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Realidade inevitável da morte

Nada tão incerto para o homem quanto o dia de sua morte; nada mais certo para ele do que a certeza de que morrerá. Na intenção de beneficiar seus filhos espirituais e conferir-lhes uma impostação sobrenatural acerca do assunto, Dr. Plinio expõe algumas verdades e fatos que envolvem este acontecimento misterioso e temível.

Qual o proveito de se fazer uma reflexão sobre a morte? A utilidade, muitas pessoas negarão. Dirão que considerar tal assunto pode tornar os nervos tensos, produzir desequilíbrio nas almas, trazer tristeza e desassossego. E que, portanto, é inteiramente desaconselhável, ainda mais para pessoas jovens. Será bem verdade isto?

Ilusão de se obter uma felicidade terrena

Se assim o fosse, Deus não seria Deus ou, ao menos, teria cometido um erro. Porque Ele – que com sabedoria perfeita criou o universo de tal modo que o homem não se cansa de estudá-lo e de se encantar por ele –, quis colocar sinais da morte por toda a parte. Pôs a doença, a luta, o sofrimento.

Flávio Lourenço
Anjo da Guarda – Catedral de Prato, Itália

Em consequência do pecado original, o homem se depara com toda sorte de dificuldades. A todo momento ouvimos falar de pessoas que se suicidam, que preferem atirarse no abismo sombrio da morte a aguentar a vida, de tal maneira ela lhes é pesada.

A existência humana se apresenta cheia de dor, tendendo, de fato, para a morte. Uma vida difícil e dura, a respeito da qual a educação moderna mente ao jovem e depois ao adulto e até ao velho, tanto quanto ela pode.

O homem criado na atmosfera moderna é posto na ilusão de que a felicidade nesta Terra é uma coisa obtenível: cria-se o mito do indivíduo jeitoso e sortudo, que nasceu bem constituído, bem-dotado, que consegue por meio de jeitinhos ou jeitões o necessário para se tornar feliz.

É a classe dos homens “vacinados” contra o infortúnio. A doença e a morte não os colhem, a pobreza não lhes arma ciladas; a eles a calúnia não dá punhaladas pelas costas, a incompreensão dos outros não os obriga a andar jardas dentro do isolamento e da melancolia. Nada lhes acontecerá, eles serão uns felizes.

No remotíssimo tempo de minha infância, toda a atmosfera que cercava uma criança dava-lhe a ideia de um caminho para a felicidade: os quartos infantis eram empapelados com cores alegres, as camas tinham um laqueado claro e as mesinhas eram cobertas com tampos de vidro, por cima de tecidos ornados com flores e passarinhos. Havia quadrinhos representando meninos brincando numa natureza maravilhosa, revistas mostrando automóveis, aviões, castelos, passeios e diversões, e tudo parecia dizer à criança: “Serás feliz, serás feliz, serás feliz…!”

Em certo momento, porém, começaram as surpresas desagradáveis. E essas foram caindo, na minha infância “rósea e azul-claro”, como tiros de bombarda!

Decreto da morte na ponta do termômetro

Por ocasião de uma doença que me causava febres altas tive de ficar de cama, e li um livrinho muito ilustrado e bonitinho, contando a história de um menino de minha idade que havia morrido. Um anjo tomava a alma dele no hospital e levava-a para o lugar onde ela ficaria para sempre: um céu meio pagão e estranho, e não o Céu definidamente verdadeiro, anunciado pela Igreja Católica.

Esse menino, levado pelo anjo, sobrevoava a cidadezinha onde tinha nascido e a casa onde havia morado; via a própria mãe, o quarto com os brinquedos e um pequeno tanque com um patinho que havia sido dele; o cachorrinho do vizinho, o carrinho do padeiro e a árvore onde ele brincava, da qual ainda pendiam algumas frutas que ele não tivera tempo de colher… Enfim, todas as coisas da vida, das quais ele se destacava, iam ficando cada vez mais longe e ele partia para o desconhecido.

A minha doença era tão insignificante que mamãe me deixou ler esse livro durante a convalescença.

Mas eu tinha uma noção infantil de que, à medida que a febre subisse, ela poderia chegar a um ponto em que eu morreria. Então, eu me sentia a poucos passos da morte e observava o termômetro para ver se chegava a hora. Para mim, o decreto da morte estava na ponta do termômetro… São sustos da infância. Quando a febre subia a 38 ou 39, eu, pensando que as pessoas não aguentam mais de 41 graus, dizia: “Estou a dois passos, a dois graus… Vai acontecer comigo o que se deu com aquele menino! E se algum Anjo me leva, começa a sobrevoar a Alameda Barão de Limeira e eu vejo isto e aquilo…?”

Isso para mim era lancinante! Antes de tudo pela ideia de deixar mamãe. Se me dissessem que ela iria comigo para o Céu, eu nem olhava mais para baixo, mas… e se ela não fosse? Como me arranjaria no Céu sem ela? A ideia da morte me causava medo.

Edgard Martins (CC3.0)
Clube de Regatas Tietê no início do século XX

Era uma catástrofe e um desastre. Eu tinha enorme vontade de não morrer e ficava muito angustiado pensando no tal livrinho, mas sem a menor revolta ou inconformidade, pois pensava: “É um direito de Deus, pois eu sou uma pessoa insignificante, da qual Ele pode dispor como quiser! Isso está na ordem das coisas e, se Ele deseja que assim aconteça, tenho de me adaptar de qualquer maneira.”

A febre continuava altíssima e eu me perguntava: “Então, vou para junto de Deus? É o que não sei… Sou bastante bom para ser acolhido por Ele? Como é isto? Para onde vou? Que apuro! Será que essa febre não desce?” Em certo momento a febre baixou. Esqueci-me do menino da história e a ideia da morte ficou de lado.

Problemas que as crianças às vezes se põem: “Vale a pena viver, vale a pena ser como esses que estão aí? Por que viver e atravessar tudo isto? Não valeria a pena morrer?” Por esses problemas todos passam. Começa a vida e ela é uma batalha!

Menino afogado no Rio Tietê

Havia em São Paulo um rapaz de quinze ou dezesseis anos, a quem eu conhecia. Sendo bastante perito em natação, pertencia ao Clube Tietê, localizado à beira do rio de mesmo nome, o qual era muito limpo naqueles remotos tempos.

Certo dia, uma pessoa veio me dar uma notícia:

— Você sabe que fulano morreu?

Perguntei:

— Mas, como?

— Ele estava em perfeita saúde e, no sábado à tarde, foi nadar no Clube Tietê. Subiu a um trampolim, brincando com os amigos, lançou-se de cima e afundou diretamente. Todos pensaram que havia mergulhado em boa forma e, como demorava em sair, houve brincadeiras gerais: “Que fôlego ele tem!”

Mas, ao cabo de alguns minutos, uma vez que não aparecia, avisaram a direção do clube. Mandaram então nadadores procurarem pelo rapaz, e logo ele foi trazido à tona: era um cadáver.

Talvez tenha batido com a cabeça no fundo do rio. A família notou que ele tardava a chegar para o jantar e, de repente, recebeu um telefonema: ele morreu! O corpo foi levado a um necrotério para ser examinado e, assim, verificar a causa da sua morte.

Exclamei:

— Então, os jovens também morrem!

— Oh, sim! Como qualquer um…

Meu interlocutor, pessoa de bastante idade, deu um bocejo e um olhar malicioso, como quem dizia: “Você pensa que a morte não o atingirá? Ela está mais perto de mim, mas você também será alcançado pelas garras dela, de um momento para outro…”

Pensei: “A ideia de que eu posso morrer a qualquer instante consola esse homem, o qual sempre afirma querer-me bem… Percebo que ele tem alegria em olhar para mim e notar que, na minha curta idade, já estou sentindo o roçar dos dedos da morte!”

Flávio Lourenço
Os afogados – Museu de Belas Artes de Arras, França

Por relações de sociedade, tive de comparecer ao velório. Vi o jovem esticado, com o queixo preso por um pano e os pés amarrados por uma fita. O lustre da sala estava coberto com um crepe preto e a mãe dele chorava. Refleti: “E se isso acontecesse comigo…? Se fosse minha mãe a que estivesse aqui, chorando? Eu posso morrer!”

Morte de um amigo

Pouco tempo depois, num período de férias, recebi a notícia de que um outro menino morrera de modo trágico.

Eu estava brincando sozinho no jardim quando vi minha mãe descer as escadas externas da casa e dirigir-se para mim com olhar de piedade, bondade e muita pena, querendo me agradar especialmente. Fui logo para junto dela e, então, com o cuidado de quem iria contar-me algo que poderia me contristar, disse-me:

— Meu filho, você vai passar por uma situação que ainda não conhece.

Permaneci em silêncio e ela continuou:

— Sabe quem está mal à morte?

Pensei tratar-se de alguém da geração dela e disse, com certa indiferença:

— Não.

— Lembra-se de tal menino assim, seu amigo?

Era um colega do São Luís, de minha idade, aproximadamente.

Respondi:

— Lembro-me.

— Ele está desenganado pelos médicos e vai morrer.

— Mas, como? O que aconteceu?

— Ele brincava em casa, com vários amigos entre os quais um primo, um tanto desequilibrado. A brincadeira se transformou em briga e esse primo, tomando uma tesourinha de unhas que encontrara sobre um móvel, investiu contra ele e cravou-lhe uma das pontas perto da arcada de um dos olhos. Apesar de ser muito profundo, esse ferimento não seria nada, mas acontece que, evidentemente, a tesoura não estava desinfetada e o resultado foi uma infecção pavorosa, cujo alastramento os remédios não puderam conter. Você reze por ele.

Naquele tempo os antibióticos ainda não estavam tão desenvolvidos. Os médicos davam o menino por perdido, pois o organismo dele estava reagindo mal, com febre alta e delírios…

Mamãe também me disse:

— É a primeira vez que morre uma pessoa próxima de você. Então, é preciso que se prepare para sentir os reflexos da morte.

Arquivo Revista

Ela me falava com muito carinho, mas, naturalmente, a ideia da morte me impressionou e vieram-me ao espírito as seguintes perguntas: “E eu, que por todo lugar encontro antipatias, não posso de repente receber uma tesourada em cada olho? O que pode me acontecer? Morrer! Que horror! A morte pode me agarrar de um momento para outro! E aonde me levará?!”

Quando nos esquecemos da morte, de vez em quando ela faz soar uma clarinada aos nossos ouvidos. Clarinada fúnebre que parece mais um riso de caveira do que um toque de clarim, como quem diz: “Eu estou aqui. Se eu não te pegar agora, fica conhecendo como é minha cara e como é o meu riso, porque mais tarde eu te pego. Um dia… ahahah!… eu te pegarei!”

É incontestável! Um dia ela nos pegará.

Na doença de crupe, primeira visita da morte

Eu recebi, por enquanto, três visitas da morte.

Na primeira eu tinha nove, dez anos, e ela ainda não visitara alguém mais próximo para eu ver outrem falecer; ela visitou-me a mim. Tive, então, uma primeira ideia de como é o estado do homem que vai morrer.

Certa manhã, lembro-me de ter despertado fraquíssimo, quase sem forças para sentar-me na cama. Imediatamente chamei mamãe e, quando ela veio, eu disse com a voz embargada:

— Meu bem, não me levanto agora, pois estou me sentindo muito mal.

— O que você sente, meu filho?

— Uma dor de garganta horrorosa.

Ela fez-me abrir a boca e notou uma inflamação medonha em minha garganta, mas não me disse nada. Apenas mandou alguém me lavar e conduzir-me de volta à cama. Uma criada veio depois trazer-me o café da manhã, pois, graças a Deus, o apetite nunca me faltou e, mesmo nessa situação, para comer eu estava a postos! Mas sentia-me tão mal que quase me arrastava… Mamãe, então, fez trazer o brinquedo das “grandes circunstâncias” para me distrair e colocou-o sobre a minha cama: a grande caixa representando uma aldeia francesa para ser composta pelas crianças. E disse:

— Vá brincando aqui enquanto eu chamo o médico.

Sentei-me e já não estava pensando muito na doença, embora eu respirasse miseravelmente mal. Em determinado momento, tive a sensação de um vazio que me invadia; percebi estar, de repente, privado da força necessária para permanecer sentado e tentei de todo jeito segurar-me em algo para não cair de costas e não me entregar à doença. Agarrei-me às grades da cama nos dois lados, julgando poder resistir, mas senti que os meus braços também se deixavam tomar por esse misterioso vazio. Minhas mãos se abriram e eu caí sobre o travesseiro, gritando:

— Mamãe! Mamãe!

Arquivo Revista

Divulgação (CC3.0)
Dr. Antonio Murtinho de Sousa Nobre

Ela veio correndo e daí a pouco estava o Dr. Murtinho Nobre em meu quarto. Examinou-me, não comentou nada diante de mim, saiu do quarto com mamãe e explicou:

— Dona Lucilia, o Plinio está com crupe – ou angina diftérica – e pode morrer…

Tratava-se de uma infecção frequente em crianças, a qual faz a garganta inchar de tal maneira que acaba obstruindo a respiração e o doente morre por asfixia. Minha mãe ficou transida de susto! A sua primeira providência foi manter-me deitado na cama por tempo indefinido e a segunda consistiu em proibir as outras crianças da família de entrarem no meu quarto, pois a doença era contagiosa e ameaçava propagar-se entre elas.

Mamãe poderia perfeitamente contratar uma enfermeira para tratar de mim, pois, sendo muito doente do fígado, se ela contraísse a crupe certamente morreria; mas ela nem quis saber de enfermeira, do começo até o fim do tratamento!

Eu ouvi no quarto contíguo uma discussão muito viva entre mamãe e minhas tias, a respeito do meu estado de saúde. Naquele tempo as famílias eram muito unidas e, quando alguém adoecia, compareciam as irmãs, as cunhadas e outros membros da família. Uma das minhas tias tinha um cunhado – que, aliás, morreu quando eu era ainda pequeno – professor na Faculdade de Medicina e ótimo otorrino. Ela então disse:

— Olhe, a opinião de meu cunhado é que o Plinio tem de ser operado!

Mamãe, que não desejava a operação, perguntou:

— Por quê?

— Esse Murtinho é um charlatão, pois a homeopatia é charlatanismo e seria ridículo querer curar o Plinio por meio dela. Se você não chamar o meu cunhado, o seu menino vai morrer!

— Vou ver. Agradeça ao seu cunhado pela opinião e pela cortesia.

Ouvindo a conversa delas, eu pensava: “Não quero essa operação dolorida, mas… e se eu morrer de repente? Não vale mais a pena aguentar a dor? Vamos ver o que eles resolvem…”

E permanecia na expectativa de ver entrar alguém com um boticão para me cortar a garganta… Mamãe hesitou, pois percebeu o fundamento do raciocínio da minha tia: para tratar uma dorzinha de garganta a homeopatia estava bem, mas diante de uma doença violentíssima, que podia matar-me de uma hora para outra, não parecia melhor chamar um médico que resolvesse o caso pela cirurgia? Certamente rezou e depois telefonou ao médico, dizendo:

— Dr. Murtinho, eu tenho muito medo e confesso com franqueza: embora eu deposite no senhor e na homeopatia a confiança que o senhor conhece, está em jogo a vida de meu filho. Estou sofrendo toda a pressão da família para chamar o médico alopata. O que o senhor me diz a esse respeito?

— A senhora dê ao Plinio tais medicamentos e não se assuste: a febre ainda vai subir e, se o remédio fizer efeito, ele, em certo momento, expelirá da garganta uma membrana infeccionada e estará curado. Pouco antes das três horas da tarde, a senhora esteja com uma toalha no colo para receber essa membrana.

Depois mande imediatamente uma das criadas levar esse pano à horta e enterrá-lo bem fundo. É necessário ter o buraco já pronto, pois trata-se de algo muito contagioso e, se a senhora o puser em qualquer outro lugar da casa, contaminará alguém! Se até as três horas ele não expelir a membrana, a senhora pode chamar o médico alopata que desejar. Este fará uma operação doloridíssima e perigosa na garganta do menino e não é garantido que ele se salve. A senhora é mãe dele e fará o que desejar. Eu lhe sugiro esperar até essa hora.

Ela, então, mandou abrir uma espécie de pequeno “túmulo” para esse efeito no quintal da casa, entre as couves e os pés de milho. Tudo isso aconteceu de manhã; eu não ouvira a conversa, mas apenas percebi que mamãe resolvera tratar-me pela homeopatia. Ela entrava no quarto andando na ponta dos pés, com um sorriso de afeto, tendo um copo na mão e dizendo:

— Meu filhinho, chegou a hora de tomar o remédio.

E começava, então, a dar-me certos medicamentos em gotinhas e pequenas pastilhas, um dos quais, recordo, chamado tarantula cubensis – ao que parece, extraído de alguma aranha – e eu pensava: “Mas isto aqui é tão insignificante que nem é remédio! Eu vou piorar cada vez mais!” Entretanto, como eu depositava em mamãe uma confiança total, concluía: “Bom, se ela quer, vou tomá-lo!”

Ela sabia que eu sentia dor ao ingerir, mas fazia aquilo entrar na minha garganta de tal modo que a suavidade de seu trato compensava o meu sofrimento físico. Sempre observador, apesar da febre, da dificuldade de engolir e da fraqueza levada até a evanescência, eu não deixava de sentir a atitude dela: a benquerença, a compaixão e a pena, pois minha aflição era assumida por ela inteiramente, dando-me a entender o seguinte: “Vamos atravessar isto juntos.” Ela sofreu muito mais do que eu, na previsão do que poderia acontecer.

Tanto quanto isso possa ser explícito na mente de uma criança, em que as analogias são ao mesmo tempo vivazes e imprecisas, eu pensava confusamente: “Ela é para mim o que essa água fresca está sendo para a minha doença: um refrigério. Eu me sinto inteiramente refrigerado na companhia dela. Se mamãe for a minha advogada no juízo de Deus, estou arranjado!”

Terrível sensação de morte

O médico me encorajava a comer e a dormir o mais possível, para meu organismo resistir; mas eu acordei da sesta pior do que nunca! Comecei então a mostrar os sintomas de uma situação grave: não tinha coragem de me mexer, não havia posição em que me acomodasse e, às vezes, nem sabia mais quem eu era… Talvez fossem os temíveis 41 graus daquela febre que se apoderava de mim.

Aproximadamente às três horas da tarde, perdi o contato com o mundo exterior e parecia-me haver caído no caos. Então tive a sensação da morte: comecei a espernear pela impossibilidade de respirar, com estertores em todo o corpo e tendo a ideia de que o fim havia chegado. Quis falar e gritar por mamãe, mas não consegui. Ela, apavorada, permanecia perto de mim.

Em certo momento, dei sinais de querer expelir alguma coisa e ejetei, então, a tal membrana numa toalha de rosto colocada sobre o colo de mamãe. Ela ficou contentíssima!

A criada jogou a toalha no local indicado e cobriu-a com terra, para os micróbios lá se arranjarem como pudessem! Graças a Deus, nem mamãe nem ela foram contagiadas em nada.

Depois de ter ajudado a me recompor um tanto, mamãe telefonou ao médico:

— Dr. Murtinho!

— É Dona Lucilia, não é?

— Sim!

— Não precisa dizer mais nada, pois a sua voz alegre já me diz tudo: a senhora está contente porque o Plinio expeliu a membrana. Agora não há mais perigo. Conserve o menino na cama por mais dois ou três dias, vá alimentando-o e o assunto está resolvido.

Muito lentamente, eu senti a vida voltando: olhava para os bordos da cama, comecei a me mover, mas ainda não conseguia me sentar. Nem de longe pensava na caixa com a minha aldeia francesa! Como era fundo o “poço” no qual eu havia entrado!

Arquivo Revista
Dr. Plinio na década de 1960

Que coisa terrível! À noite, já me encontrava melhor e muito alegre, pois não iria daquela vez para o Céu; pelo contrário, continuava com mamãe! No terceiro dia, já estava restabelecido e em liberdade.

Quadro grave, crise de diabetes

Joguei-me na batalha da vida e não pensei mais na possibilidade de morrer. Quando eu tinha 59 anos, entretanto, a morte visitou-me mais uma vez…

Era o ano de 1967. Eu fui sentindo a desordem invadir meu organismo, a febre que subia, mas sentia também certa resistência; dentro de mim estava uma luta intensa… os médicos examinaram-me e diagnosticaram imediatamente um quadro grave de diabetes, com a glicose cinco vezes acima do normal.

Resolveram chamar um cirurgião de certa fama, perito em pé diabético: Dr. Abid Bouabci. Depois de examinar-me, ele me disse:

— Doutor Plinio, é necessidade urgente uma intervenção cirúrgica no hospital.

E eu estava tão enfraquecido e tão desordenado, que eu não imaginei o que é que pudesse ser. E disse:

— Bem, então vamos ao hospital.

Dirigi-me ao Hospital Sírio Libanês, fui conduzido à sala de operações; dormi, e quando acordei, estava no quarto, sentindo-me aliviado, mas ao mesmo tempo percebendo que a situação era séria e o resultado incerto. A cada momento passava um médico ou um enfermeiro para certificar como eu estava. Só dias depois soube do ocorrido: tinham amputado quatro artelhos.

Com o passar do tempo recuperei-me, estou vivo e desde então tenho trabalhado bem. No entanto, sei que depois da operação uma parte de meu ser já caiu na morte; vejo também que pelo progresso da idade a morte acerca-se de mim. Assim é a vida!

Como uma ave de rapina…

No início do ano de 1975, depois de ter uma última conversa com um membro do Grupo, tomei um lindo automóvel Mercedes-Benz de cor bordeaux.

Sentei-me no banco dianteiro e tive um estranho pressentimento: “De repente há uma trombada e eu morro por estar aqui na frente… Vou dormir e, quem sabe se acordarei ferido ou, talvez, diante do juízo de Deus?”

Mas depois pensei: “Não se deve dar importância a essas impressões!”

Sentei-me, rezei e adormeci. Quando acordei, estava num hospital, depois de um terrível desastre. Muitos veículos passaram pelo local do acidente, mas ninguém se ofereceu para socorrer-me. Eu estava privado dos sentidos, com um trauma medonho na cabeça, o qual privava-me da noção íntegra e clara da realidade; não sabia o que tinha acontecido, padecia tremendas dores, sentia-me atordoado, fora de mim!

Soube depois que a uma das pessoas que passaram por lá pediu-se ajuda, e ela fez o comentário – quero supor que não me conhecia: “Deixem este velhinho. Ele já está praticamente morto e vocês estão tomando trabalho para salvá-lo. Chamem uma empresa funerária, que ela resolve o caso!”

Arquivo Revista
Automóvel de Dr. Plinio após o desastre em 3 de fevereiro de 1975

Arquivo Revista
Dr. Plinio durante o período de sua convalescença, após o desastre de 3 de fevereiro de 1975

Uma das mais antigas recordações que tenho desse fato é de ser transportado do Hospital de Jundiaí ao Hospital Santa Catarina, em São Paulo.

É terrível a impressão que temos quando nos esfregamos na morte. Ela desaba sobre nós inopinadamente, como um abutre e, de repente, nos colhe! É como uma ave de rapina que começa a esvoaçar e lentamente vem descendo sobre nós, cuja bicada nos liquida. Nós a vemos aproximar-se… “morremos” mil vezes com medo de morrer, e a “ave” sobe de novo. Quando volta a baixar, não sabemos o que escolher: que ela acabe com esta tortura ou sobrevoe novamente e tenhamos mais uns meses, um ano de vida… É este o tormento em que se encontra o homem nesta Terra.

Única certeza: todos morreremos

Eu quis fazer essas descrições porque sei que muitos rasparam pela morte; perderam pai, mãe, irmão, parentes. Quase todos já perderam colegas, amigos. Alguns viram gente morta na rua; outros terão estado mal à morte e ela quiçá terá passado seus “dedos” frios pela fronte. Por mais jovens que sejam, isto é assim!

Ora, por que Deus dispôs que a morte se nos apresentasse deste modo? Teria Ele feito apenas para nos castigar? Mas castigar pelo quê?

Tomemos uma criança de seus seis, sete, oito, dez anos, como era eu quando tive crupe. Tenho a certeza de não haver cometido nenhum pecado mortal até então. Assim, a troco do que um castigo daqueles?

Há uma resposta que satisfaz completamente e tem sua raiz na própria natureza humana. Todos os homens morrem. Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus, morreu. Nossa Senhora – a Virgem Imaculada! – concebida sem pecado original, quis passar pelas dores da morte. Por que então eu não hei de morrer? Se há algo de que estou certo é que morrerei.

Alguém dirá: “Mas Elias, que foi arrebatado num carro de fogo, não escapou da morte?” Não! Ele vive há três mil anos, presumivelmente ao lado de Enoc. No entanto, ele há de morrer. Apenas a espera dele é mais longa do que a nossa, mas muito mais feliz, porque ele está confirmado em graça e, morrendo, tem a certeza apaziguadora de ir para o Céu! Mas, aquela sombra o acompanha: um dia morrerá!

A morte, maior moralizadora para o homem

Todos os homens sabem que podem vir a falecer a qualquer mo mento, muitos conhecem pela Doutrina Católica e acreditam que podem condenar-se ao Inferno e, apesar disso, não mudam de vida. Quanta gente poderia converter-se pensando na morte!

São Francisco de Borja era um Grande de Espanha. Ele era nobre, Duque de Gândia, lugar no qual era considerado como um pequeno rei. Era um personagem muito importante da corte do Imperador Carlos V, Rei da Espanha, e tinha muito boa amizade com a Imperatriz Isabel, primeira-dama da Cristandade como o Imperador do Sacro Império Romano Alemão era o primeiro gentil-homem da Cristandade.

Flávio Lourenço
O avaro e a morte – Museu Quiñones de León, Vigo, Espanha

De repente, São Francisco recebe a notícia de que a Imperatriz havia morrido. Ele, como fidalgo, tinha funções a desempenhar nas exéquias; pôs-se de luto e foi prestar homenagens à falecida.

Vendo a Imperatriz deitada, morta, percebeu a impotência daquela a quem ele, há pouco, fazia reverências no fastígio da grandeza. Resultado, ele compreendeu de tal maneira que todas as coisas do mundo eram vãs, que se converteu, abandonou tudo e entrou para a Companhia de Jesus, sendo um dos grandes Santos desta Ordem. Ele foi o terceiro sucessor de Santo Inácio, tão completa foi a sua conversão.

Esse é o bem que a morte fez a tantos homens ao longo da História.

Deus quis tornar presentes para nós algumas grandes verdades. Umas são as que nos enchem de gáudio: o Céu, a visão de Deus. Outras são verdades terríveis que nos enchem de pânico: a morte e o Inferno.

Flávio Lourenço
Inferno – Museus Reais de Belas Artes, Bruxelas

A maior parte dos homens não são sensíveis à pregação das verdades celestes, às grandes esperanças que nos aguardam; eles são sensíveis ao terror da morte, do Inferno. O número de almas condenadas seria talvez muito maior se não fosse o espetáculo da morte. A morte é a maior moralizadora.

Quem tem a certeza de que dormirá hoje no horário de costume? Qualquer coisa pode suceder: está andando de automóvel para casa, é um disparo de um revólver na mão de um sujeito qualquer que o atinge, e ele cai morto, e não teve tempo de nada.

Como a morte faz bem! Como ela é amiga e como conduz para a salvação!

“Um beijo vale bem o Inferno!”

Há homens que, paradoxalmente, perderam o medo da morte. Pecam livremente. Até quando estão desenganados pelos médicos, ainda enfrentam a morte pecando e blasfemando. Por quê? São filhos do Inferno!

Santo Afonso Maria de Ligório conta, num de seus livros, um caso acontecido nas bandas onde ele viveu, pelo Sul da Itália, o antigo Reino de Nápoles.

Um padre foi atender um homem que estava em articulo mortis. Conforme manda a Igreja, antes de o sacerdote dar a absolvição, exigiu do moribundo que despedisse sua concubina e que esta saísse da casa com tudo quanto lhe pertencesse. Ela, obrigada, saiu, e o padre, pôde absolvê-lo.

Ora, o próprio padre contou que o moribundo não encontrou nada melhor para fazer do que mandar chamar novamente a concubina para casa. O homem, agonizando, ao vê-la, chamou-a : “Venha cá e me dê um beijo! Um beijo vale bem o Inferno!”

É assim a maldade humana… Por isso, faz um bem extraordinário pensar a respeito dessas verdades.

“Clericorum sors subitanea mors”

Assisti a muitas mortes e tive a preocupação de aproveitá-las para minha vida espiritual. Lembrem-se também das mortes que presenciaram. E quando a tentação lhes induzir ao pecado, pensem: “Eu posso cair morto de um momento para outro.”

Ninguém morre sem que tenha sido da vontade de Deus. Nosso Senhor disse no Evangelho que nenhum pássaro morre, nem um fio de cabelo cai de nossa cabeça, sem que Ele o tenha consentido. Se com um mísero passarinho é assim, tanto mais com um homem.

Nós não morreremos a não ser quando Deus determinar, no momento em que Ele julgue que nossas contas estão encerradas.

Às vezes, quando uma pessoa muito eleita peca, Deus pode intervir de um momento para outro. Acabou-se! Tira-lhe a vida repentinamente como quem diz: “Já fiz tanto, tanto, tanto por ti… tu pecaste de novo. Encerradas as contas! Vem prestá-las aqui!”

E o homem, que é tão fraco, morre por uma causa mínima. De repente, ele está passeando no jardim, uma aranha o pica. Ele está picado de morte. O médico não percebe, trata de outra coisa; dali a 24 horas ele está na cova.

Assim é o homem… E assim são, às vezes, as contas de Deus.

Eu termino mencionando uma frase latina: “Clericorum sors subitanea mors: a sorte dos clérigos é a morte repentina”. Parece que a opinião geral confirma isso. Os padres morrem de repente. Não será, muitas vezes, porque o padre abusou, abusou?

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1984

Se assim é com um sacerdote, por que não será com aqueles que a Santíssima Virgem chama tão especialmente para servi-La? Ela, que solicitamente escolheu-nos dos lugares mais inopinados para trazer-nos amorosamente para junto d’Ela? Se o indivíduo leva o pecado a um certo ponto, pode ser que Nossa Senhora diga em dado momento: “Acabou-se!”

Que desafio tremendo nós pecarmos depois de termos recebido tanto. Que horror! E como é salutar pensar nisso!

Temor, caminho para o amor

Alguém me dirá: “Mas, Doutor Plinio, eu fico perturbado.”

Eu respondo: “Eu prefiro, meu filho, que você se perturbe agora na vida e salve sua alma, a que você leve uma vida tranquila e depois se perca.”

Um conhecido disse-me numa ocasião: “Dr. Plinio, por que o senhor em vez de procurar encaminhar as almas pela via do temor, não procura encaminhá-las pela via do amor? Fale da bondade de Deus, do Céu que espera todos os homens…”

Há casos em que isso é assim, porque Deus tem suas vias. No entanto, fico na dúvida de que esta seja a regra geral para os homens deste século. Quiçá, em geral, em todas as épocas da História, o princípio não seja aquele que São Bento pôs no início dos estatutos da Ordem beneditina, uma frase da Escritura: “Vinde, filhos, e eu vos ensinarei o temor de Deus”?

O temor é o caminho para o amor. Há um grandíssimo número de pessoas que não começam a amar a não ser depois de terem começado a temer.

Portanto, eu que já fiz várias conferências sobre o Céu, inclusive o Céu empíreo, matéria verdadeiramente maravilhosa, faço esta com a qual estou certo de ter concorrido para o bem de todos.

(Extraído de conferência de 11/8/1984)

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