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Luís XIV e a respeitabilidade

Durante a Revolução Francesa, a turba revolucionária violou os sarcófagos dos reis para roubar as riquezas com que estavam sepultados e profanar seus restos mortais. Ao abrirem o esquife de Luís XIV, seu cadáver possuía tal majestade que o populacho recuou. A verdadeira respeitabilidade produz estes dois efeitos: a veneração de quem admira e o ódio de quem se revolta.

Luís XIV era um homem imensamente majestoso que realizava uma mistura muito feliz de duas nobilíssimas dinastias: a mãe dele era Habsburg e o pai, Bourbon. Aliás, duas nações – Áustria e França – cujas qualidades se equilibram muito.

Royal Collection (CC3.0)

swbexpo.bsz-bw.de (CC3.0)
Luís XIII da França (Coleção Real, Londres, Inglaterra) e Ana da Áustria (Museu Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe, Alemanha), pais de Luís XIV

Elegância francesa e grandeza espanhola

É bonito notar que a História francesa, depois da Idade Média, divide-se em etapas segundo a influência que sobre a França exerceu os países próximos. Assim, houve durante a Renascença o período da influência italiana, que marcou toda a arte francesa; depois tivemos o período da influência espanhola, com a penetração de temas espanhóis na literatura francesa, fenômeno do qual encontramos um sinal muito marcante em Corneille1.

Luís XIV reunia à elegância do francês algo da solenidade compassada e majestosa do espanhol. A coexistência da elegância francesa com certa grandeza espanhola explica exatamente o que esse monarca tinha de solar.

Flávio Lourenço
Felipe II Museu Internacional do Barroco, Puebla, México

Isso uma vez explicitado, sente-se em Luís XIV qualquer coisa de Felipe II, o rei que de tal maneira incutia respeito que, em geral, quando as pessoas vinham à sua presença, ele precisava tranquilizá-las, dizendo: “Sosegaos”2. Creio que isso era dito com uma voz tão majestosa, que a pessoa não ficava muito mais sossegada… Acrescentem a essa majestade a graça francesa e compreenderão como daí só poderia sair uma verdadeira obra-prima. Esta foi Luís XIV.

Durante a Revolução Francesa, a turba revolucionária violava os sarcófagos dos reis para roubar as riquezas com que estavam sepultados, e se vingar deles profanando seus cadáveres e jogando-os em uma vala comum, em meio à cal para serem consumidos, pois, devido a um sistema muito eficaz de embalsamamento, vários desses corpos mantinham-se conservados por muito tempo.

Ao chegarem ao esquife de Luís XIV, abriram-no e se depararam com seu cadáver enegrecido, o qual possuía tal majestade que o populacho, ao invés de se atirar em cima como fizera com todos os outros, teve um suspense e recuou um pouco. Portanto até depois de morto o Rei-Sol impôs respeito. Depois, recuperados do impacto, os revolucionários ficaram furiosos, avançaram, arrancaram o corpo de dentro do caixão e lançaram-no na vala comum.

Poder-se-ia dizer que o respeito incutido por Luís XIV em seus contemporâneos provinha do fato de ser ele um monarca absoluto de quem dependia o futuro de muita gente e, por isso, metia um certo medo nas pessoas que o reverenciavam por interesse.

Gabriel K.
Luís XIV recebe Mehmet Riza Beg, embaixador do Xá Tahmasp II – Palácio de Versailles, França

Ora, aqueles facínoras sabiam perfeitamente que estavam diante de um cadáver, tinham aberto a sepultura e não podiam absolutamente esperar, supor ou recear que um rei morto fosse capaz de qualquer vingança contra eles. Logo, a impressão de respeito provocada pelo monarca nessa ocasião não tinha nenhuma relação com interesse, ambição ou temor, e explica melhor a respeitabilidade irradiada por ele em vida.

Efeitos produzidos pela verdadeira respeitabilidade

O que é essa respeitabilidade a qual um homem irradia em torno de si a ponto de até os malfeitores que vão estraçalhar o seu cadáver se detêm um instante, e depois, por ódio à respeitabilidade, profanam esse cadáver mais do que a todos os outros? De fato, a verdadeira respeitabilidade produz estes dois efeitos: a veneração de quem admira e o ódio de quem se revolta. A própria majestade de Deus causava sobre os espíritos angélicos esse duplo efeito. Satanás e os dele se revoltaram, enquanto São Miguel e seus Anjos admiraram. Então, o que vem a ser essa respeitabilidade se, como vimos, se trata de um sentimento de inferioridade motivado pelo medo ou pela ambição?

É, por certo, a irradiação de uma superioridade, mas não de uma superioridade qualquer, precisamente porque ela é irradiada pela pessoa e não incutida por algo que se sabe a respeito dela.

Tomemos, por exemplo, Pasteur. Ele foi indiscutivelmente um grande sábio, um cientista que fez invenções geniais de uma grande utilidade para o gênero humano. Qualquer indivíduo que não tivesse o senso moral completamente obtuso, sabendo estar tratando com Pasteur, sentiria respeito. Contudo esse respeito vinha da constatação de seus feitos e não de uma irradiação de sua personalidade.

château de Versailles (CC3.0)
Luís XIV – Museu de História da França, Palácio de Versailles, França

Outro exemplo, o Marechal Foch. Sua figura nunca me pareceu irradiante de respeitabilidade. Se eu o visse andando à paisana num ônibus qualquer, meu olhar não se deteria nele nem um minuto, mas se o reconhecesse, pensaria: “O grande Marechal Foch, vencedor da Primeira Guerra Mundial!”, e lhe prestaria todo o respeito.

Para dar um exemplo nacional, cito Santos Dumont. É inegável que ele proporcionou um importante avanço na Ciência ao inventar a dirigibilidade do avião, pelo que merece um lugar saliente na consideração das pessoas. Entretanto quem vê sua clássica fotografia, com aquele chapelão, não exclama: “Como sua personalidade irradia superioridade!” Porque não irradia.

Esses exemplos correspondem, sem dúvida, a uma respeitabilidade autêntica e muito alta, mas incutida pelo mérito do sujeito e não irradiada por sua personalidade. Portanto, não é uma respeitabilidade proveniente do homem inteiro, mas de uma zona de sua alma, de uma capacidade. A respeitabilidade de Luís XIV, ao contrário, vinha de sua personalidade e irradiava dele inteiro.

Analogia com a visão beatífica

Então, em face do conceito segundo o qual há uma forma especial de superioridade que irradia, o que é essa superioridade?

Em certo sentido, o corpo é o símbolo da alma, e as propriedades da alma irradiam através dele quando a pessoa possui certos gêneros de atributos num grau muito alto, por onde ao ver o aspecto físico de alguém de alguma maneira se discerne a alma, e se nota, de modo espiritual, uma realidade que fica por cima da realidade física. Assim, percebe-se a respeitabilidade na alma.

Trata-se, pois, de um discernimento que vai além do olhar, e corresponde a um bem de ordem espiritual percebido através da consideração dos aspectos físicos. Olhando para a face de Luís XIV, percebo simbolicamente um bem de sua alma, a majestade de um rei no sentido pleno da palavra. Assim, através das aparências sensíveis, apreendo realidades espirituais que os sentidos não atingem, mas transparecem nos aspectos físicos.

Quem vê o fenômeno espiritual dessa aparência de uma qualidade moral num homem acaba adquirindo uma ideia do que é, em si mesma, essa qualidade moral. Mas não é uma noção oriunda de uma definição; é uma ideia, por assim dizer, apalpada e sentida. Por mais que alguém definisse num dicionário ou tratado de Moral o que é majestade, não teria a noção de majestade que se teve vendo Luís XIV e, mediante suas feições físicas, a alma do Rei-Sol.

Apalpar assim uma coisa que, entretanto, é abstrata, leva a outro passo que conduz a Deus. Porque d’Ele não podemos dizer apenas que é majestoso, mas devemos afirmar que é a Majestade, pois Deus não somente possui, mas é as qualidades. De maneira que Ele não é bom, mas a Bondade; não é sábio, e sim a Sabedoria.

Por conseguinte, se olhando para um homem vi nele a majestade de sua alma e, através dela, formei uma ideia do que é a majestade em abstrato, considerada em seu modo absoluto, eu adquiri algo que tem certa analogia com a visão beatífica. De fato, mesmo sem explicitar, em Luís XIV algo da majestade de Deus foi vista.

Museu Paulista da USP (CC3.0)
Alberto Santos Dumont

Isso nos explica porque aqueles bandidos recuaram quando viram o cadáver de Luís XIV. Sempre que um atributo bom e digno da alma de um homem aparece com tanta intensidade, a ponto de provocar um pasmo, uma surpresa, um entusiasmo, um enlevo ou um sentimento de veneração recolhida, há uma transparência de algo de divino. É o modo pelo qual se chega a conhecer a Deus pela quarta via indicada por São Tomás de Aquino.

Alguém poderia objetar: “Mas, Dr. Plinio, Luís XIV não foi um grande pecador?”

Em primeiro lugar, do pecado a que aludem ele se penitenciou e passou seus últimos vinte anos como um homem de vida ilibada, modelar. Mas não é propriamente o que vem ao caso, pois assim como uma pedra ou um animal pode lembrar a Deus, por alguns lados o pecador portador de uma tradição católica enquanto tal também pode recordar a Deus. Por exemplo, um pai que, embora se encontre em estado de pecado mortal, trata seu filho carinhosamente, pode lembrar a Deus enquanto o Pai carinhoso. De maneira que essa seria uma objeção infantil, a qual podemos descartar.

Modalidades de majestade: paternalidade e ímpeto para destruir

Concluo com uma consideração a respeito da majestade.

Fra Angelico (CC3.0)
O beijo de Judas – Museu de São Marcos, Florença, Itália

A verdadeira majestade, colocada diante da boa vontade de quem é menor, se traduz em paternalidade e tem vontade de proteger; posta diante da resistência de quem é ruim, ela se traduz num ímpeto para destruir. Em tese, ambas disposições se complementam e se explicam por um mesmo fundo, porque o próprio da majestade não é ser grã-fina, elegante, mas é ter a supereminência do bem. Quem a possui deve amar todos os graus que essa supereminência inclui. Consequentemente, precisa amar todas as menores e mais débeis formas de bem que possam estar exiladas numa alma, ainda quando esta tenha muitos defeitos, pois, do contrário, a majestade mentiria a si mesma.

Ora, não é a majestade e sim a iniquidade que mente a si mesma. Logo, percebendo qualquer pequena modalidade de bem, ela deve se manifestar sob a forma de uma afinidade, uma adesão, uma homogeneidade e um desejo de ajudar, socorrer, salvar aquele bem comprometido pelas influências contrárias que ali existem.

Em sentido oposto, a majestade que encontra uma resistência empedernida e é insultada, por amor à ordem que representa ela deseja esmagar. Temos, assim, as duas modalidades de majestade.

Vemos isso de modo infinito e paradigmático em Nosso Senhor Jesus Cristo: infinitamente manso, ensinando que se deve ser manso e humilde de coração, mas de outro lado, em alguns episódios da vida, incutindo um assombro que deixava as pessoas sem saber o que dizer, como aqueles canalhas que foram prendê-Lo e caíram com a cara no chão, simplesmente pela afirmação: “Sou Eu!” Era a manifestação da infinita majestade d’Ele.

(Extraído de conferência de 23/3/1973)

1) Pierre Corneille (*1606 – †1684). Dramaturgo francês, considerado o fundador da tragédia (estilo de drama) francesa.

2) Do espanhol: sossegai-vos.

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