sábado, octubre 5, 2024

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Posição de luta e seriedade nas ternas alegrias do Natal

Há um verdadeiro abismo entre a compreensão atual de Natal e a dos povos antigos. Estes tinham a concepção religiosa, varonil e profunda do papel de Jesus Cristo como ponto de partida de toda obra que deve perdurar; o mundo moderno, pelo contrário, sem aspirar ao sobrenatural, o reduz a um espírito laico e igualitário e a um cruzar febril de presentes.

No texto a ser considerado a seguir, D. Guéranger1 enuncia um pensamento muito bonito: Nosso Senhor quis marcar, na memória dos povos, o dia do Santo Natal com fatos que, em relação à nossa proporção humana são enormes, embora tudo quanto exista, por maior que seja, é infinitamente menor do que o nascimento do Filho de Deus.

O dia do Natal e a conquista de novos povos

A fim de gravar mais profundamente a importância de um dia consagrado na memória dos povos cristãos da Europa. Dos preferidos nos caminhos da divina misericórdia, o soberano Mestre dos acontecimentos quis que o reino dos francos nascesse no dia de Natal de 496 quando, no batistério de Reims, no meio das pompas e das solenidades, Clóvis “o duro sicambro”, tornando-se doce como um cordeiro, foi mergulhado por São Remígio na fonte da salvação, da qual saiu para inaugurar a primeira monarquia católica entre as monarquias novas, este reino de França, como alguém disse: o mais belo “depois do Reino do Céu”.

Um século mais tarde, em 597, exatamente 101 anos depois, foi a vez da raça anglo-saxônica: o apóstolo da ilha dos bretões, o monge Santo Agostinho, avançava na conquista das almas após ter convertido ao verdadeiro Deus o Rei Etelberto. Dirigindo-se para York, aí pregou a palavra da vida a um povo inteiro, o qual uniu-se para pedir o Batismo. O dia do Natal foi marcado para a regeneração desses novos discípulos de Cristo.

James William Edmund Doyle (CC3.0)
Santo Agostinho de Cantuária pregando ao Rei Etelberto e sua corte

Também no dia do seu nascimento, Cristo conta com mais uma nação sob o seu império. Um outro nascimento ilustre deveria ainda embelezar este feliz aniversário. Em Roma, na Basílica de São Pedro, nas solenidades do Natal do ano 800, nascia o Sacro Império Romano, ao qual estava reservada a missão de propagar o reino de Cris to nas regiões bárbaras do Norte e de manter a unidade europeia sob a direção do Pontífice Romano. Nesse dia, São Leão III colocava a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno e a terra surpresa reviu o reino de César em um Augusto, não mais sucessor dos Césares e Augustos da Roma pagã, mas revestido desse título glorioso pelo vigário daquele a quem chamamos, nos santos oráculos, o Rei dos Reis e o Senhor dos Senhores.

Nascer para a vida sobrenatural no dia de Natal

O autor acentua a fundação de três grandes monarquias, das quais a maior delas é sem dúvida a de Carlos Magno, o Império Romano do Ocidente que renasce. A Providência quis que isso fosse realizado no dia de Natal, para ilustrar, com acontecimentos mais recentes, essa data de cunho eterno.

De outro lado, entretanto, é preciso considerar que a ideia de marcar o começo de determinada obra no dia do Natal contém em si algo de muito profundo. Porque Nosso Senhor é o Caminho, e todo caminho que não tenda a Ele é um desvio; Ele é a Verdade, e toda verdade que não se harmonize, ou que não seja uma parte da d’Ele, é um erro; Ele é a Vida, e toda vida que não nasça desta vida é morte.

Assim sendo, era natural que um povo iniciasse o novo curso na ordem da verdade, na ordem de um caminho e da nova vida sobrenatural, no dia do nascimento d’Aquele que é o Homem-Deus, d’Aquele que nos criou, nos remiu, nos salvou.

Como é belo inaugurar no Natal um reino, outrora pagão, que antes errava pelos caminhos da barbárie, entrar nas vias da civilização, tomando uma nova via, que é Jesus Cristo. Um reino que vivia na ordem do pecado e afastado da graça de Deus e que, pelo Batismo, nasce para a vida sobrenatural. A verdade, o caminho e a vida de um povo inauguram-se num dia de Natal!

Senso religioso varonil, com base na Fé

Esses episódios indicam bem o quanto havia de profundamente religioso no pensamento dos homens antigos e como o senso de religião deles não era superficial, feito de pequenas práticas, de curtas saudações aos Santos; de gente que passa pela igreja, faz umas genuflexões diante do Santíssimo meio encarquilhadas, enferrujadas, com ar abobado.

Florescia neles uma religião varonil, feita não apenas de sulcos de sentimentos, os quais têm seu papel, mas não são o fator principal. O elemento determinante é a Fé e seu devido aprofundamento pela meditação e oração, com todas as consequências lógicas, de maneira a formar um edifício intelectual mental sólido, estruturado, durável, resistente a todos os embaraços e chegando até o fim.

Essa é a verdadeira formação religiosa com base na Fé, da qual se origina um raciocínio pujante, capaz de chegar às últimas consequências na ordem do pensamento; da qual nasce uma vontade fortalecida pela graça, capaz de tirar todas as consequências na ordem da ação.

É, pois, dessa concepção profunda do papel de Jesus Cristo como ponto de partida de tudo e, portanto, da vida dos reinos e das nações, que impulsionavam o “batismo” de uma nação, o começo dela, sua regeneração, na noite sacrossanta de Natal!

Revivendo os Natais de outrora…

Ora, quando passamos dessas considerações para o Natal a que em breve vamos assistir, convém-nos fazer algumas considerações a título de “Ambientes e Costumes”.

Pensemos na pequena cidade de Reims medieval, com suas ruas tortuosas e sinuosas, com uma população que reside em casinhas pequenas perto da catedral, a qual já tem algum tamanho, mas que será substituída posteriormente pelo edifício gótico; imaginemos os povos – acostumados a dormir cedo – levantarem-se durante a noite, numa espécie de epopeia, para ir à Missa da meia-noite.

Imaginemos também, ainda próximo à conversão de Clóvis, os francos recém-convertidos percorrerem as ruas rezando e cantando, para irem à igreja celebrar o Natal; pensemos no Natal inglês, de cem anos depois, ou no romano de outros cem ou duzentos anos depois, quando o povo afluiu à Basílica de Latrão para ver o Papa coroar Carlos Magno como Imperador.

Reflitamos nesse Império que nasce, nesse homem de estatura fabulosa, Carlos Magno, venerado como santo em vários lugares da Europa; pensemos no Papa São Leão III, que o coroa e o conduz pela mão a um balcão, de onde será aclamado pelo povo…

Natal laico e comercial de nossos dias

Como tudo isto é diferente do Natal considerado em nossos dias, completamente comercializado, transformado em ocasião para promoção de vendas, em cruzar febril de presentes; há lojas que já possuem banco de compensação. Telefona-se e diz:

— Senhor Fulano, há aqui três caixas de whisky reservadas. Quer que eu as mande para sua casa?

— Não! Mande para Beltrano ou Sicrano.

G.Garitan (CC3.0)
Batismo de Clóvis – Galerias Históricas do Museu do Palácio de Versailles

Aquele produto, sem sair da caixa, circula como uma espécie de whisky telefônico ou de papel, fica pertencendo a várias pessoas sem ter pertencido a ninguém. E, sem dúvida, terminará na loja no dia do Natal, se não, no estômago de um embriagado.

É um Natal laico, no qual as manifestações religiosas são postas de lado, em que se ouve um bater de carrilhões transmitido pelo radiofone numa atmosfera adocicada, como a de certas entidades filantrópicas de “homens de boa vontade”, nas quais não se sente o surto de fé da Idade Média. É uma espécie de Natal de sonegação, sem apetecer ao Céu, ao absoluto, sem aspirar ao sobrenatural, mas todos organizados para levar uma vidinha nesta Terra.

Há um verdadeiro abismo entre ambas concepções de Natal e nós devemos ter isto em mente para protestar e firmar em nosso interior uma atmosfera profundamente oposta. Qual?

Verdadeira postura face ao Natal de nossos dias

É uma atmosfera de alegria porque o Menino Jesus nasceu; mas de tristeza pelo fato de que tudo se passa como se quisessem matá-Lo novamente. Basta considerar os acontecimentos em Roma, a situação do Ocidente, este último alento da Civilização Cristã que estamos vivendo. Nós não podemos nos associar a este espírito laico e igualitário.

Temos que levar no interior de nossa alma o Natal de Clóvis, de São Remígio, de Carlos Magno, de São Leão III. E como é esse Natal? É uma consideração séria do mistério da Natividade, uma compreensão da enorme graça que nos foi dada, dos deveres trazidos por ela e do propósito de combater. Porque, “quem me ama, ama a quem me ama e odeia a quem me odeia.” Disso não há por onde escapar!

Assim como não acredito ser meu amigo um homem que se enterneça para comigo, mas, ao ver-me injuriado, não me defenda contra quem me agrediu e não lute contra ele, assim Nosso Senhor não tem razão para tomar como séria nossa ternura – ainda que seja tão legitimamente terníssima do Natal –, se nosso coração não estiver cheio de tristeza, de deliberação de atacar e combater por aquilo que se faz contra Ele e contra o Reino de Maria. É esta seriedade, esta tristeza que devemos pedir ao Menino Jesus, por meio de Nossa Senhora, na Missa do Galo.

Peçamos para termos um Natal de Cruzado e não aquele caricatamente chamado “o Natal dos homens de boa vontade.”

(Extraído de conferência de 23/12/1965)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos dessa obra.

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