Continuando sua exposição1, Dr. Plinio mostra como a aseitas2 está intimamente ligada ao comportamento humano sob os mais diversos aspectos.
A aseitas na Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
Uma das coisas mais monstruosas praticada por esse espírito de massa se deu por ocasião da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vê-se ali o império da massa.
Nosso Senhor era o modelo perfeito de virtude, de todas as qualidades que se possa ter. E deu provas disso não só por sua pregação, mas também por seus milagres. A massa que ali estava tinha visto tudo isso há pouco e até O haviam aclamado como Rei. Mas, pelo próprio rolar caprichoso dela, passou depois a uma posição diversa.
E no meio daquela massa deveria haver muitíssimas pessoas que, sem convicção própria, O tinha aclamado como Rei. E depois, também sem convicção própria, mas apenas pela consonância com a massa, ali estavam ululando contra Ele, pedindo até sua morte, e chegaram a preferir que Barrabás fosse liberto e Jesus crucificado!
Isso ocorreu por causa dessa vergonhosa sujeição à opinião dominante, que redunda em aberrações dessa natureza. Rola a opinião para cá e para lá, e o indivíduo rola também. Ele não tem a coragem, a aseitas, para se deter e raciocinar: “Jesus Cristo, sendo quem é, não compreendo que O possam tratar assim! Eu protesto contra isso!”
Exemplo curioso do meio-termo entre a aseitas e “não-aseitas” foi Nicodemos, que ia falar com Nosso Senhor à noite. Quer dizer, ele, de um lado, formava uma opinião própria; mas, de outro, por interesses políticos — provavelmente também por falta de independência em relação à massa —, procurava o Redentor somente à noite.
A Verônica foi exemplo lindíssimo de aseitas. Nosso Senhor, perseguido, abandonado por todos, e ela, sozinha, O confortou.
E Nossa Senhora foi exemplo perfeitíssimo de aseitas. Ela não se incomodou com coisa alguma e acompanhou, com as santas mulheres, seu Divino Filho até o último momento de sua vida. Mas a Virgem Maria é tão excelsa que transcende este tema.
Os Apóstolos na Paixão: exemplo miserável de falta de aseitas
E a atitude dos Apóstolos foi exemplo lamentável de falta de aseitas. São Pedro ficou com medo de uma criada…
Os Apóstolos fugiram não só devido ao medo de morrer, mas também à falta de aseitas! Todo mundo pensava de um modo… eles ficaram então com dificuldade de se afirmarem em sentido contrário.
A propósito do maior drama da História, muitas das piores ignomínias que se deram tiveram como causa essa falta de coragem de resistir à depravação do instinto de sociabilidade e de se afirmar contra a opinião dominante. É impressionante ver até onde essa falta de aseitas pode levar os homens. No Evangelho isso é uma coisa claríssima. Quão poucos eram os que tinham coragem de dissentir da massa e de se afirmar contra ela!
A partir de Pentecostes, as aseitas se firmam e se espraiam
Em sentido contrário, lindíssimo é ver como, depois da descida do Espírito Santo, a aseitas começa a se firmar. Pululam então exemplos de pessoas que discordam, e fazem o papel de “chantecler”3, ou seja, aqueles que, nas trevas da concordância geral, deitam o seu brado e fazem levantar o sol. Estes são os que verdadeiramente têm aseitas.
A atitude dos Apóstolos ao fugirem, foi exemplo lamentável da falta de aseitas: eles não tinham apenas medo de morrer! Todo mundo pensava de um modo… eles ficaram, então, com dificuldade de se afirmarem em sentido contrário.
Todos os fundadores de nações cristãs, de instituições católicas, de grandes movimentos de almas — por exemplo, os que deram impulso à Contra-Reforma — todos eles foram paladinos da aseitas, enquanto os que trabalham pela Revolução são os escravos dessa espécie de delícia de ser, de pensar e de sentir como todo o mundo.
Está aqui, portanto, posto a nu, um nervo, ou um filão de nossa alma, que mereceria uma ascese toda especial — metódica, sistemática, paulatina — para ser conhecido e praticado.
Certa vez, um religioso contou-me o caso de um frade de sua comunidade, o qual disse a ele que notava a orientação errada do convento, mas ia seguir essa orientação pois não conseguia resistir. É uma falta de aseitas.
No fundo da falta de aseitas está o vício capital da preguiça
No fundo dessa falta de aseitas está o defeito capital da preguiça, uma forma de moleza pela qual o indivíduo, devendo entrar em luta contra outros, não quer fazer o esforço de alma que essa luta traz consigo. Quem possui aseitas realiza esse esforço. Por exemplo, se verifica a veracidade de algo, por nobreza de espírito ele declara: “É verdade, e não posso suportar que se diga que não o é! Sejam quais forem as conseqüências, farei tal coisa de tal maneira, porque assim se deve fazer. Contra tudo ou contra todos que desejam o erro, eu me levanto, aconteça o que acontecer!”
É preciso que o indivíduo tenha nobreza, grandeza de alma, ame bastante a verdade e o bem para lhe ser insuportável ficar quieto. Se tiver preguiça de combater — não só fora, mas dentro de si —, ele nem se define interiormente, nem exteriormente, e rola para os abismos da falta de aseitas e da sujeição à massa dominante.
Surge, então, o espírito de massa. A meu ver, o que preside a esse espírito é o vício capital da preguiça, ligado, como sempre sucede em se tratando de vícios, ao orgulho. Se o indivíduo não serve à causa da Igreja, do Bem e da Verdade, sua vida se torna sem sentido; ele então procura gozar a existência, movido primeiro pelo orgulho.
Da conjugação desses dois defeitos, orgulho e preguiça, surgem as devastações morais.
Relação entre aseitas e impureza
Por exemplo: no importante e jamais suficientemente debatido assunto da castidade, sou de opinião de que grande número de almas começa a praticar a impureza por falta de coragem de se opor, em menino, à opinião dominante e dizer que a impureza é um mal. O resultado é que o princípio morre em suas almas e elas acabam se entregando à impureza. É uma falta de aseitas. Se elas tivessem a coragem de defender a boa posição, ficariam com mais coragem de praticar a virtude.
E a grande arte das forças revolucionárias consiste exatamente em explorar os movimentos desse todo de alma, feito de paixões, de defeitos, de maneira que as pessoas se entreguem ao mal preguiçosamente.
Compreendemos, assim, o fundo da falta de aseitas, dessa espécie de entrega a um todo coletivo, causada pelo orgulho e pela preguiça, que leva os partidários de Nosso Senhor Jesus Cristo a uma conformidade com o mundo, contrária ao que Ele veio ensinar. Aqui se aplicam as palavras da Escritura, de que Jesus veio trazer a espada, o fogo, e não a falsa paz.
Portanto, se quisermos levar a uma profundidade maior a nossa formação contra-revolucionária, devemos praticar uma ascese especial em matéria de aseitas.
É quase toda uma pista, todo um filão de vida espiritual a ser cultivado, de grande importância, sobretudo para os dias que se aproximam, nos quais, mais do que nunca, essa tirania da massa vai se tornar enorme.
As pessoas de verdadeira opinião irão encontrar muita dificuldade de perseverar, não tanto por causa das perseguições, do medo, etc., mas devido a uma tão forte pressão desse fator coletivo, à qual ninguém conseguiria escapar. Os grandes pecados, os grandes erros, os grandes desatinos são feitos quando a aseitas morre e essa pressão coletiva triunfa.
Esta é uma concepção que talvez proporcione algo de novo para o progresso de nossas almas.
Como se forma um homem de princípios
Mostrei até aqui como a aseitas é a virtude que, de um lado, se contrapõe à deterioração do instinto de sociabilidade, o qual, levado ao exagero, abafa nossa personalidade e nos reduz ao anonimato. E acaba criando o espírito de massa.
A degenerescência desse instinto — e é seu aspecto pior — não permite a formação do homem de princípios. E, conforme expliquei, há conexão entre a aseitas e ser pessoa de princípios.
É muito fácil falar dos abusos, dos exageros. Poderíamos nos perguntar como, na verdade, as coisas deveriam ser.
O que é um homem de princípios? O que é princípio? Como se forma um homem de princípios?
O princípio é uma firme convicção que se transforma num bem da alma
Eu diria, numa primeira abordagem, que uma das noções integrantes da idéia de princípio é uma firme convicção. Só existe princípio quando há uma convicção tão firme que, embora todo o mundo afirme o contrário, a pessoa continue a sustentá-lo.
Um exemplo: o “eppur si muove” de Galileu. Foi pessimamente aplicado, mas seria um princípio. De fato, a Terra se move: aconteça o que acontecer, haja o que houver, dê no que der, eu sustento que ela se move.
Grande número de almas começa a praticar a impureza por falta de coragem de se opor à opinião dominante e dizer que a impureza é um mal. Se elas tivessem a coragem de defender a boa posição, ficariam com mais coragem de praticar a virtude.
Então, além de haver uma firme convicção, podemos acrescentar à noção de princípio uma outra coisa: é algo que aceitamos como de tal maneira nos dizendo respeito, que aquilo se transforma para nós num bem da alma; não podemos viver sem sustentar e praticar aquilo, e nem admitir que se pratique ou se sustente, em nossa presença, algo que seja o contrário daquilo.
Então, o princípio não é apenas uma firme convicção de uma determinada verdade, mas uma convicção tal que tudo quanto a contraria nós repelimos, porque daquela verdade fazemos um bem nosso.
Aquilo que contradiga o princípio nós rejeitamos porque nos ofende. E tornamo-nos, portanto, dedicados e combativos por aquele princípio, porque se transforma para nós num bem de nosso ser. Cortá-lo seria como tirar algo de nosso próprio ser.
Não só princípios, mas também rudimentos de princípios, podem ser co-idênticos com a pessoa
Há formas ou impressões que ainda não se transformaram inteiramente em princípios, mas são rudimentos deles.
Certa vez um oficial da Marinha sustentava que a Marinha deve ser hierarquizada da maneira cavalheiresca como ela é organizada. Para esse homem, tal hierarquia é co-idêntica com a sua própria vida. Seu prazer é ser oficial da Marinha, para a manifestação daqueles valores inerentes a ela. Se a organizassem de um outro modo, ao invés de uma Marinha vertical e hierárquica, uma horizontal; ou se a ONU conseguisse eliminar todas as guerras e transformasse todas as Marinhas do mundo em Marinhas mercantes, e lhe dessem um navio destinado a transportar, digamos, algodão, o normal seria que ele dissesse: “O mundo acabou, não tem mais sentido!” Porque um princípio, que era um valor da vida dele, teria deixado de existir.
Isso, entretanto, não tem ainda uma verdadeira estrutura de princípios, porque se percebe que é algo vago, solto no ar, falta-lhe base, e não tem a plena firmeza própria do princípio.
Um princípio nunca se apresenta isolado, mas formando conjunto com outros
É preciso, portanto, algo mais do que isso. O princípio não pode ser visto como uma convicção isolada, mas faz parte de uma visão do universo pelo menos embrionária, rudimentar. É a uma visão do universo que o indivíduo adere com essa força, e forma o conjunto de seus princípios. Porque a pessoa nunca tem um princípio somente: ou possui um conjunto de princípios, ou não tem nada.
O problema, para nós, é saber como a pessoa, de fato, forma esse conjunto de princípios e adquire raiz.
Num homem, os princípios, as certezas, formam-se sempre de “proche en proche”. O trabalho próprio do espírito humano é partir de algo de que ele tem certeza. Como um navegante, que sai de um continente para percorrer, por exemplo, um arquipélago, e vai passando de ilha próxima em ilha próxima, até chegar ao extremo; assim também caminha o indivíduo que tem uma determinada convicção.
Quando essa convicção é fundamental, ele parte dela para os seus corolários, e os adquire com toda a certeza. E depois desses corolários ele caminha para outras verdades, que seriam inexplicáveis caso ele não tivesse razão naquele ponto.
E assim, de “proche en proche”, a pessoa reconstitui uma espécie de arvoredo de convicções, que foram deduzidas das suas convicções fundamentais, que ela tem por verdadeiras.
Eu tenho como certo o fato de que ninguém forma princípios de um modo exclusivamente livresco. O verdadeiro modo de formar princípios e convicções é a partir da luz primordial de cada pessoa.
Certezas primeiras, luz primordial e aseitas
O Criador nos deu, ao nascermos, um feitio de espírito por onde este é particularmente aberto para certas verdades referentes à ordem do universo e à ordem mais profunda do ser. Com os recursos da nossa natureza, com nosso “lumen” natural, sem uma interferência necessária da graça, nosso espírito é particularmente propenso a essas verdades. Daí a expressão que emprego: “luz primordial”.
Tais verdades formam para nós determinadas certezas fundamentais e supremas, que são certezas em toda a força do termo, porque nosso espírito é dotado de uma lucidez enorme para percebê-las. E às vezes são coisas muito elevadas, às quais aderimos com todas as veras da alma.
E isso é para nós uma como que necessidade vital. Se essas certezas fossem contestadas, negadas, a nossa própria ordem interna seria quebrada e deveríamos como que ficar loucos.
Quando a pessoa é fiel à sua luz primordial — que envolve tudo, desde o modo de a criança ver a bola com que brinca, até um como que rudimento de metafísica e de visão do universo —, ela se preocupa em protegê-la, ama-a, porque essa luz lhe diz alguma coisa a partir daquelas numerosas certezas fundamentais primeiras.
As convicções dão ao homem a possibilidade de ser independente face à opinião pública
Sendo fiel, a pessoa, a partir destas certezas primeiras, desenvolve, por assim dizer, uma espécie de tesouro natural primeiro, constituído pelos princípios, que são as suas convicções. Estas lhe dão a possibilidade de resistir à opinião existente no ambiente em que ela vive e que está em contradição com a dele. É assim que a pessoa forma a sua aseitas e desenvolve as suas opiniões, contrariamente às de um ambiente.
Com isso a pessoa é capaz de ser ela mesma, de resistir aos outros, de ter uma mentalidade própria, de ser independente da opinião pública e de, se necessário, enfrentá-la. Propriamente, luz primordial, convicções, princípios, aseitas, são coisas que se conjugam, constituem um só todo. É esse todo que dá ao indivíduo força contra a opinião pública.
O vício de viver apoiado na opinião pública decorre da infidelidade à luz primordial. E, pelo contrário, sendo fiel à luz primordial, a pessoa se torna completamente capaz de enfrentar a opinião pública.
Poderíamos dizer que esse mecanismo de certezas, que parte da luz primordial, é como o Nilo entre os egípcios.
Assim como os egípcios canalizavam em várias direções as águas do Nilo, irrigando um território muito grande, a pessoa deve tomar suas certezas primordiais e canalizá-las, conduzindo-as a vários campos, fecundando-os.
Somente numa sociedade católica pode haver a verdadeira aseitas. Em tal sociedade é possível autonomia em relação ao Estado e esta espécie de liberdade dirigida, que é a maravilha da sociedade orgânica e o contrário da tirania.
Partindo-se desse ponto, tem-se uma certeza inteira a respeito dos mais variados assuntos, tais como formas de governo, estilos de vida.
Por essa forma, então, constituem-se os princípios — o princípio é uma certeza desse porte e desse tipo — e o indivíduo se transforma numa pessoa de princípios.
O impacto do ambiente moderno sobre o homem mata a aseitas
O que mais prejudica a formação de princípios é o impacto em nós do ambiente em que vivemos, não enquanto contrário aos nossos princípios, mas — e é algo mais profundo — enquanto ele tem, por princípio, não ter princípios. A pessoa que reflete, tem problemas criteriológicos, ideológicos, destoa completamente desse ambiente.
Ela fica um pouco com a impressão de que é um D. Quixote de la Mancha, solto num ambiente de gente sensata. E, inibido de desenvolver seus princípios, é seduzido pelo mundo da ninharia.
Parece-me ser isso o que mais freqüentemente ocorre e mata a aseitas.
Há, depois, uma série de outros fatores que podem levar um indivíduo a não ter princípios, que variam de pessoa para pessoa e são mais ou menos inesgotáveis.
Tenho a impressão de que tais fatores, somados a certa escravização aos princípios do ambiente, são os principais obstáculos. Portanto, o gosto de viver num mundo de irreflexão e de abandono dos princípios produz, como conseqüência, o desejo da aceitação da opinião dominante.
Somente numa civilização católica pode haver a verdadeira aseitas; a sociedade orgânica é o fundamento da aseitas. Numa sociedade católica pode haver autonomia em relação ao Estado e esta espécie de liberdade dirigida, que é a maravilha da sociedade orgânica e o contrário da tirania. É uma forma de equilíbrio inexprimível!
Explicando um pouco mais o que vem a ser “luz primordial”
A respeito de luz primordial, há ainda uma observação a fazer.
Todo homem tem, por feitio de espírito, por apetência de vontade e de sensibilidade, uma enorme propensão e facilidade para ver como evidente alguns princípios, algumas verdades, alguns elementos constitutivos da ordem do universo. É uma evidência primeira, mas que se apresenta, em primeiro lugar, muito sintética, e em segundo, muito inexpressa e implícita.
E ele tem, ao mesmo tempo, uma apetência enorme de ver, sob a direção desses princípios, a ordem do universo em seu conjunto, e fazer disso o bem de seu espírito, sua felicidade, sua fidelidade, e de viver segundo esses mesmos princípios.
Isto que se apresenta ao homem como uma evidência plena é, ao mesmo tempo, uma evidência de coisas vistas por alto e abrangendo inúmeros princípios secundários, que se trata de discriminar; um conjunto muito grande de verdades ainda não explicitadas, mas que é preciso explicitar, aprofundar, para se ver tudo quanto está contido naquela visão — e que é muito mais do que aparece à primeira vista. Há também alguns problemas, algumas dificuldades lógicas que se trata de acertar, explicar e desdobrar.
É como quem olha, por exemplo, do alto, um panorama. A pessoa vê uma série de coisas que o olhar atinge, mas que é preciso discriminar.
Além disso, existem pontos duvidosos que a razão não percebe exatamente como são; é preciso, então, escarafunchar, quer dizer, fazer investigação no pormenor, e sem medo.
Uma vez feito nessa perspectiva, esse trabalho de “escarafunchamento” não pode dar errado.
Tudo isso exige esforço e deve-se evitar o espírito de aposentadoria, que é o perigo dos bons. Porque o indivíduo adquiriu certa estabilidade, ele descansa.
Se ele entrasse numa saraivada de provações, então ele se “desaposentaria”. E, muitas vezes, a provação é um presente de Deus para o bom, para evitar que ele se “aposente”.
A raiz desse espírito de aposentadoria é uma inapetência de se nutrir da sua luz primordial. O próprio da fidelidade à luz primordial é um desejo de se nutrir dela o mais possível, fazendo disso o encanto da vida.
A atividade tem sempre algo de meio doloroso, em comparação com a inatividade que é gostosa.
Mas há uma posição de espírito sadia por onde o prazer da atividade como que absorve o cansaço inerente a ela, e o indivíduo carrega o cansaço de bom grado.
Por outro lado, há uma deterioração do espírito por onde o prazer da atividade não absorve o cansaço, e este se torna um fardo.
O indivíduo, então, começa a ser preguiçoso.
O sofrimento gera o gosto pelo pensamento. O pensamento gera o amor à solidão. E é no gosto pelo pensamento e pela solidão que o homem readiquire o que perdeu
O vício capital da preguiça, em face da luz primordial é, a meu ver, uma deterioração do espírito, por onde o prazer da elaboração intelectual já não absorve o cansaço, e o sujeito passa a gostar da inércia. Então, aquela meditação de aprofundamento da luz primordial passa a ser um sofrimento.
Poder-se-ia perguntar: se uma pessoa abandona sua luz primordial, como poderá readquiri-la?
Sofrimento, solidão e amor ao pensamento
Eu tenho a impressão — impressão porque não tive tempo de pensar sobre o caso — de que toda forma de reaquisição faz-se dentro da dor. Sem sofrimento não há remissão. Seria uma espécie de longo itinerário dentro de sofrimentos que acabe por obrigar a pessoa a renunciar às coisas que a levaram aos apegos, fazendo-a perder sua luz primordial.
Ela, depois, poderá ter o que perdeu, e mais do que perdeu.
Deus, naturalmente, pode conceder graças excepcionais e até fulminantes. Mas não conheço nenhum caso de reaquisição que não seja um processo dolorido, longo, à maneira do filho pródigo. E acho razoável que seja assim, salvas as exceções que Deus, em sua sabedoria, em sua bondade, em seu poder, queira abrir.
Imaginemos um indivíduo atacado de câncer, e que vai para um hospital. Lá ele tem horas de solidão e começa a pensar — porque a proximidade da morte faz pensar — a respeito do abandono em que o deixam.
Com a queixa, começa a filosofia: “A vida é isso mesmo, o mundo é assim, etc.” A Providência pode fazer com que isso se encaminhe para o gosto da solidão, e depois para o amor ao pensamento.
O sofrimento gera o gosto do pensamento. O pensamento gera o amor à solidão. E é no gosto do pensamento e da solidão que o homem readquire o que perdeu. E não só readiquire o que perdeu, mas Deus, em sua bondade, faz muito mais: promove uma festa, como para o filho pródigo, dá-lhe um anel e uma túnica nova, e mil outras coisas. Essa é a grandeza de Deus!
(Extraído de conferência de 2/9/73)
1) Ver o primeiro artigo na revista Dr. Plinio de novembro de 2009, nº 140, página 16.
2) Aseitas [pronuncia-se “asseitas”; corresponde a “asseidade”, em português]: palavra latina, usada pela Filosofia escolástica (atributo divino fundamental, que consiste em existir por si próprio). Dr. Plinio a usa aqui em sentido analógico.
3) Referência à obra teatral “Chantecler”, do autor francês Edmond Rostand (1868 – 1918).