A criança inocente sente o desejo de conhecer grandezas extraordinárias. Instintivamente ela faz um exercício de transcendência, pelo qual considera que todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador. O papel do Anjo é ajudar o espírito humano a ter cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, a Deus.
Para tratar da relação entre o estado de inocência, a ordem do universo e os Anjos, começo por mencionar uma dificuldade encontrada naquilo que costumamos chamar de exercício de transcendência.
Operação natural para a alma inocente
Até certo ponto, esse exercício dá a muitos a impressão de um ser um esforço hercúleo do pensamento para destacar-se das coisinhas corriqueiras a fim de elevar-se às realidades transcendentes. Mais ou menos como uma pessoa que ache atraente fazer alpinismo, porém não conseguiria passar a vida inteira subindo e descendo montanhas.
Os pesos de alma que tal dificuldade denuncia servem para contrastar melhor o que o estado de espírito da inocência tem de angélico com aquilo que se chama o “homem carnal”.
Eu sustento que esta operação, tão penosa depois das influências que degradam a alma – pecados, egoísmos, ingratidões, etc. –, é natural para a alma inocente. A primeira impostação da alma, embora concebida no pecado original e, portanto, com tendência para se resvalar, é o exercício de transcendência. Entretanto, há uma ação calculada para desviá-la, logo nos primeiros reflexos e levá-la para outro lado.
Esse exercício não seria feito propriamente de baixo para cima, peça por peça, mas de um modo diferente. Eu quero descrever para evitar ideias erradas.
Por exemplo, é justo, e respeito muito, que se faça uma distinção entre a introspecção e a extroversão. Mas isso é bom na medida em que não nos leve a perder de vista a seguinte verdade originária, a qual se encontra no estado da inocência: a alma vê a si mesma e o mundo fora com o mesmo olhar primeiro. Pode-se distinguir como alguém que, conversando com duas pessoas em uma sala, vê ambas sentadas em um sofá. Distingue-se uma da outra, mas essa distinção não impede que, com o mesmo olhar, esteja vendo as duas.
Assim também, na noção do ser entra o conhecimento do mundo exterior e do interior no mesmo olhar, e abarca a ideia de que eu sou e os outros são. Estas noções entram distintas, não separadas. Isto proporciona que o gáudio da inocência flua logo nos primeiros instantes da vida, e a transcendência se faça como um homem dotado de constituição física normal respira.
Ação angélica no indivíduo, na História
A criança inocente sente dentro de sua alma o desejo de grandezas extraordinárias a conhecer, de uma zona etérea e magnífica da realidade com a qual ela quer se relacionar e para a qual voa. Não sente o tempo inteiro, mas vai tomando conhecimento disso junto com o chocalho, a mamadeira, tudo misturado; entretanto, esse é o fundo de quadro que de vez em quando renasce e de algum modo está sempre presente, e à luz do qual a criança vai vendo as várias coisas com que toma contato.
Portanto, não é um pequeno filósofo, com as pernas trançadas no berço, mãozinha no queixo e pensando: cogito, ergo sum1. Absolutamente não é isso: a criança esperneia, tem vagidos, dorme fora de hora… Quando começa a tomar conhecimento, fá-lo nessa natural desordem: ora é o rosto da mãe, ora é o barulho da rua, ora o chocalho, ora o berço…
Não obstante, o fundo da própria alma que a criança conhece junto com as outras coisas vai orientando-a para o lado das grandezas e, de vez em quando, ela faz uma sucessão de imagens pela qual compara o que está conhecendo com aquilo para que sua alma tende. Assim, esses anseios da alma vão se robustecendo no mais alto e ela vai fazendo a transcendência de cima para baixo. É quase um exercício de descendência.
Mas, às vezes, a criança encontra coisas externas magníficas que despertam nela aquilo que a sua alma deseja. Por esta ação mútua, feita sem esforço no próprio viver e respirar, é que ela vai se tornando uma viajante, peregrina rumo às magnificências.
E aqui entra o lado angélico.
A meu ver, quando e na medida em que faz isto, o homem torna-se como que o irmão mais moço, o caçula do Anjo da Guarda que o toma, o ajuda nesta trajetória mais importante e delicada do que todas as outras. E assim a alma vai caminhando nessa direção com uma regularidade e naturalidade inteiras porque esse é o viver dela. Ela poderá ter, em certos momentos, tentações, são as provas do caminho. No entanto, o mais importante não são as provas e sim o traçado da estrada. As provas, com a ajuda de Nossa Senhora, serão vencidas uma a uma quando se apresentarem, mas o traçado do caminho é a grande questão, e este corre por aí, de tal maneira que cem outras faculdades da alma afloram sob essa luz.
Também a ação angélica na História, embora seja extrínseca, não exclui afinidades, inter-relacionamentos possantes. Admitir a ação angélica como tão extrínseca que cada uma é quase como um milagre de Lourdes, o qual ocorre de vez em quando deixando as pessoas pasmas, também é errado. Por certo, há intervenções angélicas muito palpáveis, visíveis, notórias que são assim, mas tenho a impressão de que a ação real é uma espécie de quase atuação de irmão a irmão, porque o Anjo está junto de nós e nós juntos dele, ele se nos comunica e nós nos comunicamos a ele.
Interpenetração entre o mundo exterior e o interior…
Há em nós uma relação entre a nossa alma e a ação externa que praticamos. De maneira que, quando nossa alma deliberou por um determinado ato, ela gradua todas as suas energias, suas disposições para a efetivação daquela ação; entretanto a qualidade do ato – não me refiro apenas à qualidade moral, mas também à metafísica – de algum modo se reflete sobre a alma, porque o homem, ao praticar a ação, põe-se numa certa clave e fica passageiramente com esses reflexos. Isso faz parte dessa interpenetração entre o mundo exterior e o interior.
Julgo que nos Anjos isso é muito mais vigoroso, e que não só eles são chamados para ministérios especialmente adequados à natureza de cada um, mas ao realizarem as várias ações do seu ministério todos eles refulgem e vibram – se pudéssemos dizer “vibrar” de um ser espiritual – de um determinado modo.
De maneira que quando um Anjo tem aquele refulgir, todos os espíritos angélicos que estão participando com ele daquela ação possuem isso entre si, em coro; e depois os outros do Céu recebem, há um reluzir recíproco.
Também uma pessoa devota de um determinado Anjo recebe essa refulgência ou ao menos pode receber. Mas como o Anjo é muito mais possante do que o homem, ele comunica a jorros o que nós transmitimos a conta-gotas; a natureza dele se enche com as graças esplêndidas que ele recebe e se comunicam a nós de cheio.
A inocência leva a ter comunhão com os Anjos. E o estado normal do batizado é ter esta comunhão, embora subconsciente.
…o natural e o sobrenatural
Entre o sobrenatural e o angélico há uma distinção. Um dos modos de a graça agir é através dos Anjos, e a pessoa pode ter um certo discernimento do sobrenatural em si sem perceber que é angélico. No mais das vezes, as coisas se interpenetram de tal maneira que não creio que uma pessoa consiga distinguir.
Aliás, devemos considerar que o natural e o sobrenatural não formam gavetas no ser humano. São campos distintos para a cogitação científica do homem; em quem tem ambas as coisas psicologicamente elas não formam gavetas, mas se interpenetram a todo momento como o sangue na carne.
Sou propenso a achar – salvo ensinamento em sentido contrário da Igreja – que se os homens tiverem noção clara dessa interpenetração angélica, e esta for uma verdade bem realçada por ocasião do Reino de Maria, haverá uma grande elevação, e a ideia desta ação dos Anjos na inocência produzirá um fulgor e um esplendor incalculáveis.
Uma pergunta que se põe é a seguinte: Se o universo criado e ordenado por Deus é tão perfeito, por que existe Anjo da Guarda? Este evita, de fato, coisas ruins que aconteceriam e, portanto, o universo é imperfeito?
Alguém dirá: “Tem a imperfeição humana.” Entretanto é preciso andar com cuidado. Nossa Senhora tinha milhões de Anjos da Guarda. Para quê, se Ela fazia tudo perfeito?
Então, a perfeição específica do universo não é a de uma máquina, como o comum das pessoas imagina. Tenho a impressão de que o universo não funcionaria sem Anjos da Guarda e, portanto, eles não são superfluidades. Por certo, intercorrem muitos fatores que não conhecemos, os quais poderiam perturbar a ordem do universo, e que os Anjos da Guarda evitam. Ademais, eles não apenas evitam o mal, mas promovem o bem.
Estalactite e estalagmite
Contudo, a respeito do papel do Anjo da Guarda no universo e junto às almas, há um elemento que me parece importante. Para o normal progresso da inocência são necessárias duas circunstâncias: de um lado, o isolamento interior, de outro, a comunicação.
Na medida em que a alma é fiel a essa impostação primeira, é fácil para ela fazer exercícios de transcendência, talvez à maneira de estalactite e estalagmite, ou seja, a pessoa vai relacionando as coisas que vê com o que vem de cima, encantando-se e se endireitando em função disso, e notando na coisa inferior um símile do que está em cima.
Por exemplo, antigamente era normal um menino gostar de espada. Gostava por ver nela um modo de dar corpo a uma porção de impressões, desejos, ideias, estados de espírito que vibravam na sua inocência, mas que ele precisava de algo material para simbolizar.
Isso corresponde a uma disposição de alma vinda do olhar conjunto que a pessoa tem sobre si e o universo; olhar inspirado pelo senso do ser e por meio do qual, na linha metafísica e sobrenatural, a alma é apetente de grandes coisas e nelas cogita.
No menino cuja alma esteja nessas condições e a quem tudo quanto se refira ao heroísmo diz muito, a espada desencadeia o processo e a relação simbólica que dá corpo àquilo que ainda não atingira toda a maturação humana porque faltava um símbolo. Ao encontrar o símbolo, o processo mental e da inocência dele se encerra com gáudio.
Assim, a criança vai vendo uma série de coisas de cima para baixo, porque o analogado primário2 do símbolo existe vivo no espírito dela, por onde tende a ver de modo simbólico uma quantidade incontável de criaturas.
Seria um movimento natural do senso do ser, portanto metafísico, no qual a graça penetra e atua muitas vezes pelo Anjo. A semelhança do Anjo com o seu protegido, a afinidade existente entre eles desempenha o seu papel na moção que o Anjo exerce sobre o homem.
Mesmo porque, sendo o homem sociável por natureza, o é com os Anjos também. O instinto de sociabilidade seria incompleto se o considerássemos existente apenas entre os homens. Dessa analogia entre o Anjo da Guarda e seu custodiado, este instinto toma misteriosamente um movimento do qual Deus se serve para a realização de seus planos.
Reino de Maria e devoção aos Anjos
Estou tratando de um processo que conheço melhor em mim do que num outro. Por isso, ao falar do processo humano, tenho que dar o meu depoimento. Sustento que esse processo se dá com todos os homens, uns mais outros menos, mas todos têm meios e graças para isso. Aliás, a própria noção do Reino de Maria vem da retidão desse processo em todos os homens, criando as condições para esse Reino.
Nesta perspectiva, o acender o amor a Deus na alma humana não pode ser concebido sem a assistência dos Anjos. O papel próprio do Anjo é ajudar o espírito humano a ter aquelas cogitações que o elevem ao mais alto dos píncaros, ou seja, Deus.
Então, o exercício de transcendência, pelo qual todas as criaturas constituem meios de chegar até o Criador e, portanto, a visualização do universo enquanto caminho para Deus, parece impossível sem o ministério dos Anjos.
Há uma ação santificante da Igreja Católica que é o vaso espiritual no qual se derrama, para as almas subirem até Deus, a ação angélica exercida por cima do Magistério eclesiástico, nunca em desacordo com ele, pois este é infalível. Assim, com uma vida que o mero ensino não tem, a graça faz germinar no homem os impulsos para a elevação suprema. Portanto, a missão santificante da Igreja, que nos une a Deus através dos sacramentos, acende em nós o amor a Deus com o ministério dos Anjos.
Estas verdades suporiam para o Reino de Maria uma intensidade extremamente grande da devoção aos Anjos.
(Extraído de conferência de 27/11/1980)
1) Do latim: penso, logo existo.
2) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.