Para quem confia em Nossa Senhora, não há inimigo que não possa ser vencido. Com o socorro d’Ela, Dr. Plinio haveria de atravessar incólume a decisiva luta contra o amor-próprio. Encerrada a Constituinte, uma nova fase se abria na vida de Dr. Plinio.
Afinal, houve a promulgação da nova Constituição. Todos deveríamos comparecer ao encerramento da Constituinte, para assinar a Carta Magna.
Honras militares, entusiasmo e luta
Saí do meu hotel de fraque e cartola, segundo as exigências da bancada paulista; tomei um táxi e rumei ao Palácio Tiradentes. Quando o automóvel virou da Avenida Rio Branco para a Rua da Assembleia, vi com encanto tropas de soldados armados, impecavelmente dispostos em fileiras, para prestar honras ao Presidente da República, aos ministros e aos deputados. Ocupavam uma longa extensão de quatro quarteirões.
Reconheceram-me – não sei como, porque deputado não usava insígnia, a única que eu tinha era o distintivo de congregado mariano – e o oficial comandante bradou à tropa: “Apresentar armas!” Todos os soldados apresentaram os fuzis em minha homenagem. Era a primeira vez na vida que eu recebia honras militares!
Meu chauffeur estava inebriado com a cena. Eu, por temperamento e feitio, fui sempre muito militarista, ultrassensível à pompa militar – abaixo da eclesiástica – por ser das honras que mais fazem sentir ao homem sua grandeza; é a última forma da glória. Eu achei aquilo uma verdadeira beleza!
Mas foi o primeiro choque. Confesso ter sido essa a maior tentação de orgulho e vaidade que senti na vida. Era por inteiro a taça do prestígio que se me apresentava mais uma vez, à maneira de tentação, para me embriagar com aquilo: “Não há profissão à qual se prestem tantas honras militares como a de político, eis a vantagem de ser deputado! Consagrarei minha vida à política.”
Era uma tentação de amor-próprio muito violenta, à qual tive que resistir com firmeza. A par disso, veio-me a seguinte ideia, soprada pelo demônio: “Isto que é tão gostoso, poderei ter à minha disposição a vida inteira se eu for apenas um deputado federal, várias vezes seguidas, e assim alegrar-me e fruir a satisfação de uma carreira dessas. Agarrar-me-ei a este cargo de todos os modos, sem abandonar o serviço da Igreja, e terei esta gostosura da vida, que afinal de contas, é legítima. Ficarei deputado!”
O meu automóvel fluía devagar diante daquela tropa em continência, e eu, por gentileza, via-me obrigado a dar alguma resposta, levantando um pouquinho a cartola, ao longo do trajeto, até chegar ao Palácio Tiradentes.
Quando me subia aquele aroma de importância ao espírito, lembrei-me de D. Chautard. Foi o meu Anjo da Guarda que me fez recordar: “Não! Tenho de fazer o contrário! Se for preciso sacrificar minha vida política a qualquer momento, eu a sacrificarei para viver pela Igreja Católica!”
E uma luta travava-se em meu interior: “Se você optar por esta carreira, perderá sua alma e se tornará um apóstolo comediante e bobo. Um homem que se pretende apóstolo e se deixa dominar pela vaidade, é um apóstolo nulo!”
Para não me deixar arrastar, desviei o olhar daquela tropa armada, pedi o auxílio de Nossa Senhora, fiz o propósito de renunciar a tudo, desde que não fosse necessário para a Causa Católica. Eu pensava: “Desapegar-me, desapegar-me, desapegar-me de tudo!”
Era preciso ter equilíbrio de alma. Eu reputaria um defeito moral ainda mais grave ser insensível às honras militares, belas em si. Era preciso apreciar a cena e dizer: “Esta taça é ótima, porém não para os meus lábios, porque eu renunciei a ela! Percorrerei a fileira de ponta a ponta admirando o pulchrum, mas fazendo abstração de que é para mim, e quando eu descer ao Palácio Tiradentes, não pensarei mais na cena.”
Graças a Nossa Senhora, dominei-me e não dei nenhum consentimento. Quando meu automóvel chegou à Constituinte, a batalha estava ganha!
Nunca ceder à vaidade
Com efeito, apenas tenho relembrado o episódio uma ou outra vez, na necessidade de contá-lo para compreenderem o quanto se deve ser meticuloso na luta e nunca consentir num movimento de vaidade. Nunca! Por menor que seja: “Não, não e não!”
Nas ocasiões mais inebriantes de orgulho, trata-se de conservar um ponto átono, de maneira a poder sair de uma conferência com cinco mil pessoas para a cama, por exemplo, e dormir tranquilo, sem a menor febricitação. Elogiem quanto queiram, batam as palmas que entenderem, não se deve pensar naquilo, como não se pensa num tema contra a castidade!
Ora, se eu não tivesse lido com seriedade o livro de D. Chautard, A alma de todo apostolado, eu estaria num grave risco e provavelmente não resistiria àquelas tentações, porque não compreenderia a doutrina do verdadeiro apóstolo. Eu estaria pronto para todas as concessões em matéria de orgulho e não sei que resistência teria oposto aos convites de pertencer a partidos políticos. Como eu me teria aviltado! Esta é a importância de uma boa leitura espiritual.
Nossa Senhora quis servir-Se desse livro para defender-me contra as jogadas que o demônio preparava no meu caminho, com uma série de oferecimentos que me teriam talvez arrastado, se eu tivesse fraquejado naquele momento. Para ser desapegado, tinha que começar ali, naquela hora, e ser irredutível até o fim. Uma pequena concessão me teria levado pelo despenhadeiro abaixo e eu não teria tido coragem de fazer renúncias e aceitar os desprestígios que me aguardavam ao longo de minha caminhada. Tratava-se de não conceder nada ou perder a própria alma.
No reverso da medalha, eu pensava com os meus botões: “Individualmente, para mim, Plinio Corrêa de Oliveira, que abacaxi esta vida! A toda hora me vem aos lábios um licor que, como todo homem, tenho vontade de bebê-lo, e em todas as ocasiões devo recusá-lo porque para minha alma é um veneno. Não seria melhor acabar com isso?” Debaixo deste ponto de vista, eu tive alívio quando deixei de ser deputado, porque ao menos era uma provação constante que se afastava de mim.
Isso é uma noção de como foi essa temporada de dentro de mim mesmo, como a situação foi vivida por mim. Essa foi minha luta contra o orgulho, Nossa Senhora me deu a graça e eu não cedi. Era o fim da batalha do prestígio nesse período de minha vida.
Pompa e solenidade no encerramento da Constituinte
O Palácio Tiradentes estava todo enfeitado com flores, festões; havia uma banda que executou o Hino Nacional, o corpo diplomático presente, altas autoridades, aquele pessoal todo alinhado, teso, com a cartola. Era o símbolo da antiga ordem de coisas. O carrilhão da vizinha Igreja São José tocava, bem como o carrilhão da Catedral. Em certo momento, no meio daquela escuridão, iluminada apenas por holofotes que percorriam aspectos da Câmara, entrou o Getúlio, pequenininho, vestido de fraque. Assumiu o lugar na mesa da presidência para assinar a Constituição; tomou poses para tirar fotografias a fim de serem divulgadas pelos meios de comunicação de então.
A nossa bancada – constituída quase só por membros de São Paulo antigo – era oficialmente antigetulista até o fundo da alma. Havia alguns deputados da oposição, entre os quais o Zoroastro Gouveia e um deputado, pastor protestante, ex-salesiano, chamado Guaracy da Silveira: mole, untuoso, filaucioso e antipático quanto se possa ser. Todo o resto da Constituinte era getulista.
Os deputados assinaram a Constituição, alguns tinham canetas históricas, do avô que tinha assinado não sei que documento, ou do pai que tinha feito o uso para outra situação importante.
O Getúlio fez um discurso para encerrar a Constituinte; estava com uma fisionomia cínica e displicente dentro da cerimônia, como quem diz: “Dentro em pouco violarei essa Constituição…” De fato, ela durou apenas três anos.
Nesse dia, eu recebi um telegrama de D. Duarte e de todos os Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo agradecendo-me, em termos calorosos, pelo excelente serviço prestado na Constituinte. Eu julguei que seria mais perfeito, do ponto de vista da vida espiritual, não os publicar, mas guardá-los, porque poderiam incentivar algum orgulho, embora tivesse sido utilíssimo para a nossa causa que eu os tornasse público.
Antes de a cerimônia chegar ao seu fim, retirei-me, guardei meu fraque e minha cartola, embarquei para São Paulo naquela mesma noite. Para mim, a Constituinte estava acabada, era um caroço que não tinha mais significado.
De volta a São Paulo, reencontro com Dona Lucilia
Durante todo o período de deputado, eu passava a semana no Rio de Janeiro, tomava o trem sexta-feira à noite – não havia aviões circulando naquele tempo – e chegava a São Paulo sábado cedo. Comungava e ia para casa, a fim de passar um exíguo tempo com minha mãe, até domingo à noite.
Terminado meu mandato, enviei logo a quase totalidade de meus pertences a São Paulo, pela Central do Brasil, dois ou três dias antes de minha partida. Eu queria ver sair do Rio todos os caixotes com os objetos que eu não podia perder, livros, papéis, roupas. Deixei comigo apenas o necessário.
De retorno a São Paulo, encontrei-me com Dona Lucilia já instalada numa casa na Rua Marquês de Itu, no Bairro de Higienópolis. Sempre que eu chegava de viagem, tinha uma espécie de sofreguidão por encontrá-la e sentir o eflúvio de sua companhia, porque para mim São Paulo era mamãe. Encontrar-me com ela, estar com ela, ver como estava, e – por que não? – fazer-me visto por ela. Eu gostava de ver o olhar dela me querendo bem.
Ela me fez muita festa, demonstrando todas as formas de agrado possíveis. Em dado momento, ela me contou: “Filhão, eu fiquei tão contente com os primeiros caixotes que chegaram, que eu, já idosa como estou – ela estava próxima aos sessenta anos – fiz uma infantilidade: quando a empresa de transportes trouxe-os e deixou-os no meio da casa, eu, não tendo força para removê-los, beijei cada um de contentamento, porque percebi que era você que estava começando a voltar!”
Foi então que eu percebi, pela alegria dela, o isolamento no qual se encontrava.
Começava para mim uma outra fase. A Constituinte havia se encerrado em condições desfavoráveis para mim, pois todos os deputados getulistas votaram a favor de sua dissolução em seis meses de existência. Restaram-me apenas alguns meses de mandato parlamentar, e eu precisava cuidar de minha vida, instalar minha casa, arranjar minhas coisas, até começar as negociações para a eleição de uma Câmara Federal, no Senado Federal.