Populares da semana

Relacionados

Discretas harmonias no relacionamento entre mãe e filho

Descrevendo pequenos episódios do relacionamento com Dona Lucilia, Dr. Plinio nos permite vislumbrar um pouco da elevação deste convívio familiar baseado no amor a Deus e na fidelidade à Religião, cujas manifestações de encanto se faziam muito mais no silêncio mútuo do que nas palavras ou discursos.

Aquela definição de Dona Lucilia segundo a qual viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem, não correspondia à “vidoquinha” de uma mãe e de um filho que comentam entre si como estava gostoso o biscoito de polvilho, a chuva etc. Isso constitui muitas vezes todo um convívio entre mãe e filho, mas com que alimento…

Fotos: Arquivo Revista
Prédio da Rua Vieira de Carvalho onde Dr. Plinio residiu

Compaixão do filho pela mãe

Eu sentia nela uma série de fundos sucessivos de alma que me encantavam, os quais percebia olhando-a e querendo-a bem. E via perfeitamente que a recíproca era verdadeira. Mas essa situação fazia-se no silêncio mútuo, não comportava explicitações orais; interiores sim. De maneira tal que eu via bem quanto ela me queria, quanto eu a queria.

As minhas viagens para a Europa – fiz duas ou três em vida dela – eram para mim dilacerações, não no sentido comum das saudades, tinha também, mas representavam um papel como de água do mar quando chega à praia: é o fim da viagem. Mas era por imaginar o que representava para ela o ficar sem esse entreter-se comigo. Donde muita compaixão, muito desejo, cartas para ela… naquele tempo os telefonemas internacionais, além de muito caros, eram dificílimos de fazer. E por ela ter a audição debilitada, eu raramente falava ao telefone. Mas, se pudesse, telefonaria a ela todos os dias, como aconteceu numa ocasião.

Lembro-me de um tempo em que precisei dormir numa casa que pertencia a papai; era necessário que ele passasse um ano dormindo lá, para não incorrer em penalidade criminal por ter posto fora o inquilino. Do contrário, ficaria sujeito a cinco ou seis anos de prisão, algo impossível. O imóvel ficava num ponto bom de valorização, mas ruim para habitação, e ele o tinha comprado antes de ser emitida a lei do inquilinato. Então eu ia dormir lá para fazer-lhe companhia, e mamãe ficava no apartamento. Creio que a empregada Olga dormia com ela, para não ficar isolada.

Todas as noites eu ia a uma garagem em frente a essa casa e telefonava. Em casa, ela permanecia sentada junto ao telefone, rezando à espera de minha ligação. Alguém poderia perguntar: “O que o senhor dizia a Dona Lucilia a essa hora da noite?”

Fotos: Arquivo Revista
Restaurante Fasano, localizado na Rua Vieira de Carvalho

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio com alguns membros do grupo em 1965

O que dizíamos um ao outro? Eu dizia “boa noite”, simplesmente. Perguntava como ela estava, ela contava alguma coisinha, uma visita que fora ter com ela, fatos da vida comum. Era isso! Mas não eram banalidades absolutamente, era algo muito mais alto.

Sentinela atenta

Quando morávamos na Rua Vieira de Carvalho, Dona Lucilia não ficava sempre rezando ao lado da imagem do Sagrado Coração de Jesus enquanto permanecia à minha espera. Naquele tempo tinha vigência o jejum eucarístico da meia-noite e, portanto, ela sabia que, por volta das onze e meia, descíamos ao Restaurante Fasano1 para comer alguma coisa. E ela adquiriu o hábito de, quando intuía ter chegado a hora, ir para a janela olhar-nos. Ao sair do prédio, eu não olhava para trás, mas sabia que ela estava ali.

Quando deixávamos o Fasano, eu olhava discretamente e via sua cabeça, emoldurada já com cabelos prateados, enchendo um dos quadrículos grandes da janela, quase sempre o mesmo, mas não passando daquilo; ficava num canto, ao lado, bem discreta, olhando-nos. Era como dentro de um quadro.

Eu não a cumprimentava, por não querer criar para os rapazes que não a tinham percebido a obrigação de acenarem também… Mas ela notava que eu a olhava. Sabendo que eu me despediria de todos e subiria em linha reta, ela ficava me esperando com certa ansiedade para eu subir logo, para dar-lhe uma prosinha um pouco mais longa. Era a disputa dos minutos…

Eu abria a porta, ela vinha ao meu encontro, nos abraçávamos. Para me beijar se punha sempre na ponta dos pés e eu me inclinava um pouco. Depois sentávamos em alguma cadeira do salão e começávamos uma conversa que se estendia até mais tarde. Às vezes ela me perguntava: “Filhão, o que você conversou tanto tempo com aquele assim, assim?” Não me lembrava, então respondia: “Mas, meu bem, já não me recordo.”

Fotos: Arquivo Revista
Dona Lucilia durante uma conferência de Dr. Plinio em 1959

Às vezes ela comentava este, aquele, o que eu tinha rido em tal ocasião, procurando participar um pouco da conversa, porque mamãe era muito comunicativa. Nunca, nunca, nunca uma pergunta indiscreta. Nunca! Por exemplo, de querer tomar conhecimento de assuntos os quais sabia que eu não contaria, jamais! Golpinho para ficar sabendo, nada que se parecesse com isso, nem de longe. Era até de se excluir a hipótese como extravagante, despropositada.

Um sósia de Dr. Plinio…

Houve tempo em que ela esteve muito preocupada, porque afirmava ver passar em frente ao Fasano, na hora da espera, um sósia meu que usava inclusive um chapéu como o meu. Cada pessoa porta o chapéu de um modo peculiar, é instintivo. E ela dizia que até o meu modo peculiar de pôr o chapéu na cabeça a pessoa tinha, e ficava muito preocupada.

Disse-me que na primeira vez pensou ser eu, mas logo depois me viu sair dali, portanto, não podia ser. Quem seria? E pedia para eu tomar cuidado porque, de repente, esse homem cometia um crime, e poderiam inculpar-me a mim.

Eu lhe dizia: “Mas, meu bem, o que posso fazer? Não posso ficar o dia todo aqui, à espera de aparecer esse desconhecido.”

Depois esse fulano dissolveu-se, ela não pensou mais no caso.

Mãe desprendida, discreta, comedida

Ela percebia com clareza que eu era completamente diferente de outros homens conhecidos dela, e estimava sobremaneira essa diferença, prezava muito. Ora, não sei se ela media até o fim o que a Providência queria de mim, o que eu era chamado a ser, porque nunca tratamos sobre isso. Ademais, ela teve a vida inteira horror ao orgulho, à presunção, em ver pessoas se compararem com outros. Ela nunca agia assim, em nenhuma circunstância.

Minha mãe tinha muito cuidado em jamais dizer-me algo capaz de me inflar. Agradar-me, mostrar-me carinho, sim; elogiar o que eu fizesse, era raríssimo. Assim mesmo, só enaltecia o aspecto moral; o talento humano que talvez entrasse, ela fingia que não via, era como se não existisse. Eu percebia que ela receava colaborar de qualquer forma para que eu ficasse vaidoso, ao que ela tinha horror.

Recordo-me, por exemplo, de ela ter ido assistir a muitos discursos e conferências minhas e percebido que eu era muito homenageado, o que saltava aos olhos. Quando ela estava presente – naturalmente faz-se isso com a mãe de qualquer conferencista, sobretudo quando é uma senhora idosa – era posta nos primeiros lugares para que escutasse bem. Ela naturalmente percebia isso.

Durante a conferência, eu via que ela se mostrava agradada, acompanhando com muita atenção, positivamente gostando. No entanto, sendo minha mãe, não podia bater palmas. Terminada a sessão, falavam com ela, elogiavam-na, o que também se faz por toda parte; até quando o conferencista não discorreu bem, dizem para a mãe dele toda espécie de amabilidades. Ela recebia todos os agrados, mas absolutamente nunca me comentava uma palavra a respeito da conferência, do que lhe diziam; ficava quieta, não mencionava nada.

Presenciei, certa vez, uma senhora da geração dela dar a entender, numa conversa de uma roda grande, que o genro desta pessoa era mais inteligente e capaz que eu. Mamãe ouviu com uma indolência fenomenal, deixou passar.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em Maio de 1992

Quando essa senhora saiu da sala, uma outra lhe disse em minha presença: “Lucilia, não a compreendo. Ela deu a entender tal coisa assim, você sabe perfeitamente não ser verdade, todos nós na sala sabíamos, você podia dizer alguma coisa e não o fez.” Ao que mamãe respondeu: “Coitada, ela está tão alegre em imaginar que isso é assim, deixe-a imaginar. Plinio não ganha nem perde nada com isso. Deixe-a contente com o genro que tem, eu fico com o filho que tenho.”

E esse foi seu modo de ser até o fim. De maneira que se ela via em mim algum chamado da Providência, uma obra maior a realizar, ela absolutamente não comentava.

Apreciando as evoluções do filho, como num concerto

Ela tomava tão a sério o fator religioso como razão de união e, portanto, a heresia como fator de desunião, que ela acharia natural que uma união como havia entre ela e mim se rompesse caso ela adotasse uma outra religião. Era o ódio dela à heresia que não se manifestava em expressões de cólera, de furor, mas era uma incompatibilidade total! E estaria disposta a qualquer sacrifício para manter-se em sua posição.

As manifestações de ódio eram adequadas ao modo de ser feminino, como convém a uma senhora, desde que esta não tenha a magnífica vocação de uma Santa Joana d’Arc.

Eu explicava mais ou menos a crise na Igreja, ela ouvia com muita atenção, mas eu tenho a impressão de que toda a complexidade da problemática ela não captava bem, já era de um outro tempo. Mas ela prestava muita atenção em minha psicologia enquanto eu falava e, como ela percebesse que minha alma estava se movendo retamente, ela ficava contente; o resto não tinha importância.

Ela não prestava uma atenção policial, mas era como um apreciador musical atento ao concerto: qualquer notinha destoante ele sente melhor que um outro. Assim ela possuía o “ouvido” posto em minha vida, e qualquer coloridozinho que, do lado moral, de bondade e retidão ela não compreendesse bem, estando comigo a sós me dizia: “Filhão, em tal coisa não terá sido assim? Em tal ocasião, não terá sido de outra maneira?” E ela às vezes discutia um pouco, mas quando eu explicava, concordava, porque os princípios gerais eram os mesmos. Em outras ocasiões, desde logo acedia.

Creio que ela via mover-se em mim algo de muito reto, e então deixava correr o marfim, sem maior preocupação.

(Extraído de conferências de 26/8/1982, 19/7/1983 e 2/5/1992)

1) Restaurante localizado em frente ao prédio de apartamentos na Rua Vieira de Carvalho, n. 27, do qual o quarto andar era a residência de Dona Lucilia e o sexto, a sede onde Dr. Plinio se reunia com os membros do antigo grupo do Legionário.

Artigos populares