome que soa como uma música – entrou no quarto do Monarca.
Naquele tempo, as pessoas de alta categoria dormiam em camas aparatosas com quatro colunas por entre as quais se corria uma cortina formando um pequeno quarto de dormir dentro dos aposentos. O Duque abriu a cortina, acordou o Rei e comunicou-lhe as trágicas notícias chegadas de Paris.
Luís XVI, estremunhando de sono, perguntou:
— C’est donc une revolte? – Então, é uma revolta?
— Non, Sir, c’est une révolution. – Não, Senhor, é uma revolução.
De fato, não se tratava de uma mera revolta, e, sim, da Revolução Francesa que começava.
Luís XVI acabou de acordar e depois dormiu de novo…
Um pormenor retrata bem o ambiente do acontecimento. O Duque de La Rochefoucauld abriu inteiramente as cortinas do Rei, e são cortinados enormes. Se abrisse um pouquinho, quereria dizer de modo indireto: “Eu interrompo o vosso sono para dizer alguma coisa, vós decidireis se levantareis.” Mas abrir a cortina por inteiro significava: “Eu espero que vos levanteis.”
Essa esperança manifestada pelo Duque exprime bem a atmosfera, a carga psicológica de como foi dada a notícia, mas também o grau de modorra de Luís XVI. O característico da cena ganha muito em um pequeno pormenor de uma maior ou menor abertura de cortina.
A comemoração de um acontecimento histórico na eternidade
Por fim, poderíamos nos perguntar como a queda da Bastilha é comemorada na eternidade. O Céu só pode ter execrado esse episódio histórico acompanhando com sua cólera aqueles que lutaram para que a Bastilha caísse e, em consequência, amado muito os que combateram e morreram para impedir aquele desastre.
Não é que Deus não os perdoasse, caso eles se arrependessem. É possível que alguns tenham recebido graças para pedir perdão e tenham sido perdoados. Não consta. Das muitas coisas que li sobre a tomada da Bastilha, não conheço o caso de alguém que tendo trabalhado para essa queda tenha se arrependido, ficado um muito bom católico e tenha escrito um documento reconhecendo ter andado mal. Entretanto, se houve alguns daqueles revolucionários que se arrependeram e se salvaram, no Céu eles também cantarão os louvores das vítimas da queda da Bastilha, elogiarão os bons princípios por amor dos quais aqueles heróis deram a vida, manifestar-se-ão contritos e humilhados por terem feito parte daquela corja, e do alto do Céu onde estiverem increparão os bandidos que a derrubaram.
Aqueles revolucionários que não se arrependeram e foram condenados ao Inferno têm notícia da festa celeste comemorando os heróis da Bastilha e urram, blasfemam, uivam de ódio, e os bem-aventurados respondem com uma truculência vitoriosa, descascando-os com palavras que põem a nu diante de todos todo o mal praticado. Os condenados fervem de ódio, porque querem afirmar que aquilo foi uma coisa boa, mas não podem, pois está patente ter sido uma porcaria, um horror, e ficam humilhados, se retorcem nas fogueiras e no pânico completo e eterno do Inferno.
Por se tratar de uma data que redunda em glória para a Igreja – porque glorifica gente que quis morrer por ela –, enquanto tal essa data é homenageada no Céu. Então, os coros angélicos ressoam e os bem-aventurados desfilam cantando as glórias de Deus.
Assim se pode imaginar a queda da Bastilha comemorada no Céu, fazendo uma ressalva que a verdade histórica impõe. Não se pode afirmar que todos os que tombaram defendendo a Bastilha morreram por amor de Deus. Muitos pereceram porque eram soldados, deviam batalhar, cumprir o seu dever, mas não tinham nisso uma intenção religiosa. Outros eram homens até sem Fé que lutaram porque possuíam um resto de solidariedade com a realeza e percebiam estar ela sendo atacada rijamente naquela ocasião. Outros morreram porque foram apanhados pela sanha encolerizada de quem investia contra a Bastilha, e nem entenderam bem a razão pela qual morriam, e nessa situação eram julgados por Deus.
Mas quando alguém morre, ainda que por equívoco, a favor de uma boa causa, há sempre uma misericórdia de Deus para com ele em permitir a perda da vida em favor dessa boa causa. Assim, pode-se e deve-se manter a esperança de que uma graça de arrependimento tenha sido concedida a muitos na última hora. Pode-se desejar e esperar terem vários deles salvado suas almas porque morreram por essa causa.
(Extraído de conferências de 14/7/1972, 12/9/1981 e 14/7/1990)
1) Bernard René Jourdan, marquês de Launay (*1740 – †1789).
2) François de Salignac de La Mothe-Fénelon (*1651 – †1715).
3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
4) Protestantismo, Revolução Francesa e Comunismo.
5) François Alexandre Frédéric Rochefoucauld-Liancourt (*1747 – †1827).