Os primeiros embates de Dr. Plinio como candidato eleito mais votado do Brasil foram marcados por uma única ambição: a glorificação da Santa Igreja Católica. Ora de espada em riste, ora com as armas da diplomacia, foi vigilante na defesa do ideal e em relação à sua própria alma.
No dia da eleição, votei logo cedo e fui com o meu staff para a sede da Liga. Passei lá até à tardinha, para tomar conta das eleições e estar à disposição para o que desse e viesse durante o período das votações. Foi um dia relativamente tranquilo na Liga.
Pequeno incidente e falsas complicações
Ora, a “máfia” não deixou de funcionar. A certa hora, atendo o telefone:
— É da Liga Eleitoral Católica. Quem fala?
E uma voz cava que eu conhecia, mas não reconhecia:
— O Dr. Plinio está?
Eu respondi:
— Sim senhor, ele está ao telefone. Quem quer falar?
— É o Arcebispo.
Eu pensei que fosse alguma brincadeira de algum rapaz das Congregações Marianas ou coisa do gênero, e disse:
— Deixe de brincadeira.
Ele disse:
— É o Arcebispo D. Duarte que fala.
Só então, pelo timbre de voz, reconheci ser ele. Ele sabia fazer-se respeitar. Eu disse:
— Ah, Sr. Arcebispo, me desculpe!
— Eu acabo de receber a notícia de que há uma situação gravíssima: toda a circulação dos votos católicos em Campinas está entupida, porque a Liga Eleitoral Católica não mandou cédulas suficientes. Estou aflitíssimo, mande que levem as cédulas, do contrário será um desastre.
— Sr. Arcebispo, eu estranho. A remessa para Campinas foi feita, como para todas as sedes de dioceses do interior, e cada qual distribui às cidades.
— Pois me dizem, e de fonte muito segura, que não têm.
— Vou telefonar para a nossa Junta em Campinas para ver o que houve, e logo transmito notícias à Vossa Excelência.
Liguei para lá e veio a notícia de que tudo corria normalmente. Era boato, e informei ao Arcebispo:
— Tranquilize-se, a informação é falsa. Em Campinas as cédulas estão circulando à vontade; a Liga Eleitoral de lá recebeu todas as cédulas, a situação está normal. Vossa Excelência verá que em Campinas, o que se espera para a Liga Eleitoral Católica, saiu.
— Está bem, obrigado. Vamos ver.
Foi o único incidente do dia. Era mentira para ver se eu, por exemplo, me impacientava e tinha uma deseducação, que fosse um começo de crise. Conhecemos o jogo, não há o que dizer.
Ao candidato católico, apoio maciço das Filhas de Maria
Ao lado da casa de um tio meu, havia um grupo escolar enorme1, situado na Rua Vitorino Carmilo, no bairro popular da Barra Funda. Este local foi todo lotado com mesas e urnas eleitorais, e um primo meu, filho desse tio, tinha dirigido uma seção como mesário.
Na hora do almoço ele voltou para casa, e o meu tio perguntou-lhe:
— Como está indo a eleição do Plinio?
Ele era afilhado de minha mãe e se queriam muito. Ele respondeu:
— Olhe, diga à tia Lucilia que o Plinio, a julgar por minha mesa, está estrondosamente eleito. Porque eu estou na seção da letra “M”, e todas as “Marias” do bairro votam lá! Voto feminino colossal. Está uma devastação!
De fato, o movimento de Filhas de Maria era enorme e o número daquelas que se chamavam Maria era muito grande.
Ora, como ele podia saber disso se o voto era secreto? É que as cédulas ficavam na cabine eleitoral e as minhas acabavam logo, tendo que ele ir levar várias vezes novos maços, e dali a pouco as “Marias” já as tinham esgotado de novo. Às vezes uma eleitorazinha nova, muito modesta, saía de dentro da cabine e dizia: “Eu quero votar no Dr. Plinio e não tem cédula dele aqui dentro.” E ficavam paradas, até que mandassem vir mais cédulas, não votavam noutro…
Mas isso era numa seção. Não se poderia ainda afirmar ser um resultado significativo.
A verdadeira força política do Brasil
A Liga Eleitoral Católica estava se desenvolvendo muito, tinha um eleitorado grande, mas eu não tinha nenhuma ideia real, porque o meu bureau em São Paulo fazia o registro dos eleitores daqui e de duas ou três outras cidades que constituíam, com São Paulo, a Arquidiocese. Eram Jundiaí, Itu e alguma outra, mas eram cidades muito pequenas naquele tempo. Cada Liga Eleitoral Católica dependia do bispo, o qual independia do arcebispo. De maneira que eu não sabia bem ao justo, por esse interior de São Paulo afora, como a coisa ia andando.
Dias depois das eleições, eu me encontrei com o velho ex-ministro da Fazenda. Ele me abraçou e felicitou-me:
— Meus parabéns! Você está eleito!
Respondi:
— Mas como o senhor sabe?
— O interior inteiro votou em você! Os padres todos indicaram e estamos vendo que a força eleitoral do clero é fantástica! Todos os nossos partidos políticos não valem nada. O que vale como força política no Brasil é a Igreja Católica!
Durante a apuração dos votos, perfeita atitude interior
Continuou a apuração durante uns quinze, vinte dias, mais ou menos. Diariamente os jornais noticiavam que minha votação ia crescendo, e percebi nisso grande vantagem para a Causa Católica.
Eu toda a vida detestei torcida e, para combatê-la, tomei a deliberação de não verificar os resultados no jornal. Eu deveria tomar uma atitude de desapego, desligar-me, não perguntar nada sobre a eleição nem torcer por nada: “Vou manter-me calmo, levando a vida de todos os dias. Alguém me avisará quando a votação tiver chegado ao número necessário e, se não chegar, também me informarão.”
Eu, sempre muito plácido e sereno, nunca me levantei mais cedo para ver nos jornais qual era a minha votação. Os jornais matutinos, quando chegavam, eram postos numa saleta menor, diferente da sala de jantar, onde os netos de vovó jantavam; o café também era servido aí para quem quisesse e eu tinha o hábito de todos os dias tomá-lo aí.
Minha irmã tomou o hábito de acompanhar as notícias e, quando eu entrava para tomar café, ela já estava lá. Julgando que eu estivesse numa torcida única, então me transmitia como estava a votação. E eu tomava aquilo com certa frieza.
Minha mãe acompanhou tudo muito serena, comprazida, alegre, mas muito discreta e desapegada sobretudo! Ela recebia bem, mas comedidamente. E eu via que ela queria ensinar-me que não devemos nos apegar a cargos, a prestígios terrenos; acima de tudo está a consciência reta e o serviço a Deus. E eu tinha aprendido, no livro de D. Chautard, que não alcançaria nenhum bom resultado para a Causa Católica como deputado nem santificaria minha alma, se tivesse apego a esse cargo.
Vitoriosa eleição
Naquele tempo, comungava-se só no período da manhã, até às dez horas, sendo obrigatório o jejum desde a meia-noite. Todos os dias eu ia à Igreja de Santa Cecília, comungava, voltava para casa, entrava na sala, não via os jornais, tomava um abundantíssimo café com leite, pão e manteiga. Porque, graças a Deus, o bom apetite até hoje nunca me fez falta. Ia para o meu quarto pôr em dia as orações, fazer leitura espiritual, de maneira que, quando chegava a hora do almoço, a minha parte espiritual estava em ordem. Almoçava e cuidava do que eu tinha que cuidar.
Até que uma manhã, depois de me ter preparado, passei pela saleta onde se expunham os jornais e vejo ali minha irmã. Lembro-me bem dela, em pé, ainda de chambre, folheando o jornal O Estado de São Paulo com muita atenção, com um cuidado enorme. Parecia um passarinho bicando uma flor para ver se a corola tinha bom sabor ou não. O Estado dava os resultados. Quando eu apareci, por cordialidade, disse a ela desde a porta:
— Bom dia! Como vai você?
E ela deu um sorriso e disse num tom festivo:
— Oh! Muito bem!
Ela simulou uma espécie de grande reverência estilo Ancien Régime; era um gracejo, e disse em francês:
— Bom dia, Monsieur le Député, meus parabéns!
Eu, sem prestar maior atenção, pensei que fosse uma brincadeira entre irmão e irmã, muito moços, uma coisa do gênero. Não atinei com o que queria dizer e perguntei:
— Como assim?
Ela, muito viva, um espírito muito mais ágil do que o meu, disse:
— Você não viu? Você está se levantando e não sabe do que está se passando?!
— Levantei-me agora. Você se levantou mais cedo…
— Sim, para saber se você tinha sido eleito ou não. Porque hoje são publicados os resultados definitivos. E vim ver seu nome. Só você para fazer isso! Não sabe que foi eleito!
Ela aludia a certo desinteresse meu por coisas materiais e pela carreira. Ela mostrou-me o jornal – que ela vinha acompanhando com toda a precisão – e, de fato, eu tinha sido eleito. Amanheci deputado, de repente.
— Eu acabo de ler nos jornais que sua votação já passou o total necessário. É o primeiro deputado paulista a atingir esse limite! Você já é deputado!
Vi nos jornais, porque eu tinha responsabilidade, e eu estava realmente eleito, era o primeiro deputado da Chapa Única a passar o limite. Ao cabo das eleições, deu-se este fato espantoso: com vinte e quatro anos eu fui apresentado candidato a deputado federal pela Liga Eleitoral Católica de São Paulo; por coincidência, eleito por 24 mil votos, a bem dizer mil votos por ano.
Saí correndo para comungar, já estava na hora. E foi assim que eu soube que tinha sido eleito. Era o deputado mais moço e o mais votado do Brasil! Nenhum outro alcançara a votação que eu tinha atingido no Brasil inteiro. Era o resultado de uma luta que eu tinha começado a sós, mas que Nossa Senhora protegeu até chegar a esse extremo.
Depois começaram a chegar-me as felicitações. O primeiro lance de minha batalha parecia ganho. Estavam aplainados todos os caminhos, começava o problema da Constituinte.
Primeira reunião da Chapa Única
E chegou o momento da primeira reunião da Chapa Única por São Paulo Unido2.
Eu me lembro de que eu estava numa roda de membros do pré-grupo do Legionário, no meu escritório, proseando – porque era para o que servia o meu escritório: prosear e fazer apostolado – quando tocou o telefone. Eu atendi:
— Pronto.
Uma voz solene, gênero paulista antigo, disse:
— De onde fala?
— Escritório do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira.
— Aqui fala o Alcântara Machado.
Respondi de um modo amável, mas no mesmo tom de colega:
— Ah, Dr. Alcântara, como vai o senhor? Está passando bem?
— Eu queria lhe comunicar que haverá uma reunião dos candidatos paulistas eleitos, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil. O senhor, como nosso mais jovem colega, está convidado a comparecer.
— Pois não, muito obrigado. Estarei presente.
Era um antigo prédio de residência de São Paulo. Outrora fora habitado por uma família riquíssima. A reunião deu-se na antiga sala de jantar da família, com restos de uma mobília muito pitoresca e bonita, que se usou durante algum tempo, embutida na parede. Havia uma mesa grande e comprida, mas era uma sala para refeição, não para trabalhar.
Estando lá, cumprimentei o venerável Dr. Alcântara Machado, que presidia a reunião:
— Dr. Alcântara Machado! Plinio Corrêa de Oliveira.
— Ah! Como vai o senhor? Está bem?
— Bem, obrigado. Eu fui seu aluno na Faculdade de Direito, Dr. Alcântara, há pouco tempo.
— É, estou me lembrando.
Ele era muito bom literato, líder futuro dos deputados paulistas. Ele tinha sido meu professor de Medicina Legal, na Faculdade de Direito, um bom professor, dava aulas muito interessantes. Tinha sido recebido como membro da Academia de Letras do Brasil3, o que era naquele tempo de muita importância. Aliás, um homem muito inteligente, de uma vontade forte, alourado, com uns olhos que pendiam entre o cinzento e o verde-claro. Uma fisionomia que, quando se tornava hostil, tinha qualquer coisa de fera. Quando estava comum, era de trato agradável.
Ele tomou a presidência, todos se sentaram mais ou menos por ordem de idade, como era natural. Por atenção e respeito, fui logo ao último lugar, à outra ponta da mesa, em frente ao Dr. Alcântara. Sendo o mais votado e o mais moço, ficava bem dar essa prova de despretensão.
Eu levava como obrigação fazer aprovar por eles os quatro pontos do programa da Liga Eleitoral Católica: o ensino religioso nas escolas públicas; a capelania nas Forças Armadas, nas prisões, hospitais e em outros estabelecimentos do Estado; a proibição do divórcio; e a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso.
Início das investidas como deputado católico
O Alcântara Machado disse algumas palavras de boas-vindas e depois, com uma voz soturna, prosseguiu: “Está aberta a reunião. Antes de tudo vamos cuidar do programa que a Chapa Única deve levar para a Constituinte e assim submeter à deliberação dos senhores. Primeiro artigo: ‘Separação entre a Igreja e o Estado, liberdade para a Igreja e para todas as religiões.’”
Depois continuou a ler outras coisas, que não tinham importância para a Religião. As reivindicações da Liga Eleitoral Católica ele colocou no programa e, quando as apresentou, o Dr. João Sampaio cerrou os olhos, indignado. Sentiu-se assim uma espécie de frio na sala, porque se percebia que muitos seriam contra.
Dr. Alcântara Machado acrescentou:
— Os senhores querem opinar sobre algo?
Silêncio pesado na sala. Ora, eu, como católico, era obrigado em consciência a opinar, não podia ser a favor da separação entre a Igreja e o Estado. Não podia lutar pela união e não podia aceitar a separação.
No entanto, eu sabia, por D. Duarte, que ele e a quase totalidade dos bispos brasileiros eram a favor da separação entre a Igreja e o Estado. Eles sustentavam a tese de que, em teoria, a união entre a Igreja e o Estado era um bem e a separação um mal. Mas que, nas condições concretas do Brasil, a separação era mais conveniente, porque a Igreja ficava mais livre em sua atuação; do contrário, havia pretexto para o Estado se meter na vida da Igreja. Razão que a mim não me convenceu. Porque com a força que a Igreja tem, ela não admite a ingerência do Estado e, quando fosse o caso, ela ingeria na vida do Estado!
Eu disse da minha ponta:
— Dr. Alcântara, eu peço a palavra.
— Pois não, com a palavra o Sr. Plinio Corrêa de Oliveira.
Intervenção firme, com efeitos de uma bomba
Surpresa geral: “Como é que o pintainho de vinte e quatro anos, se mete a discutir com o chefe?”
Eu disse:
— Dr. Alcântara, eu concordo com a segunda parte, mas devo dizer que estou em desacordo com a primeira proposta. Na minha consciência de católico, não posso votar a favor da separação entre a Igreja e o Estado, porque sou a favor dessa união. Não assino um programa em que se peça algo contra as minhas convicções.
Gelo geral, porque todos eram a favor da separação. Uma bomba não teria surpreendido mais aquela gente.
— Eu devo dizer com toda a clareza que, se for aprovado isso, eu me retiro e vou consultar a Liga Eleitoral Católica, porque não fomos sondados antes sobre esta proposta que está sendo feita; eu não tenho representação da Liga para aceitar ou para recusar. Eu estou, portanto, em desacordo, e peço que o senhor o registre. A lealdade da articulação entre as correntes componentes da Chapa Única exigiria que eu fosse consultado antes dessa proposta.
O Dr. João Sampaio, que tinha aberto os olhos, fechou-os novamente, recuou a cadeira para trás, indignado, como quem diz: “Meninote, cale a boca, senão estouro! Estão vendo? Vão admitir esses carolas aqui dentro e já vão criar complicação!”
Ele era conhecido como inimigo da Religião. E eu, firme!
Vários fizeram cara de tempestade, como quem diz: “Com a entrada desse sacristão aguerrido aqui dentro, o que vai sair?”
Eu acrescentei:
— Eu bem sei que a natureza da representação que eu recebo da Liga não é de servir-me da Chapa Única para restaurar a Idade Média. Ela foi constituída para finalidades paulistas específicas, mas entre isso e ser a favor da separação da Igreja e do Estado, existe diferença. Eu sou representante da Liga Eleitoral Católica e não vou subscrever isso. Não toquem no assunto. Se tocar, tem que tocar como eu quero!
Suspense, perspicácia e destreza
Novo silêncio. Pequeno suspense. Eu pensei que eles fossem se levantar, espumar. Nada.
O velho Alcântara não esperava por isso. Mas era um homem inteligente e, antes que se acendesse a discussão, ele entrou com uma solução. Olhando o papel, com um lápis na mão, ele disse em tom amável:
— Dr. Plinio, quem sabe se nós pomos aqui no programa, depois da palavra Estado, uma vírgula em vez do ponto. Está: Separação entre a Igreja e o Estado, ponto. Vamos redigir assim: “Mantida a separação entre a Igreja e o Estado, vírgula, ensino religioso, proibição do divórcio, capelanias etc.”
Era preciso ser destro para, aos vinte e quatro anos, compreender a história. E eu percebi logo qual era a fórmula muito bem achada dele: deixar a coisa ambígua. Porque tinha dois sentidos na construção da frase em português; um deles era: “Uma vez que seja mantida, em todo o caso pelo menos ter ensino religioso etc.”; é uma condicional; e o outro sentido era: “Deve ser mantida a separação entre a Igreja e o Estado, mas pode-se entender como hipótese.” Uma coisa bifronte; portanto, não é a favor nem contra, é colocar-se neutro, embora pareça a favor. E ficava para ser decidida na Constituinte. Então, eu podia aceitar. Eu disse:
— Aprovo inteiramente, aceito sem discussão!
Alívio geral, e a reunião continuou normal. Mas eu tinha dado um solavanco. Eu sabia que o Arcebispo não sustentaria outra posição. Terminou, eu fui para casa.
Política para a defesa da Igreja
A minha política consistia em ir manuseando a força eleitoral enorme da Igreja, a qual tinha deixado todos pasmos, e não me misturar muito com eles: amigos, amigos, negócios à parte.
Eu tive a impressão de que eles tinham querido me sondar o pulso, logo na primeira encrenca, e já tinham preparado o assunto. E também queriam ver se eu seria bastante esperto para compreender qual era o alcance da solução dada. Se eu fosse meio quadrado, eu podia não entender e dizer: “Também não aceito!”
Ora, se eles não alterassem o programa e eu saísse da Chapa Única por causa disso, ficaria bem para mim, perante o meu eleitorado, saía defendendo a Igreja. Mas, se eu não entendesse a solução apontada e não a aceitasse, ficava mal, como um tipo burro, ainda com fervor de moço que não compreendeu as coisas e despreparado para o lugar.
Quando ele deu a solução, aceitei-a de imediato: “Essa está muito boa.” Eu tinha entendido bem que era uma saída perfeita para o caso. Topei a parada.
Vitória brilhante para a Religião
Ainda me lembro do Arcebispo quando fui ao palácio São Luís contar como havia sido a primeira reunião. Ele tinha uma dignidade episcopal extraordinária e, enquanto eu contava, ele permanecia com um ar marmóreo; pela batida do pé eu percebia se ele estava gostando ou não. De maneira que eu, discretamente, tomava o pé como sismógrafo.
Eu contei a reunião desde o início, quem disse isso e aquilo, um disse que conhecia minha família etc. Ele ouvindo tudo, achando normal e batendo o pé.
Esses pormenores podem parecer desnecessários, mas dão vida à narração.
Quando eu disse:
— Todas as reivindicações da Liga Eleitoral Católica estão mantidas. Mas, a respeito da separação da Igreja do Estado, o Dr. Alcântara Machado propôs a separação.
Eu notei um suspense em D. Duarte – ele estava velho e morreria pouco tempo depois, do coração – ele aproximou as mãos do peito, como para pegar a cruz, mas vi que a aproximou do coração. Quando contei que eu não aceitava a separação entre a Igreja e o Estado, ele disse:
— Vossemecê disse isto?
— Disse sim. E o Dr. Alcântara Machado propôs tal coisa assim, e eu aceitei.
Ele deu um suspiro de alívio. Quer dizer, era para a Religião uma vitória brilhante. Mas eles tinham sentido que eu lá daria trabalho.
Marcando, com a ausência, uma linha de conduta
O Tribunal Regional Eleitoral anunciou a solene outorga dos títulos aos novos deputados da Chapa Única, no Palácio do Tribunal de Justiça de São Paulo, na noite do dia 24 de junho.
Eu pensei: “Todos os deputados vão estar presentes, porque estão se esfregando de terem sido eleitos. Se eu for, darei a ideia de meninote alegre, tomando atitude de uma criança no momento em que chegam os sorvetes numa festa de aniversário: está na torcida e não se aguenta para tomar logo… Creio que darei uma boa sapecada não comparecendo, dando provas de desdém e de superioridade.”
Eles organizaram uma sessão festiva naquela noite: no salão ornamentado com flores, repleto de gente, repórteres, em meio aos aplausos e congratulações, cada homenageado avançava para receber do presidente do Tribunal um belo certificado. Todos os candidatos estiveram presentes, receberam diploma; o mais moço não compareceu.
Aquele mexe-mexe não ia comigo. Sendo preciso fazer, fazia, mas não gostava. Brigar com muita gente e desafiar, eu gosto. Mas aquelas aclamações não iam com meu temperamento.
Eu estava imaginando o salão do Tribunal Eleitoral aceso, todos os meus futuros colegas recebendo o diploma – era um bonito documento naquele tempo, eu o guardo até hoje –, a televisão focalizando cada um. Naturalmente, quando focalizasse o mais moço, o mais votado, haveria palmas e palmas! Deveria ter muitos congregados marianos ali dentro, que iam só para me felicitar.
Não compareci. Fiquei com o grupo do Legionário, na tranquilidade da biblioteca da Rua Imaculada Conceição, na sede da Congregação de Santa Cecília, conversando sobre nossas doutrinas, e sentia um enorme bem-estar por ver-me longe de tudo aquilo.
Lembro-me até hoje de que, tarde da noite, nós estávamos conversando – nada sobre a eleição, era reputado assunto de segunda – quando apareceu um congregado, que subiu as escadas a toda pressa, entrou na sala:
— Oh! Você está aqui? Fui assistir à entrega de seu documento e você não compareceu. Inclusive chamaram o seu nome!
E a resposta deixou-o aturdido:
— É verdade, mas que importância tem isso? Eu não serei mais deputado ou menos por não haver recebido o diploma. Amanhã ou depois irei buscá-lo.
Fui no dia seguinte para receber o meu diploma.
Um embaraço de saúde em pleno dia do banquete
A política não parava. Surgiu um problema a respeito da designação de um novo governador de Estado, ele era militar – não era paulista – e fazia-se necessário substituílo por um civil, nomeado pelo Getúlio. Ora, o Getúlio queria a indicação de um governador, assinada por todos os deputados de São Paulo, para ter garantia de que representasse de fato o estado. Esse documento deveria ser ultraconfidencial, porque São Paulo ainda estava oficialmente rompida com Getúlio; e o principal primeiro passo de aproximação era ele nomear um governador paulista. Então designaram o Dr. Armando de Salles Oliveira4, mais tarde candidato à Presidência da República e expulso pelo Getúlio.
Como D. Duarte queria o Dr. Armando de Salles, eu assinei a lista. Ele era casado com uma moça da família Mesquita5, do Grupo de O Estado de São Paulo, eu já o conhecia de um episódio anterior. Era um homem de muita linha, os partidários diziam que tinha tanta linha, que era um carretel…
Meses depois, o Dr. Armando de Salles Oliveira ofereceu um banquete6 num grande clube aqui em São Paulo, a todos os deputados paulistas eleitos pela Chapa Única; eram restos de República aristocrática. Chegou-me do Palácio dos Campos Elíseos um convite: “O Interventor Federal de São Paulo, Dr. Armando de Salles Oliveira convida V. Exa. Sr. Deputado Plinio Corrêa de Oliveira para o jantar que o governo oferecerá no Clube Comercial, às 21 horas.”
Sempre tive uma saúde muito robusta, mas a dor de garganta me atormentou a vida inteira. E, por uma coincidência, eu, naquele dia, amanheci com dor de garganta. Pensei: “Não vou comparecer ao banquete para serrar de cima mais uma vez.” Estava mesmo de cama; se eu quisesse, forte como eu era, teria ido. No entanto, achei mais conveniente não ir. Resolvi destoar oficialmente.
Não compareci, mandei apenas um telegrama urbano muito amável, agradecendo o convite, mostrando que me solidarizava com a atitude de simpatia que meus ilustres colegas tomavam em relação ao Dr. Armando de Salles, mas que eu não podia comparecer por estar indisposto. Não me lembro dos termos, mas era evidente que eu não queria; e não tinha ido, não porque negasse meu prestígio ao governador, mas porque estava com embaraço de saúde.
Eu soube depois que um orador levantou-se logo no início e declamou: “O Deputado Plinio Corrêa de Oliveira, que não pôde comparecer por motivo de saúde, manda ao senhor interventor federal o seguinte telegrama…” Foi lido, e no dia seguinte, a seção Notas e Informações de O Estado de São Paulo publicou o texto do meu telegrama7. Depois vinham as demais notícias de todo o resto.
Eficaz escudo contra o orgulho
Que efeitos produziu em minha alma o eu ter sido indicado para deputado e depois ter sido eleito e ter exercido o mandato?
Para um jovem de vinte e quatro anos, ser o deputado mais votado e mais moço, para o qual todos os olhos convergiam naquele momento, em todos os meios católicos do Brasil, o instinto humano leva a ficar vaidoso, a pensar em estupidezes: “Que colosso eu sou; como eu, moço assim, já consegui me impor a tantos milhares de eleitores!” Começa a contemplar-se a si mesmo, e vem a coisa toda.
Eu poderia ter pedido para ser indicado. Poderia ter pedido para ser eleito, para ser reeleito, para se arranjar um jeito de eu ficar professor catedrático, não do Colégio Universitário, mas da Faculdade de Direito; eu podia pedir para meu escritório ser dos primeiros de São Paulo, a fim de eu ganhar bastante dinheiro e me instalar de um modo superexcelente, e assegurar para mim uma situação social brilhante.
Eu poderia pedir tudo isso, mas o resultado seria: viria o embriagamento de mim para comigo. Na hora em que ficasse posto diante da alternativa: apostatar ou renunciar a ser reeleito, teria optado pela apostasia.
Confesso que o livro-chave para mim nesse período não foi só o Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort, mas também o de D. Chautard, pois me serviu de muralha contra a grande, a tremenda tentação a que eu poderia estar exposto, que era a do amor-próprio.
D. Chautard era um grande trapista francês, um homem extraordinário, eu o admirava e admiro muito! No momento em que estou falando – ele já morreu há muitos anos – estou pedindo que ele reze por todos nós, no Céu. Eu me espanto que ele não tenha sido canonizado, espero ainda que ele o seja. O livro tinha um elogio escrito pelo Papa São Pio X, algo de uma autoridade imensa para mim. Até hoje não consigo falar nesse livro sem sentir entusiasmo.
Era um livro extraordinário, me serviu de guia numa época em que eu não tinha chegado aos vinte e cinco anos, e em que a irreflexão, a atração pelas coisas do mundo costumam facilmente levar o homem a tomar o rumo que não deve.
Sem o livro de D. Chautard, eu teria perdido minha alma quando eu fui eleito deputado. Foi ele que me auxiliou.
1) Escola Estadual Conselheiro Antônio Prado.
2) Os candidatos da Chapa Única eleitos reuniram-se no Instituto da Ordem dos Advogados, a fim de definir sua atuação na futura Constituinte, nos dias 26 e 27 de maio de 1933.
3) Eleito em 23 de abril de 1931 como membro da Acadmemia de Letras e empossado no dia 4 de outubro de 1933.
4) Engenheiro e político brasileiro, foi nomeado interventor federal em São Paulo entre 21 de agosto de 1933 e 11 de abril de 1935. Candidatou-se ao cargo de Presidente da República nas eleições de 1938, mas estas foram interceptadas pelo golpe de Estado dado por Getúlio Vargas; Armando de Salles foi governador de São Paulo de 11 de abril de 1935 a 29 de dezembro de 1936.
5) Raquel Cerqueira César Mesquita, filha do diretor-proprietário do jornal O Estado de São Paulo, Júlio Mesquita.
6) O banquete realizou-se no Clube Comercial, a 7 de novembro de 1933.
7) “Do Sr. Deputado Plinio Corrêa de Oliveira, recebeu o Sr. Dr. Armando de Salles Oliveira, interventor federal, o seguinte telegrama: ‘Ausente, por motivo imperioso, do banquete oferecido à bancada paulista, desculpo-me atenciosamente, agradecendo a V. Exa. o delicado convite. Plinio Corrêa de Oliveira.’” Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de novembro de 1933.