Analisando a sociedade medieval, notamos que ela se encontra muito mais em ordem do que a moderna, apesar de não estar sempre tranquila. Cada classe, quando ferida ou pisada, reage; e o rei sabe disso. Onde todo mundo se defende, se acotovela, acaba havendo lugar para todos. É o caráter contratual da sociedade medieval que explica a sua própria organização.
Vínhamos tratando a respeito das leis da Idade Média, o papel dos costumes, sua definição, como se constituíam e sua legitimidade1.
Um costume só tinha valor se fosse conforme à justiça e à ordem natural
Já falei sobre a posição do rei diante do costume e demonstrei como o monarca, ou em certos casos o senhor feudal, tinha como tarefa confirmar os costumes, quando havia alguma dúvida a respeito; ou seja, quando numa determinada categoria ou classe social se discutia a respeito da autenticidade ou do verdadeiro sentido de um costume, o rei intervinha para definir a questão.
Às vezes também, a pedido das classes interessadas, os costumes eram expostos por escrito pela própria classe e o rei os confirmava. E a última tarefa importante do monarca a respeito do costume não era a confirmação deste, mas a extirpação dos maus costumes.
Com efeito, um costume só podia ter valor na medida em que fosse conforme à justiça e à ordem natural; do contrário era nulo. A obrigação do rei era extirpar o que eles chamavam maus costumes. São Luís IX, Rei de França, foi um insigne extirpador de maus costumes.
Mas, além dessas leis não escritas, que eram os costumes, na Idade Média havia também leis escritas. Trata-se de saber como eram. Havia leis do rei e outras dos senhores feudais.
Exemplo da dispensa a um costume
O monarca, como supremo juiz do reino – num sentido da palavra “juiz” muito mais amplo do que se usa hoje em dia –, que aprecia a equidade de todas as situações, de todas as leis, tinha até o poder de dispensar do costume determinadas pessoas em certos casos excepcionais.
Por exemplo: há num determinado lugar um costume, mas ali se assinala, pelos seus serviços à pátria, pela elevação de sua cultura, pela sua grandeza financeira, pelo seu poder, pelo esplendor de sua tradição, uma determinada família. Nesta família floresce, em certo momento, um ministro de Estado ou um general. A família adquire uma tal ilustração que para ela passa a ser vergonhoso continuar a obedecer a esse costume.
Isto porque a honra tinha um sentido mais importante do que o dinheiro, situação que se transformou singularmente depois. Havia uma porção de costumes que obrigavam juridicamente a atos de caráter honorífico. Por exemplo, todas as famílias da redondeza de um determinado castelo, todos os anos, no aniversário do senhor daquele castelo, deviam oferecer-lhe três rosas, cinco pães, quatro peixes ou quaisquer outras coisas assim, como uma homenagem.
Suponhamos que uma das famílias do lugar, obrigada a isso pelo costume, adquirisse uma ilustração muito maior que a família à qual essa homenagem era tributada. O rei tinha o direito de, por meio de um privilégio, dispensar aquela família daquele costume. Não porque fosse constituir uma situação odiosa, imerecida para aquela família, mas pelo contrário, para restabelecer a equidade lesada.
O costume não tinha tomado em consideração uma situação nova que se impôs depois. Para compensar a iniquidade da aplicação do costume antigo a um fato novo e diferente, o rei podia intervir para constituir um privilégio.
Os privilégios: um modo de restabelecer a justiça
Notem bem que a palavra “privilégio” teve depois um sentido odioso por causa da demagogia dos revolucionários. Eles começaram a apontar o privilégio como sendo uma coisa gratuitamente dada pelo rei a uma pessoa que não o merecia. Não existe nada mais estúpido do que isso. É o contrário. O privilégio é um modo de restabelecer a justiça. Como a lei é cega, sendo uma regra geral que comporta uma porção de situações excepcionais, o rei, no seu alto arbítrio, nos seus elevados desígnios de equidade e sabedoria, pode acomodar a lei às situações concretas, constituindo privilégios.
Esta é uma das mais altas atribuições do rei. Privilégios a favor de igrejas, por exemplo. Em certo lugar existe o costume de pagar a balsa ou o pedágio de uma estrada que conduz a uma igreja, em favor de um determinado senhor feudal. Mas nesta igreja se opera um milagre insigne; torna-se um lugar de romaria.
É justo que todos os romeiros continuem a pagar este imposto? Não, por causa do milagre que houve ali, e da veneração popular. O rei constitui um privilégio em favor daquela igreja com base no costume. Ato de justiça, de equidade, nunca de iniquidade.
Imprecisões e erros cometidos por tratadistas de Direito medieval
Além dos privilégios do rei, existiam no Direito francês les établissements nouveaux – os novos estabelecimentos. Estabelecimentos porque eram decretos do monarca que valiam para todo o reino, os quais ele promulgava apoiado em seus altos barões e senhores feudais.
São, em geral, corretos, muito bonitos, nos quais o rei declara, por exemplo, que “ouvidos os seus fiéis vassalos, o Duque da Bretanha, o Duque d’Anjou, etc., reunidos na sua corte no dia tanto, resolveu em união com eles estatuir o decreto que segue”. E lá iam, então, as disposições do decreto.
O rei precisava, para medidas dessa natureza, da aprovação dos senhores feudais?
Os tratadistas de Direito medieval costumam afirmar que o monarca não precisava, e dão como prova o fato de que muitas vezes os reis baixavam um decreto, de cuja promulgação não constavam os senhores e grandes nobres.
E eles deduzem daí que o rei podia baixar decretos sem autorização dos grandes nobres. A meu ver, eles não compreenderam que há diferenças de situações. Existiam algumas medidas as quais eram de interesse coletivo do reino, e que ficavam no âmbito exclusivo do rei; então o monarca podia decretá-las sem autorização dos senhores feudais. Mas outras vezes havia determinadas medidas que estavam no âmbito próprio do senhor feudal, e era de vantagem para o reino que todos os senhores feudais legislassem juntos.
Então o rei, com todos os senhores feudais, decretava um determinado ato legislativo. Tenho a impressão que se os tratadistas de Direito medieval conhecessem um pouco de Direito Canônico, evitariam muitas imprecisões e muitos erros neste ponto.
Na Igreja existe isto também. Há decretos que o papa lança sozinho, mas existem outros que estão dentro das atribuições de um bispo; o papa normalmente podia legislar a respeito daquilo, mas ele não legisla. Os bispos se reúnem, fazem os decretos relativos às suas dioceses, em conjunto, e depois o papa aprova aquelas decisões e manda pôr em prática. É uma situação parecida.
Nós deveríamos, portanto, nas leis do rei feitas para o bem geral do reino, distinguir as que estão dentro do âmbito da autoridade exclusiva do rei e aquelas que estão no âmbito da autoridade dos senhores feudais. Quando convém que legislem juntos em determinado sentido, então o rei implora a autoridade dos senhores a legislarem com ele.
Limitações do poder legislativo do rei
Quando se tratava de uma questão em que o monarca não tinha o encargo de legislar com os outros, então ele agia sozinho. Na França, o ato mais antigo que se conhece de établissements nouveaux é de 1144, pelo qual o Rei Luís VII ordenou a expulsão do reino da França de todos os judeus relapsos.
Eles entendiam como judeu relapso o que tinha abraçado a Religião católica apenas por fraude, para obter alguma vantagem, e depois a abandonava.
Mais tarde, no ano de 1150, há um decreto baixado também para toda a França instituindo uma paz de dez anos no reino em favor de três categorias: as igrejas, os comerciantes e os cultivadores, a fim de que, nas guerras privadas, fossem respeitadas.
No antigo Direito medieval, essas leis escritas do rei eram extremamente raras. Com o tempo, elas foram se tornando mais frequentes. No fim da Idade Média, os monarcas legislavam muito a respeito de inúmeras matérias.
A lei do rei não podia destruir a autoridade dos senhores feudais, nem a diminuir; não podia suprimir os costumes ou modificá-los, a não ser nos casos que já mencionei: os contrários à Moral, à ordem pública, à dignidade dos particulares, à Doutrina católica.
Além disso, o poder legislativo do rei tinha as seguintes limitações: para que uma lei do monarca fosse válida era necessário, antes de tudo, que fosse para o bem geral. Em segundo lugar, que fosse razoável. Em terceiro lugar, que não atentasse contra os direitos de Deus, nem contra os bons costumes. Em quarto lugar, que não lesasse os direitos de ninguém. Em quinto lugar, que o rei pedisse o conselho dos outros.
Esses cinco elementos eram indispensáveis para que uma lei do monarca entrasse em vigor no consenso de todos. Isso levanta o problema do direito de resistência à lei, que existia na Idade Média. É uma coisa muito curiosa e que assombra os próprios liberais de nossos dias.
Evidentemente o rei tinha uma autoridade muito maior nas terras em que ele era diretamente senhor feudal. Para essas terras os établissements nouveaux são extremamente numerosos. O rei tinha ali a plenitude da autoridade e ele então legislava copiosamente.
O que se pode dizer do monarca, afirma-se também dos senhores feudais. O senhor feudal tem, analogamente ao rei, os mesmos direitos de fazer leis dentro de seu feudo.
Assim, temos definido: as leis escritas precisam ser conformes à justiça e à Doutrina católica e devem abranger, quando se trata do rei, os interesses gerais do reino; quando se refere aos senhores feudais, os interesses do feudo. Ao lado das leis escritas do rei e as do feudo colocam-se os costumes, para completar o edifício legislativo de um país medieval.
O Direito Canônico e o Direito Romano
Além disso havia duas categorias de leis sobre as quais vou falar muito sumariamente, para completar o quadro que estou apresentando. São as leis decorrentes da aplicação do Direito Canônico: ou é o próprio Direito Canônico, ou o Direito Romano.
Já vimos que tudo quanto diz respeito à Igreja é regulado pelo Direito Canônico. A Igreja era extremamente florescente naquele tempo, com dezenas de milhares de clérigos em cada país, com instituições religiosas em quantidade incontável, feudos colocados dentro do próprio âmbito do governo temporal da Igreja. Ela mesma legislava sobre uma porção de matérias nas quais hoje o Estado legisla: o casamento, o registro civil, a sucessão testamentária, etc.
Todos esses assuntos caíam debaixo da alçada do Direito Canônico, e a capacidade para legislar sobre eles pertencia à própria Igreja, representada ora pela Santa Sé, ora pelos bispos. De maneira que era mais uma outra categoria enorme de pessoas que ficava fora do âmbito da lei do Estado.
Temos, por fim, o Direito Romano. Pelo seu prestígio, tornou-se costume aplicá-lo em certos lugares do Sul da França. Como o costume fazia a lei, o Direito Romano nesses lugares serviu de lei.
Na Idade Média não se compreendia que o Direito Romano estivesse em vigor em alguns lugares. O Império Romano estava morto e sepultado havia mil anos. O que se encontrava em vigor era apenas o costume de resolverem, em certos locais, as questões segundo o Direito Romano, como sendo uma lei aplicável aos interesses de diversas regiões.
Vamos então resumir. Temos leis civis de duas categorias: as elaboradas pelos próprios particulares, os costumes; as feitas pelo Estado, leis escritas ou établissements. Estes são de duas espécies: os do rei e os dos senhores feudais.
Os établissements do rei podem se considerar uma terceira categoria. Existem os établissements visando o bem geral do reino, em que o monarca legisla sem necessidade do concurso dos outros senhores; e os établissements em que o rei precisa desse concurso porque a matéria legislativa interessa a todo o reino, mas está no âmbito de cada senhor feudal. Em terceiro lugar, há os établissements do rei para as terras das quais só ele é senhor direto. E, por fim, temos os établissements dos senhores feudais.
Como se constituíam as associações
Creio que isto nos conduz naturalmente para o estudo da vida dentro do feudo e da autoridade que o senhor feudal exercia sobre os seus súditos, para compreendermos bem a lei feudal.
Na Idade Média, o princípio associativo era extraordinariamente enérgico. De maneira que a três por dois se faziam associações, e todas elas eram chamadas universidades. Quer dizer, não eram apenas uma universidade de estudos como se diz hoje, um conjunto de faculdades superiores, mas toda corporação, toda associação, toda pessoa jurídica era uma universidade. Essas universidades como se formavam?
Hoje em dia cria-se uma sociedade lavrando e registrando uma ata. Naquele tempo formava-se por um ato do rei ou do senhor feudal, declarando que aquela pessoa jurídica estava constituída. Como segundo o Direito medieval as funções do Estado podem e devem ser delegadas a particulares, logo que o monarca ou um senhor feudal constituía uma universidade, ele delegava uma parte dos poderes políticos que possuía para o próprio organismo chamado universidade.
De maneira que as corporações ou universidades de profissionais faziam leis para os seus próprios membros. Assim, grande parte da matéria da legislação do trabalho, que hoje é feita pelo Estado, naquele tempo era realizada pelos particulares. Temos aqui uma outra forma de leis muito restrita, para grupos pequenos, e que era feita por autoridades pequenas também. Vemos então os vários fios legislativos, cujo conjunto formava o tecido legislativo de uma nação.
O crime de felonia
A ideia da resistência contra a injustiça está claramente colocada dentro do Direito e da sociedade medievais, sob a seguinte forma: toda a sociedade medieval é construída à maneira de um conjunto de contratos. É por meio de um contrato que o rei desmembra do seu patrimônio, de sua coroa, uma terra para entregá-la a alguém. Esse contrato estipula as obrigações e os direitos do monarca, e as obrigações e os direitos do vassalo. O vassalo nobre, munido desse contrato, desmembra novos feudos do seu próprio contrato, o subvassalo divide por sua vez outras terras do outro contrato. Assim, por meio de uma cadeia de contratos, cada um deles constituindo um elo, se chega a englobar toda a hierarquia feudal.
O mesmo faz o rei com as cidades. O monarca e os senhores feudais, muito frequentemente, constituem cartas forais a favor das cidades às quais eles dão autonomia. Essa autonomia é contratual. A cidade recebe do rei tal coisa e lhe fornece tanto; obriga-se a fazer algo e tem direito também a tal privilégio ao qual o monarca se obriga.
Qual é o resultado? O rei, os vassalos, as cidades, todo mundo tem suas armas, suas tropas e seus meios de fazer executar o contrato em face do outro contratante. Qual é a lógica tremenda dos contratos? Todo contrato, por sua natureza, estabelecendo direitos e deveres, violadas as obrigações de uma parte, a outra parte está isenta de seus deveres também.
Portanto, não há crime que a moralidade medieval tenha censurado com mais energia do que o de felonia. A felonia era a atitude do nobre que, tendo recebido do seu rei terras, honras e vantagens, na hora do cumprimento do dever não se apresenta. Era, por excelência, o crime do vassalo. As histórias medievais enxameiam de casos de reis que mandam destituir, degradar e depois matar vassalos, por felonia. O povo assiste aliviado essas execuções; um fidalgo felão foi punido e a honra pública foi desagravada.
São igualmente numerosos, na Idade Média, os casos de nobres os quais, julgando que o rei os está querendo oprimir, resistem de armas na mão. Ninguém considera isso felonia, mas uma coisa perfeitamente natural. Porque havia o contrato, a outra parte o violou, ele se defende.
O verdadeiro conceito de ordem
Quando nos colocamos diante dessa perspectiva, isso parece meio apavorante. Imaginar corporações, municípios, feudos, que podem resistir ao rei de armas na mão… Então vem imediatamente esta objeção: mas isto cai no caos, porque se cada um, quando tem direito, pode resistir de armas na mão, amanhã resiste quando não possui direito ou imagina que o tem. E se cada um é juiz de sua própria situação, precipitamo-nos dentro do caos.
O fundo de quadro desse argumento realmente é muito pesado na época atual. Dar a cada industrial, comerciante, a faculdade de resistir ao Estado de armas na mão… De fato, eles fazem coisa melhor: compram. Imaginem cada fazendeiro, prefeito, governador resistindo ao Estado de armas na mão; este se desfaz. De fato, essa posição legítima, em princípio, é cheia de perigos. Porque sempre que um homem está no caso de julgar os seus próprios direitos, ele pode praticar um abuso.
Isto quer dizer que tal princípio seja falso? Eu contesto. Suponhamos um país onde haja a pena de morte. Sou condenado injustamente à morte. Se vem a polícia correndo atrás de mim para me pegar, eu também posso resistir de armas na mão. Isto não é nenhum absurdo porque estou sendo condenado injustamente. É questão de legítima defesa.
Mais ainda: se o Estado faz uma lei injusta, contrária ao Direito natural e contra a qual eu quero resistir, tenho direito de desobediência formal em oposição ao Estado. Isto é Doutrina católica.
De fato, pode haver abusos. Mas um abuso proveniente de um Estado que não tem esse controle da parte dos súditos, não é muito maior? Vejamos como correm as coisas num Estado onde esse caráter contratual da autoridade não existe, por exemplo, dos Tempos Modernos. Isso é mais caracteristicamente ainda num Estado totalitário da Era Contemporânea.
O rei dos Tempos Modernos legisla; os nobres, o clero, a burguesia não têm outra coisa a fazer senão inclinar-se diante dele. Há verdadeiramente uma ordem esplêndida dentro do reino, se entendemos por ordem o fato de não existirem turbulências materiais. Ninguém se levanta. Nesse sentido poder-se-ia dizer que onde há mais ordem numa cidade é no cemitério, porque ninguém se move, ninguém faz desordem. E se no cemitério não entrasse nenhum vivo, ele seria um verdadeiro campo da paz.
Se se entende por ordem essa inércia absoluta das coisas, um Estado como esse está em ordem. Mas a ordem é a disposição das coisas segundo a sua natureza e seu fim. Se o Estado pode tudo e ninguém lhe resiste, ele torce todas as coisas. Daí surge uma sociedade contorcida, como foi a existente na França antes da Revolução.
A nobreza sem função definida, sem razão de ser dentro do Estado, o clero degradado pela ação do rei, a plebe completamente em vias de se desfazer e de se atomizar, por causa do monarca. A “ordem” é absoluta; ninguém se levantou, ninguém se revoltou. Comparem isso com a aparente turbulência medieval. Por “dá cá aquela palha” o senhor feudal se levanta e o rei tem que enfrentar a cavalaria dele, e ambos discutem. Em última análise, há mais agitação, mas cada um sabe fazer respeitar os seus direitos.
Uma das características mais originais da organização medieval
Analisando a sociedade medieval, notamos que ela se encontra muito mais em ordem do que a moderna, apesar de não estar sempre tranquila, “penteada”. Embora seja uma sociedade bem “despenteada”, possui um movimento próprio de um corpo vivo e sadio. Cada classe, quando ferida ou pisada, reage; e o rei sabe disso. Resultado: lutas materiais, algumas bem grandes. Lutas judiciárias enormes, processos que às vezes duram cem anos para liquidar um caso, mas como todo mundo se defende, se acotovela, acaba havendo lugar para todos.
É o caráter contratual da sociedade medieval que explica isso. Não se trata do Direito Romano exclusivo do Estado sobre todos os cidadãos, mas de uma coisa toda ela constituída de laços contratuais, em que cada um pode se mover como entende.
É muito interessante lembrar um pensamento de Pio XII que, em alguns de seus documentos, diz uma coisa curiosa: a Igreja Católica é a mestra de todas as nações não só porque ensina a verdadeira doutrina, mas também porque ela mesma é tão bem organizada que todo aquele que quiser organizar-se bem deve mirar-se nela para saber como se organiza.
Ora, dentro da Igreja Católica, com toda a sua ordem, vemos a mesma coisa. Encontramos determinados direitos os quais são de tal maneira radicais e eminentes, que são definidos pelo papa, e que o próprio pontífice não pode mudar. Por exemplo, os bispos e os sete Sacramentos dentro da Igreja são de instituição divina. A instituição da infalibilidade do papa é divina.
Ninguém pode mudar essas coisas. São fundamentais, a favor das quais todo mundo tem o direito de reagir. Nunca um papa fará o erro de querer suprimir a condição episcopal dentro da Igreja, porque o papa é infalível, mas pode suceder que um alto prelado qualquer queira oprimir um prelado de categoria inferior, dando-lhe ordens que ele não tem direito de dar.
Qual a defesa que tem um prelado nessas condições? É responder simplesmente: “Não, não e não. Eu tenho o direito divino de governar esse lugar, abaixo do papa. Respeito muito a sua autoridade, mas tenha a bondade de permitir-me que não preste atenção ao que está dizendo.” Quer dizer, há uma espécie de fundamento dentro disso.
É o seu símile que se encontra na organização medieval. Reconheço que esse caráter contratual existente na organização medieval tem riscos, mas sua inexistência cria riscos ainda maiores. Essa organização contratual não tem sido bastante notada pelos comentadores de assuntos medievais. Entretanto, a meu ver, ela é uma das características mais originais da organização medieval.
Eis uma coisa característica nesse ponto: Durante a Revolução Francesa, o governo de Paris começou a alterar a organização jurídica da França, contrariamente ao que estava estabelecido num contrato, pelo qual a Bretanha tinha resolvido incorporar-se como feudo à coroa francesa. O que faz a nobreza da Bretanha? Reúne-se e manda uma ameaça: “Se vocês continuarem nesse caminho, nós proclamamos a independência da Bretanha. Porque nós tínhamos um contrato e vocês o violaram.”
A França do Ancien Régime2 era uma soma de contratos assim. Por isso, morto o rei, toda a França fiel se levantou. Três quartos dos departamentos franceses pegaram em armas porque os contratos estavam violados. A França estava desfeita. Era preciso recomeçar a fazer tudo de novo.
Vê-se bem como essa noção contratual era orgânica. Quando lemos o “Contrato Social”, de Rousseau, percebemos a bobagem existente naquilo tudo, mas ficamos com uma noção confusa de que existe ali um certo grão de verdade. Num ponto qualquer zumbe uma verdade, no meio de todos aqueles erros.
Esse zumbido aparece transformado em cântico neste ponto que estamos considerando. Aqui a verdade não zumbe, mas canta.
Os súditos do senhor feudal
Isto posto, consideremos o feudo. Qual é a sua natureza e organização? Que direitos tem um senhor feudal sobre seus súditos e como ele faz as suas leis? Os súditos de um senhor feudal são de três categorias diferentes: os vassalos nobres, os que poderíamos chamar, até certo ponto, arrendatários, os quais recebem determinadas terras, e há a população dos homens livres.
O que vinham a ser os vassalos nobres? Consideremos um feudo que tenha mais ou menos o formato de uma mesa. O senhor feudal tem a sua capital colocada no centro. Como sói acontecer nas turbulências medievais, em toda a orla da mesa há inimigos que procuram entrar. Pelo mesmo processo pelo qual o rei lhe fez o enfeudamento daquelas terras para que as defendesse, ele acaba constituindo ao longo da orla senhores feudais os quais fazem seus castelos que defendem suas fronteiras.
De maneira que ele tem o miolo do feudo, e a côdea é constituída por castelos de senhores feudais. Mas esses outros senhores feudais têm em seus feudos certas posições que precisam defender melhor. Então, dentro de seu feudo, eles constituem feudos menores e senhores feudais menores.
Às vezes, não é um castelo porque não defende uma posição tão importante, mas uma casa na qual vai encastoada uma torre onde todos se defendem no caso de uma agressão sumária.
Esses vassalos nobres são obrigados a auxiliar seu senhor feudal no governo e na defesa da castelania.
Existem também os vassalos plebeus, que são de duas categorias: o plebeu propriamente dito e o servo. O vassalo plebeu tem terras que recebeu do rei por um contrato, mas ele não participa do governo do feudo. Tem o direito de residir no feudo, onde ele goza a condição que o cidadão possui no país em que nasceu.
Ao lado disso há uma população de homens livres, flutuante, que é muito frequente na Idade Média. É um paradoxo na Idade Média, quando as vias de comunicação eram péssimas, mas se viajava muito. Havia uma fúria ambulatória inexplicável. Encontram-se estrangeiros, por exemplo lombardos, pela Europa inteira. Qualquer feudo em que se vá há um, dois, cinco lombardos. Eram homens que ficavam vagueando, uns vagos. Qual a posição deles no feudo? A de súditos estrangeiros dentro do país. Eles têm o direito de morar lá, mas são obrigados a obedecer enquanto estiverem ali. Entram e saem quando querem.
Sobre as três categorias de súditos o senhor feudal tem o direito genericamente chamado de justiça, administração e polícia. Ele faz muito poucas leis. Cada um vive segundo o Direito natural e a lei natural, e o costume regula tudo entre eles. O senhor feudal mantém a justiça nesses lugares, precisamente como o rei no reino.
Polícia. Quando alguém viola um mandamento da Lei de Deus, um costume, o senhor feudal manda prender, colocar na cadeia ou aplicar as punições de estilo, aliás muito pitorescas, porque em geral afetam a dignidade: pelourinhos, ovos podres, vaias do povo, cabeça de porco colocada em cima da cabeça, etc. Crimes contra a honra são punidos com penas infamantes.
O senhor feudal, além disso, tem a administração, e para tanto ele de fato dá ordens. Essas ordens podem ser chamadas leis? É preciso distinguir: nos feudos pequenos isto nem é escrito. Vai de viva voz: “Chegou o dia de reparar os muros do castelo. Venham cá!” Nos feudos grandes já toma o caráter de ordens gerais, que podem ser chamadas leis. E recebe o aspecto de leis estaduais no âmbito de uma federação.
Serviço militar
Por fim, há também a questão do serviço militar. O costume estabelecia o serviço militar para o nobre, o plebeu e havia também a mobilização geral. O nobre era obrigado ao serviço militar, em três modalidades. A cavalgata era a primeira delas. Quando se tratava de fazer uma excursão em terras de um nobre vizinho, o senhor feudal chamava seus nobres e dizia: “Vamos fazer uma cavalgata em tal lugar.” Depois, havia uma campanha em grande estilo, na qual se demorava bastante tempo, invadindo um outro lugar. E a terceira modalidade era a guarda. Em tempo de paz, os senhores vassalos nobres deviam guarnecer o castelo do senhor principal, para auxiliar na defesa normal contra qualquer surpresa.
Ao lado disso havia o serviço militar plebeu, que era subsidiário. Só se pedia quando os nobres não eram suficientes para garantir a integridade do feudo, e assim mesmo era muito limitado.
O plebeu só ia batalhar em determinados dias do ano, e apenas tinha obrigação de chegar até certa distância. Fora desse limite, ele deixava cair as armas e voltava. Era também estritamente contratual esse serviço. Em alguns feudos os senhores feudais chegaram a fazer contratos com camponeses ricos, bem nutridos, com linho e ouro em suas casas, os quais afirmavam: “Nós pagamos ao senhor feudal tanto por ano e ele contrata tropas mercenárias para vir batalhar; nenhum de nós combate.” O senhor achava mais interessante contratar bandidos nas montanhas da Suíça, que vinham cheios de fome para lutar, do que alistar burgueses pacifistas para o combate.
Assim, todo mundo se entendia bem e praticamente, por uma quantia de dinheiro, o serviço militar plebeu ficava abolido. Depois havia a mobilização geral quando o apuro era muito grande e não tinha caráter feudal.
Quando o rei ou o senhor feudal precisava de reforços diante de uma invasão maciça ou algo semelhante, ele decretava que todo mundo devia vir com as armas que pudessem. Então se formavam aqueles grandes exércitos onde, na falta de outras armas, alguns iam combater com utensílios de cozinha. Quando chegava o momento da grande interpenetração das tropas, panela contra panela valia, como valia espada contra espada. Era o único vestígio da velha mobilização romana, aliás de direito natural.
(Extraído de conferência de 1954)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 270, p. 9-15.
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.