Viver é saber analisar os aspectos transcendentes, os imponderáveis sobrenaturais que cercam os ambientes e a natureza. Nesta escola de amor a Deus, ensina-nos Dr. Plinio a haurir e compreender o que são, nesta Terra, as promessas do Céu.
Ao adentrar em uma de nossas sedes1, na qual se encontra um amplo jardim, fiz uma reflexão que apresento aqui, tal como se pôs em meu espírito.
Reflexões durante o “Sol materno do ocaso”
Estávamos precisamente no momento em que o Sol se punha e ainda deitava réstias de luz através das árvores, iluminando parte dos canteiros. A imagem de Nossa Senhora das Graças, sorridente e bondosa, parecia ter uma homogeneidade especial com esse Sol, tornado menos intenso e dardejante, mais familiar e doce… É o que eu poderia quase chamar o “Sol materno do ocaso”.
Por serem as árvores esguias, os raios baixavam desde muito alto até embaixo, formando linhas oblíquas, uns sulcos de luz muito grandes e bonitos, em meio à relativa penumbra verde.
Reinava no jardim uma calma e uma paz que davam a impressão de que nem os passarinhos ousavam perturbar. Há momentos em que eles são muito engraçadinhos, saltitam, fazem desordem e “pintam o caneco”. Essa atitude lhes convém para o período da manhã, quando o Sol está na alegria de subir, ou quando se encontra em sua plenitude. Ora, quando o Astro-Rei começa a se pôr, os pássaros parecem tornar-se mais discretos e toda a movimentação da natureza acompanha o sono que vem entrando em tudo; um outro tipo de beleza impregna a atmosfera do parque.
Essa doçura que acabo de descrever tem uma qualquer relação com o traçado da avenida de entrada: em certo momento, ela inflecte com uma curva delicada e suave, apresentando algo em comum com as amenidades da natureza.
Quando o automóvel segue o seu curso, tem-se a impressão de que tudo o que há de imponderável e doce, de distinto, de agradável e de bondoso na natureza, toma mais uma dimensão, porque já não é apenas luz e cor, mas também movimento.
Pouco mais adiante, vê-se a parte lateral de uma das casas do complexo, que, àquela hora reveste-se de algo de aconchegado; é o local onde todos se reúnem, se aquecem, todos são amigos e se juntam para terem o bom convívio de uma noite…
Continuando o percurso, passa-se diante do cruzeiro e rezam-se as jaculatórias: “Ave Crux, spes unica! Mater Dolorosa, ora pro nobis!” O automóvel avança mais um pouco, o necessário para que essas impressões fiquem para trás e, sem choque, chega-se, por fim, ao esplendor do Pátio de Nossa Senhora da Glória, onde estão hasteados os nossos estandartes. Já é outra atmosfera, outro ambiente, como que um outro mundo a nos falar de batalhas.
E assim estava terminada minha entrada nesta sede, numa tarde de verão… Poderíamos dizer que tudo isso constitui três quadros sucessivos e distintos: o primeiro, da entrada; o segundo, da casa; e o terceiro, do pátio. O que eles significam?
Melancolia discreta, bem-estar e sossego
Há momentos em que a natureza se apresenta com as delicadezas e as discrições, com essa gota de cansaço, de sono e de tristeza próprias ao anoitecer. Nisso está representado um quê da virtude, própria às almas, quando se encontram em certos estados: são muito doces e suaves, espargem em torno de si uma melancolia discreta – nada de torrencial – agradável, na qual quase se poderia dizer preponderar uma nota de bem-es tar, mais do que de tristeza, que é, sobretudo, o sossego…
No fundo há, em todas as almas, momentos nos quais elas são assim, como em toda natureza há momentos em que ela se apresenta assim. Há, portanto, um como que estado de espírito pairando por cima de todas as coisas, o qual, em determinado momento, envolve o homem, convida-o e lhe diz: “Meu filho, é a hora de ser deste modo! Compreenda isto como é!”
Alegria da intimidade seguida do desejo de luta
Num segundo quadro de consideração, há outros momentos nos quais se apreciam, não os deleites da natureza livre e solta, do vento, das folhas secas correndo um pouco sobre o chão, mas se gosta do fechado, do íntimo, do aconchegado, do concentrado, do defendido contra o que está fora…
Essas são aquelas horas em que o homem tem a alegria de encontrar no outro um semelhante! Alegria de ser compreendido e de compreender; alegria da intimidade, do aconchego de quem sabe e pode confiar.
Não é apenas a confiança, porque as portas estão trancadas e o lobo não entra, mas é porque as almas estão abertas, pode-se falar e se expandir.
É quase um primeiro universo que cessa e um outro que entra, todo ele feito de impressões e sensações diversas, mas em que a alma humana sente o prazer de ter passado por um e ter entrado em outro. É uma espécie de viagem de estado de espírito em estado de espírito.
Depois das serenidades tranquilas, das intimidades reconfortantes, a alma tem o desejo de ação, quer ver a glória que se mostra! Ela, que há pouco queria repouso e aconchego, anseia por lutar, bradar, proclamar, avançar, abrir o peito! É disso que ela gosta, e aí está quase um outro aspecto do universo.
Ação angélica e imponderável religioso
Só nesse trajeto, quantas considerações se podem fazer…! Quando o homem sabe viver, passa, por assim dizer, por três universos só nesse percurso! E quantos universos assim há pelo mundo! Isso é levar uma vida interessante; assim vale a pena viver, é curioso, e muito mais que curioso, é belo, é nobre viver!
No fundo, o que significa isso? Se minha alma tem aspirações sucessivas de se encontrar nesses vários universos, é porque o Universo criado por Deus – no qual eu incluo o rei da Criação, que é o homem – pode apresentar quadros diferentes assim. Ora, o que quer dizer cada um deles? Há uma mensagem de Deus dentro disso? A Escritura diz: “Narram os céus a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 2). Pergunto: há narrações da glória de Deus dentro disso?
Eu aprofundo e digo o seguinte: quando noto uma serenidade ou um aconchego assim num ambiente, uma tal explosão de glória, tenho a impressão de que um Anjo paira ali; eu não o vejo, mas entrevejo o fulgor irradiado por ele nas coisas, como algo transcendente se exprimindo ali. Esse algo, o que é?
São exatamente as criaturas narrando a glória de Deus, e eu, através delas, contemplando aspectos d’Ele. É possível que numa casa abençoada como esta os aspectos de Deus se façam ver não só pela natureza, mas por graças que coincidem com a mensagem que ela traz, fazendo-nos ver algo a mais do que a simples natureza mostra.
Daí vem um imponderável religioso em todos os aspectos que se sucedem, ao analisar os ambientes de uma sede como esta.
“Como sois grande, infinito e belo! Para Vós eu nasci!”
Então fica posto o elemento necessário para uma oração:
Na noite de nossa vida, quando tivermos os anoiteceres suaves e poéticos – não a velhice tempestuosa que de mim está querendo a Providência, mas, como eu vi numa dama, tão suave e tão poética – nesta ocasião, como na aurora de nossa vida, Deus nos fará ver como que aspectos do que Ele mostrará de Si mesmo no Céu.
As delicadezas, as harmonias e as cores já um pouco noturnas do ocaso, exprimem algo de especialmente belo: os aspectos de Deus no Céu, expressos por uma delicadeza infinita, por uma serenidade sem nome, por uma capacidade de penetrar em nossas almas, agradando-as, manejando-as com afeto, enchendo-as com a presença d’Ele, sem nós sabermos como.
Haverá outros momentos em que, no Céu, nós veremos o aconchego de Deus, e pensaremos: “A Terra passou, a vida passou; as batalhas passaram, a possibilidade de pecar passou! Nós estamos radicados no Céu para todo o sempre, somos impecáveis! Deus nos tem eternamente! E – ó maravilha! – nós O temos por toda a eternidade! Esta multidão de Anjos e homens eleitos que vivem na bem-aventurança, eles serão os meus íntimos pelos séculos dos séculos sem fim… Cada vez nós nos conheceremos e nos amaremos mais! Cada vez mais formaremos um só junto a Ele!”
Haverá as grandes glórias de Deus, os momentos em que Ele Se manifestará a nós de tal maneira, que nem saberemos como glorificá-Lo: “Senhor, como Vós sois grande, infinito e belo! Para Vós eu nasci!”
Na eternidade não se podem distinguir o tempo nem os momentos, falo por acomodação de linguagem. Mas há torrentes de graças que dizem uma coisa e torrentes de graças que dizem outra. E Deus Se mostra por um aspecto e por outro, e por outro, por todos os séculos, para nós O contemplarmos pela eternidade!
Então, ao fazermos esse pequeno trajeto, quando o dia é favorável, devemos haurir essas impressões e compreender que são promessas do Céu. E devemos amar as almas que, vendo essas coisas, são susceptíveis de amá-las. Porque, na medida em que as amam, elas assemelham-se a isso, na medida em que elas mesmas ficam assim, são o reflexo de Deus mais próximo de nós. E se, por exemplo, duas ou três pessoas capazes de sentir isso e conversar sobre isso se sentassem num banco de jardim e falassem, teriam uma união de almas parecida com a que se tem no Céu. Viver é isto!v
(Extraído de conferência de 21/12/1984)
1) Trata-se do Êremo Præsto Sum, situado numa espaçosa chácara, no Bairro Santana, em São Paulo. Do portão de entrada ao acesso às casas, percorria-se um amplo jardim, comentado neste artigo por Dr. Plinio.