A primeira tentação do liberalismo que a História registra deu-se no Céu, quando Lúcifer e seus sequazes ousaram prescindir de Deus para divinizar a sua própria natureza criada. A revolta da natureza contra a ordem sobrenatural corresponde ao racionalismo que hoje lança sobre o mundo o flagelo dos totalitarismos pagãos.
Um dos temas mais oportunos nesta quadra do Advento em que estamos é o dogma da Encarnação do Verbo, em sua estreita relação com o dogma da queda de nossos primeiros pais.
Mostraremos as origens do naturalismo e do panteísmo, e que este não passa de um autêntico comunismo entre o finito e o Infinito, devendo terminar, forçosamente, no comunismo do que é finito ou criado. Lúcifer, primeiro liberal, também é o primeiro comunista na História da Criação.
Ponto de partida do Cristianismo
Não nos move o desejo de propagar novidades. Deter-nos-emos na meditação de verdades bem conhecidas, mas sobre as quais nunca é demais insistir. Se o mundo anda mal, não é certamente por falta de rumos, mas por insistir no caminho do erro, também velho e conhecido, ou pelo desejo comodista de não querer pensar em escolher suas veredas. E na contemplação dessas verdades conhecidas e abandonadas não nos guiaremos pelo preconceito fetichista de apenas tratar da parte positiva das afirmações, mas entraremos também na parte negativa, aliás com o intuito positivo de mais uma vez afirmar os direitos da verdade pelos desvios e desatinos a que o erro conduz.
Os amigos incondicionais das afirmações e dos pontos de vista exclusivamente construtivos que nos perdoem. Dentro do tema que temos de abordar, logo de início se acha uma negação. Mas a culpa não é nossa. A Encarnação do Verbo, em seu aspecto de Redenção, teve origem na negação de Lúcifer em servir a Deus. Não podemos deixar de, inicialmente, nos ocupar da queda dos anjos, da queda do homem e do dogma do pecado original.
Este dogma é o ponto de partida do Cristianismo, cujo termo é a Redenção. “A queda em Adão e a reparação em Jesus Cristo, conforme afirma Augusto Nicolas1, são, por assim dizer, os dois polos da esfera espiritual que se correspondem pelas mais justas, pelas mais fecundas e pelas mais sublimes relações. São como os dois movimentos que medem e determinam o jogo tão delicado, a relação tão importante da liberdade e da graça, com uma precisão admirável que somente Deus poderia operar, somente a autoridade infalível de sua Igreja pode explicar e manter, e que todas as heresias têm falseado e destruído quase inteiramente.”
Luta que continuará até a consumação dos séculos
Com efeito, esses dois dogmas se acham de modo tal na verdade das coisas, nas necessidades de nossa natureza, tão intimamente ligadas entre si, que não se pode diminuí-los ou exagerá-los sem romper o equilíbrio e a ponderação de toda a doutrina religiosa, de toda a Filosofia humana e mesmo de toda a sociedade, como bem observa o autor dos “Estudos filosóficos sobre o Cristianismo”.
Relata a Sagrada Escritura que havendo Deus criado os anjos, antes de admiti-los à glória eterna, submeteu-os a uma prova meritória. Ignoramos qual tenha sido essa prova, mas de acordo com um grande número de teólogos Deus lhes havia revelado o mistério futuro da Encarnação, e lhes anunciara que eles deveriam adorar o Filho de Deus feito Homem. O que é muito plausível e pode ter sido mesmo o prêmio prometido a Adão pela sua obediência. Mas o mais belo dos anjos resistiu. “Como caíste do Céu, ó Lúcifer, que ao nascer do dia tanto brilhavas? Que dizias no teu coração: Subirei ao Céu, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei sobre o monte da aliança dos lados do aquilão. Sobrepujarei a altura das nuvens, serei semelhante ao Altíssimo. E, contudo, foste precipitado no Inferno, até ao mais profundo dos abismos.”
Vemos, assim, que a queda dos anjos foi motivada por sentimento de orgulho, por quererem ser iguais a Deus e gozar a felicidade independentemente das divinas disposições.
A diferença entre os Anjos bons e os maus não nasceu da diferença entre suas naturezas, mas da variedade de suas vontades e desejos.
Deleitaram-se os anjos maus em si mesmos como se fossem seu próprio bem, e voluntariamente se afastaram do Bem superior, beatífico. Assim, a causa da bem-aventurança de uns foi se unirem com Deus, e a causa da miséria e desgraça de outros, pelo contrário, foi se desunirem de Deus.
Notemos que Lúcifer e seus anjos, como espíritos inteligentes que eram, não ousaram sobrepor-se a Deus, mas prescindir d’Ele, ser “semelhantes ao Altíssimo”. Foi, portanto, a primeira tentação do liberalismo que a História registra. E nessa tentativa de divinizar sua própria natureza criada, de se identificar com a natureza divina, temos em Lúcifer o primeiro panteísta.
E vemos, como fruto dessa rebeldia de Lúcifer, a primeira luta que se travou na História da Criação, essa mesma luta entre o bem e o mal que haveria de desenrolar-se pelos tempos afora e que há de continuar até a consumação dos séculos.
Obediência, mãe e custódia de todas as virtudes
Depois da queda dos anjos vem a queda do homem.
Nada podendo contra Deus, Lúcifer procura se vingar em sua imagem. Inimigo da natureza, o príncipe do pecado e pai de todos os males, homicida desde o começo, levou ao Paraiso Terrestre a sedução e o pecado. Criara Deus o homem perfeito, dotado de ciência claríssima e universal, justiça original unida à prática de todas as virtudes, império absoluto da alma sobre o corpo e domínio sobre todas as criaturas, isento do sofrimento e da morte. Não era esta, porém, a última e suprema felicidade a que o homem podia aspirar. Era apenas temporal essa primeira felicidade, durante a qual o homem contrairia méritos para alcançar, a título de recompensa, o estado de felicidade último e completo. No jardim de delícias, no Éden terreno, o homem contrairia méritos para gozar da glória em companhia dos Anjos, para onde seria arrebatado por Deus, depois de algum tempo de prova e de méritos em seu primitivo estado.
Recomendou Deus a nossos primeiros pais a obediência, virtude que na criatura racional é, de certo modo, segundo Santo Agostinho, mãe e custódia de todas as virtudes, porque criou Deus a criatura racional de modo tal que lhe é útil e importante o estar sujeita, e muito pernicioso fazer sua própria vontade e não a d’Aquele que a criou.
Com efeito, diz o mesmo Santo Doutor que quando o homem vive segundo o homem e não segundo Deus torna-se semelhante ao demônio, porque nem os Anjos devem viver segundo os Anjos, mas segundo Deus, para que perseverem na verdade, que é fruto próprio de Deus.
Observa São Tomás que o homem em estado de inocência estava ao abrigo de toda revolta da carne contra o espírito, e que por conseguinte seu primeiro pecado não podia vir da procura desordenada de um bem sensível, mas da procura desordenada de um bem espiritual. Pecou inicialmente o homem pelo orgulho ao pretender, contra a vontade de seu Criador e instigado pela serpente, tornar-se semelhante a Deus pelo conhecimento do bem e do mal. “Sereis como deuses”, diz o tentador a Eva.
Inimizades entre os filhos do demônio e os filhos da Igreja
Eis aí de novo a tentação do liberalismo, a tentação do naturalismo, a tentação do panteísmo.
O pecado de Lúcifer, segundo São Tomás, foi o racionalismo, isto é, a revolta da natureza contra a ordem sobrenatural. Esse mesmo pecado vemos na queda de nossos primeiros pais.
E eis-nos, assim, diante da longa e porfiada guerra iniciada no Céu, e que na Terra, desde a origem dos tempos, a cidade dos ímpios move contra a cidade dos Santos, a revolta contra Deus e seu Verbo, que desde os primeiros dias do mundo fez se abrirem os abismos infernais; essa mesma revolta que hoje lança sobre o mundo o flagelo dos totalitarismos pagãos e que fará, no fim dos tempos, que sobre ele se elevem as torrentes do fogo vingador.
E é a essa luta sem tréguas que Deus se refere ao dizer à serpente que seduzira Eva: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre tua descendência e a sua; ela te esmagará a cabeça e em vão armar-lhe-ás ciladas ao calcanhar” (cf. Gn 3, 15). Deus anunciou que poria no futuro inimizades, estabelecidas sobrenaturalmente por Ele, entre uma Mulher acima de todas as outras e o demônio. Essa Mulher que assim surge nos desígnios da Providência é a Santíssima Virgem, preservada da mancha original em virtude dos méritos de seu Filho. Entre o demônio e Maria, Deus estabelece, assim, inimizades perpétuas, análogas à inimizade essencial que existe entre o demônio e o Esperado das Nações, o Filho de Deus feito Homem, concebido nas entranhas virginais de Maria por operação do Espírito Santo.
Pôs Deus também inimizades entre a descendência da Virgem Santíssima e a descendência do demônio, isto é, entre a massa dos ímpios, filhos do demônio e que se guiam pelos desejos desse pai execrando, no dizer de São João, e os filhos da Igreja, membros do Corpo Místico de Jesus Cristo. E em que pese a opinião dos falsos pacifistas, dos acomodatícios, haverá sempre essa luta; porque o demônio e os seus se esforçarão por perseguir a Mulher e sua descendência, a lhes armar ciladas ao calcanhar.
“Os filhos de Belial, diz o Bem-aventurado Grignion de Montfort2, os escravos de satanás, os amigos do mundo têm sempre perseguido até hoje e hão de perseguir mais que nunca aqueles e aquelas que pertencem à Santíssima Virgem, como Caim perseguiu outrora a seu irmão Abel, e Esaú a seu irmão Jacó, os quais são figuras dos réprobos e dos predestinados.”
(Extraído de O Legionário n. 698, 23/12/1945)
1) Jean-Jacques-Auguste Nicolas (*1807 – †1888). Escritor católico e magistrado francês.
2) Canonizado em 20 de julho de 1947.